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A mão esquerda

Olavo de Carvalho

Época, 30 de setembro de 2000

Hoje ela é poderosa porque é invisível; a outra mão ainda nem começou a se mexer

Algo que os eleitores ignoram completamente hoje em dia é que os partidos de esquerda não funcionam como os outros partidos. Estes se constituem exclusivamente de seus membros inscritos, de seus funcionários, diretores e representantes no Legislativo e no Executivo. A esquerda, além de tudo isso, conserva toda a rede de conexões secretas que sempre formou a base da militância revolucionária, que se expandiu formidavelmente durante os anos de clandestinidade e, após a restauração democrática, ampliou-se mais ainda sob a proteção da mentalidade conciliadora e preguiçosa da direita.

Para fazer face a isso, simplesmente não há direita organizada. Confiando na soberania do processo eleitoral, os partidos conservadores ocupam-se exclusivamente dos mecanismos ostensivos de propaganda e coleta de votos. Estão completamente fora das áreas extra-oficiais, que foram deixadas à mercê da voracidade esquerdista, num convite a que arrombasse uma porta aberta. Hoje eles não têm sequer militantes para contrabalançar a gritaria da esquerda em manifestações de massa. Nunca mais, neste país, se viu um confronto de rua, violento ou pacífico, entre grupos de direita e de esquerda. Onde quer que apareça o povão reunido, é sob as ordens da esquerda. A esquerda tem o monopólio das ruas, a direita faz intrigas de gabinete: o estereótipo publicitário esquerdista tornou-se realidade.

Mas, além das organizações de massa, a esquerda tem quatro armas decisivas, todas secretas ou discretas: a rede de espiões e informantes; a rede de disciplinados agentes de influência na mídia e nas universidades; a rede de colaboradores bem encaixados em postos essenciais da polícia, da Justiça, da administração pública; e a rede de ONGs sempre prontas a dar respaldo internacional a toda palavra de ordem das lideranças locais.

Isso permite ações de grande envergadura, cujos efeitos chovem de vários lados simultaneamente, dando a impressão de uma harmonia espontânea das várias correntes da opinião pública. Em cada emergência, basta acionar as redes e pronto: daqui vem uma notícia de TV, de lá uma manifestação pública, de acolá uma peça de teatro infantil, de mais adiante um comentário na imprensa de Paris ou de Londres, um sermão repetido em todas as igrejas, um parecer técnico firmado por autoridade científica sempre insuspeitíssima. Eis como se cria, sob encomenda, a fachada de unanimidade avassaladora que parece brotar do coração do povo tão naturalmente quanto o sol nasce ou o vento sopra. Tais operações não são, de maneira alguma, raras e excepcionais. São o dia-a-dia de um movimento que, há mais de um século, cultiva a prática das ações encobertas e tem no espírito de clandestinidade um dos componentes tradicionais de seu modo de ser.

Este país não conhecerá a normalidade democrática enquanto a esquerda não abdicar de sua eterna vocação de agir por baixo do pano sob a desculpa de que é perseguida e coitadinha demais para ser sincera e franca. Há também a hipótese de a direita começar a conspirar, por seu lado, para quebrar a mão invisível que hoje move os cordões da opinião pública. Mas então restará a pergunta temível: uma das mãos paralisará a outra ou as duas se unirão para nos estrangular?

Aviso aos espertalhões

Olavo de Carvalho


O Globo, 30 de setembro de 2000

Tempos atrás escrevi para uma revista um artigo sobre a espionagem chinesa no laboratório nuclear de Los Alamos. O presidente Clinton mandara abafar as investigações do FBI, ao mesmo tempo que agentes do seu Governo pressionavam estúdios de cinema para que retirassem de circulação vários filmes, entre os quais “Kundun”, de Martin Scorsese, e “Sete anos no Tibete”, de Jean-Jacques Annaud, que denunciavam atrocidades chinesas no Tibete (um milhão de mortos, àquela altura). O presidente dos Estúdios Disney confirmara, em entrevista, ter cedido às pressões, segundo ele, para não prejudicar as negociações entre empresas americanas e o Governo chinês.

O artigo, embora não contivesse nada de novo e se limitasse a resumir coisas que eu tinha lido nas colunas de Thomas Sowell, David Horowitz e Joseph Farah, os melhores comentaristas da imprensa conservadora americana (que no Brasil, é verdade, ninguém lê), suscitou escândalo. Pessoas que achavam que entendiam do assunto julgaram-no excessivamente venenoso porque insinuava uma cumplicidade de Clinton com o militarismo chinês para interpretar fatos que, segundo elas, podiam ser facilmente explicados pelos interesses comerciais dos EUA na China.

