A revolução abrangente

A revolução abrangente

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de outubro de 2013

          

Há dois traços essenciais do movimento revolucionário que seus opositores mal conseguem perceber, muito menos utilizar para combatê-lo eficazmente.

O primeiro é a recusa de fixar uma meta definida ou um prazo para alcançá-la. Isso permite que o movimento revolucionário absorva toda sorte de forças e tendências inconexas, unidas tão somente pelo ódio comum a um inimigo que permanece também vago e indefinido o bastante para deixar à liderança revolucionária o espaço livre para toda sorte de arranjos e acomodações oportunistas.

Se você perguntar, por exemplo, em que é que a disseminação do homossexualismo pode contribuir para a estatização da economia, ou em que é que a islamização das massas pode contribuir para a disseminação do homossexualismo, a resposta, em ambos os casos é uma só: em nada.

No entanto essas três tendências estão irmanadas no combate e juntas contribuem para o fortalecimento do poder revolucionário. A elas somam-se o feminismo, o abortismo, o indigenismo, o ecologismo, a negritude, o movimento pelos “direitos dos animais”, a liberação das drogas etc. etc. etc.

A lista não tem fim. Qualquer coisa que tenha alguma força corrosiva serve. Contra que se unem essas forças? Nominalmente é– às vezes – contra uma coisa denominada “o sistema”, mas isso é só um símbolo unificador e não uma entidade existente, já que o movimento revolucionário está amplamente escorado no apoio de organizações que personificam o “sistema” da maneira mais clara e inconfundível, como as fundações bilionárias, a grande mídia, a indústria do show business, os organismos internacionais e assim por diante.

Longe, portanto, de se condensar numa “ideologia”, o movimento revolucionário se caracteriza pela sua capacidade de integrar e utilizar discursos ideológicos os mais diversos e heterogêneos. Ideologicamente, seu único princípio de unidade é o ódio feroz e incansável a tudo o que não seja ele próprio, ou a tudo o que se oponha à expansão ilimitada do seu poder.

A força de coesão que mantém juntos os componentes dessa massa heteróclita de ódios e rancores disparatados situa-se na esfera da estratégia e não da ideologia. Essa unidade estratégica reflete-se no fato de que, pelas vias mais diversas e aparentemente incompatíveis entre si, o movimento revolucionário sai sempre fortalecido, haja o que houver.

O segundo traço a que me refiro reside em que o movimento revolucionário não pretende só modificar a situação aqui ou ali, mas dirigir o curso integral da história do mundo. Desde suas origens mais remotas – as rebeliões dos hussitas e taboritas no século 15 – esse movimento já trouxe consigo uma interpretação abrangente da história universal e a ambição, ou necessidade compulsiva, de amoldar a ela, até em seus detalhes mais mínimos, a vida de toda a humanidade vindoura.

Somente uma outra força histórica abraçou meta semelhante: o Islã. Imaginar que a Cristandade teve objetivo similar é uma ilusão de ótica. O cristianismo sempre lutou pela expansão mundial, mas levando a povos e nações uma mensagem de salvação que se dirigia às almas individuais  – sem trazer junto nenhum projeto abrangente de uma nova sociedade, antes adaptando-se plasticamente às mais diversas realidades sociais, culturais e políticas que encontrava pela frente.

O Islã, ao contrário, é por essência um projeto de sociedade, um código civil completo que regula todas relações humanas — sociais, econômicas, familiares, políticas etc. — e, a rigor, apenas  aceita conviver com outras formas de sociedade enquanto não se sente forte o bastante para islamizá-las de alto a baixo e banir do espaço público – e até mesmo da vida privada – tudo o que não seja expressamente determinado pelo Corão.

Não espanta, portanto, que, após se haverem ignorado mutuamente por longo tempo, o Islã e o movimento revolucionário viessem a se dar as mãos tão logo a luta de classes e a luta de raças, nas primeiras décadas do século 20, com o comunismo e o nazismo,  respectivamente, assumiram a feição explícita de uma guerra de culturas e de nações pelo domínio do globo terrestre.

É certo que essa aliança não poderá durar eternamente. Uma luta de morte entre muçulmanos e revolucionários será inevitável tão logo uns e outros se sintam a salvo de seus inimigos comuns. Mas não há um prazo certo para isso acontecer.

 O que importa é que esses dois traços – a indefinição plástica das metas e a universalidade das ambições – asseguram ao movimento revolucionário uma flexibilidade de meios de ação que desnorteia os seus adversários e lhe permite transfigurar derrotas em vitórias como num passe de mágica.

Os exemplos mais notórios são o sucesso político obtido pelo Vietnã do Norte após a destruição quase completa das suas forças militares, o ressurgimento mundial do esquerdismo quando a queda da URSS parecia anunciar a sua extinção próxima e, em escala menor e mais local, o processo em curso que vai transformando as Farc, de grupo guerrilheiro militarmente moribundo, em força política triunfante, legalmente reconhecida.

