Olavo de Carvalho


Zero Hora, 30 de dezembro de 2000

A qualidade de um debate depende, no mínimo, de que os participantes tenham a posse em comum do rol de conhecimentos requeridos para a compreensão do assunto e um senso equivalente da força probante dos argumentos de parte a parte. Hoje, no Brasil, essa condição quase nunca se cumpre.

Qualquer palpiteiro, por mais desinformado e incapaz de raciocínio lógico, se crê habilitado a opinar sobre o que quer que seja, seguro de que a absorção superficial do noticiário o capacita a compreender e julgar tão bem quanto quem analisasse o caso por vinte anos.  Thomas Jefferson dizia que a democracia era inviável sem cidadãos cultos e bem informados. No Brasil invertemos a fórmula: democracia, para nós, é nivelar por baixo, é fazer da ignorância o direito primordial do cidadão que opina.

Isto cria uma situação constrangedora para o estudioso, que jamais pode contar com que o ouvinte saberá do que ele está falando. Além de refutar o opositor, ele tem de educá-lo, transmitir-lhe as noções e critérios básicos do assunto. Mas o adversário não permitirá que ele faça isso. Em vez de aprender, multiplicará presunçosamente as objeções descabidas até que a elucidação do ponto em discussão se torne inviável.

A questão do comunismo, por exemplo, é uma para quem só tomou conhecimento dela pelo noticiário, outra para quem tenha a perspectiva histórica do movimento comunista.  O primeiro pode até imaginar, como o sr. Amilcar Campos Bernardes (ZH, 20 out. 2000), que “o comunismo existe somente como ideal, não existe como algo real, palpável, que possa ser ‘combatido'”. Pode acreditar nisso por dois motivos. Em primeiro lugar, porque sua inexperiência confunde uma coincidência de termos com uma identidade de fatos. No vocabulário marxista, com efeito, o “comunismo” nunca existiu historicamente: a URSS, a China ou Cuba chegaram apenas ao “socialismo”, fase preparatória da sociedade comunista. Mas tomar isso como base para contestar a existência histórica do movimento comunista, de revoluções comunistas e de regimes ditatoriais assumidamente empenhados na construção do comunismo, é o mesmo que negar que tenha havido mais de um leão no mundo porque no dicionário a palavra “leão” só consta no singular. A coisa é de uma canhestrice tão deplorável, que incita a gente a concordar para não ter de descer a explicações elementares que arriscariam parecer humilhantes. Em segundo lugar, o sujeito pode acreditar que o comunismo não existe porque na mídia recente ele só ouve falar de economias mistas ou em plena abertura para o capital privado, o que o leva a aceitar, por tabela, a imagem do comunismo e, por tabela, do anticomunismo, como coisas ultrapassadas. Essa imagem, no entanto, é uma ilusão de ótica: ela resulta de uma superposição acidental da propaganda neoliberal triunfalista com o recuo tático do comunismo para reagrupamento de forças. Quem conheça a história do comunismo sabe que esse tipo de recuo é uma constante na conduta desse movimento, e que ele anuncia, não o abrandamento ou dissolução do impulso revolucionário, mas a iminência de reinvestidas em larga escala, numa oscilação pendular que reflete bem a dialética de fazer-se de morto para assaltar o coveiro. Assim, a abertura econômica de Lênin em 1921 preparou o fortalecimento da ditadura em 1929; a liquidação do Comintern em 1943 antecipou a ocupação da Europa Oriental pelas tropas soviéticas em 1945, a revolução chinesa em 1949 e a invasão da Coréia do Sul em 1950; a “desestalinização” de Kruchev em 1956 aplanou o terreno para a revolução cubana de 1959 e o florescimento do terrorismo na década de 60. O desmantelamento da URSS deve ser visto nessa perspectiva. Basta saber que a KGB ainda é o principal esteio do governo Putin para perceber que o desmanche do regime foi feito de modo a preservar a estrutura, as redes de conexão e os meios de ação do movimento comunista internacional.

Ademais, é uma piada negar que o comunismo — ou, se quiserem, o socialismo — exista como regime ainda em vigor, que oprime sob suas patas de ferro nada menos de um bilhão e trezentos milhões de pessoas na China, no Tibete, na Coréia e em Cuba. Se em todos esses lugares o governo faz concessões ao capital privado, isto só pode soar como promissor anúncio de abertura democrática aos ouvidos de quem ignore que concessões idênticas são cíclicas desde 1921, sempre coincidindo com períodos de reagrupamento estratégico e preparação de truculentas reinvestidas. Dez anos atrás, diante da queda do Muro de Berlim, qualquer sr. Bernardes rejeitaria como paranóico o anúncio, para breve, do espetacular ressurgimento das guerrilhas na América Latina, não obstante facilmente previsível para quem houvesse estudado o assunto. Hoje as guerrilhas já estão aí, e os Bernardes do mundo ainda não perceberam nem mesmo que o comunismo existe.

***

Prometi responder a todos os meus críticos, sem fazer ouvidos moucos a nenhum, pois não há ser humano que seja tão desprezível ao ponto de não merecer ao menos um tabefe. A profusão numérica e a qualificação declinante dos objetores menores que vêm surgindo nos últimos tempos têm-me dificultado manter a palavra. Não vejo como explicar, por exemplo, ao sr. Juremir Machado da Silva (ZH) que ele não deveria opinar sobre minhas idéias quando as desconhece ao ponto de lhes atribuir uma filiação ao “pensamento único”, que tem sido a infalível “bête noire” dos meus escritos. Também fico totalmente desarvorado e sem ação ante um crítico como o sr. Marcelo Xavier, da revista “Nao-Til” o qual, pretendendo dar-me lições de estilo, declara, com toda a seriedade, que “ascensão irresistível” é uma aliteração. Que é que hei de fazer por essas criaturas? Posso ser bom conferencista para uma platéia adulta, mas não tenho a mínima aptidão de professor primário. Ouvi dizer que na Bahia há um famoso educador romeno que tem obtido excelentes resultados com crianças mongolóides. Vou tentar obter o endereço dele.

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