Por esse miúdo acontecimento pode-se avaliar o quanto a classe letrada brasileira ainda está presa à visão folclórica que crê poder compreender toda a política exterior americana pela mistura estereotipada de comercialismo e anticomunismo que talvez tenha até bastado para caracterizá-la, grosso modo, durante um curto período no pós-guerra, mas que hoje se tornou apenas um pretexto para pseudo-intelectuais do Terceiro Mundo se apegarem a uma cegueira atávica.

Depois do caso de Los Alamos, muita coisa veio à tona. As ligações da atual elite governante americana com o comunismo revelaram-se mais profundas do que o mais paranóico dos mccarthystas podia ter suspeitado.

O vice-presidente Al Gore, por exemplo, é filho do senador Albert Gore, cuja carreira política foi financiada pelo big boss do petróleo, Armand Hammer. Hammer, que se gabava de ter Albert Gore “no bolso”, foi um dos capitalistas ocidentais que investiram pesadamente na economia soviética após a revolução, ganhando muito dinheiro com a consolidação da ditadura comunista. Amigo íntimo de Lênin, ele sempre ostentou a imagem do puro capitalista interesseiro e sem ideologia: o protótipo mesmo do pragmatismo apolítico que, durante o Governo Clinton, serviu de pretexto para justificar os favores concedidos à China, inclusive a abstenção de examinar ali as violações de direitos humanos, que em todos os demais países (inclusive o Brasil) o stablishment americano fiscaliza com olhos de águia e denuncia com implacável rigor.

Mas desde a abertura dos arquivos soviéticos essa imagem mostrou ser apenas uma máscara de safadeza vulgar usada para encobrir algo de verdadeiramente sinistro: Hammer, segundo o provam documentos recém-publicados pela “Yale University Press”, era de fato um membro oficial da rede de financiamento do Comintern. Seus negócios eram pura fachada de uma imensa máquina de guerra soviética contra os EUA. Um deles, um banco sediado na Estônia, fazia a lavagem de dinheiro para o Partido Comunista americano. Outra empresa sua, a Allied Drug and Chemical Company, foi usada para furar o bloqueio econômico, passando à URSS produtos químicos vitais.

Armand era filho de Julius Hammer, fundador do Communist Labor Party americano e médico condenado à prisão pela morte de uma paciente durante um aborto ilegal. Gente finíssima. Logo após a tomada do poder pelos comunistas, pai e filho foram viver na URSS, numa luxuosa mansão da época tzarista.

Tal é a origem dos recursos que fizeram de Al Gore um rapaz de futuro. Nos tempos em que os EUA ligavam para a moral e para o anticomunismo, essa história bastaria para vetar uma candidatura a juiz de paz no estado de Idaho.

Mas o exemplo de Hammer é altamente instrutivo. Onde quer que você veja um capitalista advogando um pragmatismo aproveitador que — por acaso, por mero acaso — favoreça interesses comunistas ao mesmo tempo que contribui para impingir à opinião pública a imagem do capitalismo como um regime cínico, amoral e sem escrúpulos, é melhor investigar quem é que o “tem no bolso”. Há quase um século os comunistas possuem know-how bastante para lucrar duplamente com esse gênero de prestidigitações: ganham dinheiro e ainda enlameiam a reputação do adversário.

Como a classe afluente no Brasil é prodigiosamente inculta e sem formação moral, é grande, neste país, o número de empresários prósperos que se gabam de personificar uma síntese de astúcia amoral e neutralidade ideológica que lhes parece o supra-sumo da modernidade. Quando pensam encarnar o espírito mesmo do capitalismo, não sabem que esse capitalismo foi inventado por Lênin e Armand Hammer. O outro capitalismo, o verdadeiro, é aquele que, segundo Adam Smith, necessita da honestidade como um peixe precisa de água; aquele que, segundo Alain Peyrefitte, tem por único fundamento a confiança dos homens na lealdade de seus semelhantes.

Querer praticar esse capitalismo sem uma firme convicção moral e um firme compromisso político é querer dirigir um caminhão em alta velocidade lendo ao mesmo tempo um exemplar da “Playboy”.

Os que pensam que podem fazê-lo imaginam que são capitalistas, mas não são: são os parasitas e estranguladores do capitalismo. Acreditando-se espertos, são os fantoches com que, no teatrinho didático da propaganda comunista, os instrutores ilustram para os aprendizes a lição de Lênin: “Incentivar a corrupção e denunciá-la.”