Em face desse monstro de mil faces e de inumeráveis tentáculos, as resistências que se apresentam são apenas parciais e episódicas, baseadas quase sempre em uma visão paroquialmente estreita dos fatores em jogo, ora inspirada em valores religiosos, ora em sentimentos patrióticos daqui ou dali, ora em interesses econômicos de grupos e facções.

Na verdade,  essas forças de resistência sobrevivem não pelos seus próprios méritos, mas tão somente pelo caráter essencialmente negativo do movimento revolucionário, um movimento que cresce por autodestruição e nada pode construir de estável.

A moral do Brasil

A moral do Brasil

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de outubro de 2013

          

Se você quer entender e não tem medo de perceber em que tipo de ambiente mental está metido nesse nosso Brasil, nada melhor do que estudar um pouco a Teoria do Desenvolvimento Moral de Lawrence Kohlberg. Enunciada pela primeira vez em 1958 e depois muito aperfeiçoada, ela mede o grau de consciência moral dos indivíduos conforme os valores que motivam as suas ações, numa escala que vai do simples reflexo de autopreservação natural até o sacrifício do ego ao primado dos valores universais.
Kohlberg, que foi professor de psicologia na Faculdade de Educação em Harvard, desenvolveu alguns testes para avaliar o desenvolvimento moral, mas os críticos responderam que isso só media a interpretação que os indivíduos testados faziam de si mesmos, não a sua motivação efetiva nas situações reais. Essa dificuldade pode ser neutralizada se em vez de testes tomarmos como ponto de partida as condutas reais, discernindo, por exclusão, as motivações que as determinaram.
Os graus admitidos por Kohlberg são seis. No mais baixo e primitivo, em que a conduta humana faz fronteira com a dos animais, a motivação principal das ações é o medo do castigo. É o estágio da “Obediência e Punição”. No segundo (“Individualismo e Intercâmbio”), o indivíduo busca conscientemente a via mais eficaz para satisfazer a seus próprios interesses e entende que às vezes a reciprocidade e a troca são vantajosas.No terceiro (“Relações Interpessoais”), os interesses imediatos cedem lugar ao desejo de captar simpatia, de ser aceito num grupo, de sentir que tem “amigos” e distinguir-se dos estranhos, dos concorrentes e inimigos.
No quarto (“Manutenção da Ordem”), o indivíduo percebe que há uma ordem social acima dos grupos e empenha-se em obedecer as leis, em cumprir suas obrigações. No quinto (“Contrato Social e Direitos  Individuais”), ele se torna sensível à diversidade de opiniões e entende a ordem social não como imperativo mecânico, mas como um acordo complexo necessário à convivência pacífica entre os divergentes.
No sexto e último (“Princípios Universais”), ele busca orientar sua conduta por valores universais, mesmo quando estes entram em conflito com os seus interesses pessoais, com a vontade dos vários grupos ou com a ordem social presente.
Essas seis motivações refletem três níveis de moralidade: os dois primeiros expressam a “moralidade pré-convencional”; os dois intermediários,  a “moralidade convencional”, e os dois últimos, a “moralidade pós-convencional”.
Se não atentamos para os discursos, mas para as escolhas reais que as pessoas fa zem na vida, não é preciso observar muito para notar que os indivíduos que nos governam, bem como os seus porta-vozes na mídia e nas universidades, não passam do terceiro estágio, o mais baixo da moralidade convencional, em que a identidade, a coesão e a solidariedade interna do grupo prevalecem sobre a ordem social, as leis, os direitos dos adversários e quaisquer valores universais que se possa conceber (e que desde esse nível de consciência são mesmo inconcebíveis, embora nada impeça que sua linguagem seja macaqueada como camuflagem dos desejos do grupo).
Duas condutas típicas atestam-no acima de qualquer dúvida possível. De um lado, a mobilização instantânea e geral em favor dos condenados do Mensalão. O instinto de autodefesa grupal predominou aí de maneira tão ostensiva e tão pública sobre as exigências da lei e da ordem, que até pessoas identificadas ideologicamente ao partido governante se sentiram escandalizadas diante dessa conduta.
De outro lado, não havendo nenhum movimento político “de direita” que se oponha ao grupo dominante, este dirige seus ataques contra meros indivíduos e movimentos de opinião sem a menor expressão política, fingindo e depois até sentindo ver neles uma ameaça eleitoral ou o perigo de um golpe de Estado. Aí o instinto de autodefesa grupal assume as dimensões de uma fantasia persecutória que se traduz na necessidade de calar por todos os meios qualquer voz divergente, por mais débil e apolítica que seja.
Também não é preciso nenhum estudo especial para mostrar que essa conduta, normal na adolescência, quando a solidariedade do grupo é uma etapa indispensável na consolidação da identidade pessoal, não é de maneira alguma aceitável em cidadãos adultos investidos de prestígio, autoridade e poder de mando. Aí ela passa a caracterizar precisamente a associação mafiosa, a solidariedade no crime.
É evidente que, numa sociedade onde essa é a mentalidade do grupo dominante, os níveis superiores de consciência moral (pós-convencionais) se tornam cada vez mais abstratos e inapreensíveis, de modo que o máximo de moralidade que se concebe é o quarto grau, o apego à lei e à ordem. Os indivíduos cuja conduta evidencia essa motivação tornam-se então emblemas do que de mais alto e sublime uma sociedade moralmente degradada pode imaginar, e são quase beatificados. O ministro Joaquim Barbosa é o exemplo  típico.
  Os dois graus superiores da escala são exemplificados por um número tão reduzido de pessoas, que já não têm nenhuma presença ou ação na sociedade e passam a existir apenas em versão caricatural, como fornecedores de chavões para legitimar e embelezar as condutas mais baixas.
A autopreservação paranooica do grupo dominante envolve-se com frequência na linguagem dos “direitos humanos” (quinto grau), e qualquer imbecil que tenha lido a Bíblia já sai usando a Palavra de Deus (sexto grau) como porrete para atemorizar os estranhos e impor a hegemonia do grupo “fiel” sobre os “infiéis” e “hereges”.
Isso, e nada mais que isso, é a moralidade nacional.