A pergunta que resta

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 28 de setembro de 2000

Candidato à reeleição, o prefeito de Governador Valadares (MG), Bonifácio Mourão, mandou imprimir panfletos que mostravam a foto de dois homens beijando-se apaixonadamente e, abaixo dela, a inscrição: “É isto o que o PT quer para as nossas famílias. Diga não a essa aberração.”

A Justiça Eleitoral mandou apreender os panfletos, sendo aplaudida pela mídia elegante, a qual aproveitou a ocasião para qualificar o prefeito de neonazista.

Não sou idiota o suficiente para deixar de captar o sentido profundo da mensagem que, com essa decisão, as autoridades eleitorais transmitem ao povo brasileiro. É o seguinte:

1) Se é ilegal um candidato qualificar de aberrante o conúbio homoerótico enquanto tal, muito mais o será chamar de aberrante o projeto de lei que confere a essa modalidade de relação o estatuto de união matrimonial sob a proteção do Estado.

2) Se, em projeto, essa lei já não pode ser criticada como aberrante, muito menos o poderá quando aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República.

3) Se é proibido um candidato falar contra os casamentos gays agora que eles ainda não estão na lei, muito mais o será quando estiverem.

4) Assim, embora o uso da palavra “aberração” seja lícito e costumeiro no linguajar de quem condene e deseje revogar alguma lei ou mesmo algum dispositivo constitucional, a lei dos casamentos gays desfruta de um privilégio especialíssimo, que amordaça por precaução os que venham a pensar em criticá-la, antes de aprovada, ou em pedir sua revogação, depois.

5) Se é ilícito um candidato referir-se aos casamentos gays usando um termo bastante comedido que significa apenas “erro” ou “perturbação”, muito mais o será empregar, no mesmo contexto, o termo bem mais pesado “abominação”, que significa coisa asquerosa e digna de repulsa. Como é este último precisamente o termo utilizado no Antigo Testamento para qualificar a conduta homossexual, com mais presteza ainda a Justiça Eleitoral deveria apreender os panfletos se, em vez da declaração pessoal do candidato, estampassem o versículo 24 do capítulo 14 do Terceiro Livro dos Reis. Se é proibido imprimir as opiniões do sr. Mourão, proibidíssimo portanto é publicar, ao menos em tempo de eleições, esse trecho das Sagradas Escrituras.

6) Como a declaração ostentada nos panfletos, de que o PT deseja ver casamentos gays entre os membros de nossas famílias, é uma simples verdade empiricamente comprovável – pois afinal todos os gays provêm de alguma família e o projeto de lei que os une em matrimônio é criação da bancada petista, na pessoa da aliás candidata à Prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy -, a proibição da circulação desses papéis deve ser compreendida no preciso sentido de que, contra os gays ou contra o projeto, mesmo a evidência mais patente não pode ser alegada nas campanhas eleitorais, cabendo apenas discutir se poderá sê-lo fora delas.

7) Mas se no caso está proibido não somente alegar fatos, mesmo comprovadamente verdadeiros, mas também emitir opiniões, seja as brandas como a do prefeito Mourão, seja, mais ainda, as duras e contundentes como a do Livro dos Reis, isto é, se contra o homossexualismo e contra o projeto de d. Marta não se pode alegar nem juízos de fato nem juízos de valor, então essa proibição abrange, simplesmente, todas as afirmações e todas as negações.

Restam, portanto, somente as interrogações. Aproveito-me dessa margem de liberdade que escapou à vigilância cívica dos juízes eleitorais, e pergunto, “data venia”, a todos os gays, a seus apóstolos e à autora do projeto:

Vocês querem mesmo que essa sua lei, já antes de aprovada – e mais ainda depois -, seja defendida mediante a proibição de todos os argumentos adversos, ou estariam dispostos a concordar comigo se eu dissesse que a iniciativa da Justiça Eleitoral de Minas é um abuso de autoridade, uma aberração jurídica e uma abominação moral?

Na segunda hipótese, vocês terão demonstrado que sabem sacrificar os interesses imediatos do seu grupo em prol de um direito mais geral e mais alto, que é a liberdade de expressão assegurada pela Constituição a todos os brasileiros. Na primeira, nossa conversa acabará aqui mesmo, pois já terei concluído, com pouca margem de erro, quem é o neonazista neste episódio.

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