O idiota em sentido estrito

O idiota em sentido estrito

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de outubro de 2013

          

Termos como “idiota”, “imbecil”, “mentecapto” etc. podem ser usados como meros xingamentos. Neste caso, não indicam nenhuma deficiência mental  objetiva no indivíduo a que se aplicam, mas somente a raiva que os falantes sentem dele – a qual pode até mesmo ser, e freqüentemente é, causada pela percepção de uma superioridade intelectual que os incomoda e humilha.
            Não uso jamais – repito: jamais – esses termos com esse sentido. Quando digo que alguém é idiota ou imbecil, ou quando o sugiro mediante outras palavras, é porque notei claramente, na pessoa de quem falo, uma ou várias das 28 deficiências intelectuais assinaladas pelo célebre educador romeno Reuven Feuerstein (v. por exemplo aqui), as quais resultam sempre em julgamentos impulsivos, deslocados da situação.  
            Esse erro, o mais freqüente hoje em dia entre os debatedores brasileiros de qualquer assunto, corresponde esquematicamente à falácia lógica que os antigos denominavam “ignoratio elenchi”, em que o sujeito pensa ter provado alguma coisa quando de fato provou, se tanto, outra completamente diversa. Isso acontece, evidentemente, quando o cidadão é incapaz de entender qual o ponto em debate. É impossível que um estudante não adquira esse vício quando adestrado desde pequeno para remeter tudo de volta, sempre e sistematicamente, a meia dúzia de chavões tidos como universalmente explicativos, em vez de tentar perceber o que está realmente em jogo na discussão. O apelo compulsivo a rótulos infamantes como “fascismo”, “fundamentalismo religioso”, “preconceito e discriminação”, “racismo”, “homofobia”, “teoria da conspiração”, “elite exploradora” etc., é hoje praticamente obrigatório e funciona como substitutivo socialmente aprovado do esforço de compreender aquilo que se pretende impugnar mediante o emprego fácil e desesperadoramente mecânico desses termos.
            O controle “politicamente correto” do vocabulário tenta vestir uma camisa-de-força verbal no adversário mas termina por aleijar intelectualmente o próprio usuário desse artifício, reduzindo-o à condição de repetidor histérico de insultos completamente despropositados.
            Como o que no Brasil de hoje se chama “educação universitária” consiste eminentemente em adestrar os alunos nessa prática, não é de espantar que quatro entre cada dez estudantes das nossas faculdades sejam analfabetos funcionais, o que não significa que os outros seis tenham uma inteligência à altura das funções para as quais ali se preparam.
            Demonstrações de inépcia em doses francamente escandalosas são freqüentes não só entre maus estudantes, mas entre pessoas que ocupam os postos mais destacados na esfera da alta cultura neste país. Quando, por exemplo, o escritor Luiz Ruffato é aplaudido pela mídia ao classificar como “genocídio” a redução do número de índios brasileiros de quatro milhões (número hipotético) para 900 mil desde os tempos de Pedro Álvares Cabral até hoje, tanto ele quanto sua platéia demonstram que não têm a menor idéia do que venha a ser um genocídio e só usam a palavra como reforço da identidade grupal dos “bons” contra os “malvados”. “Pensar”, no Brasil, significa que o sujeito se apaixona por um símbolo do que lhe parece “o bem” e “a justiça”, e imediatamente liga o gerador de lero-lero para acabar com o mal no mundo.

            Outro tanto deve ser dito do dr. Miguel Nicolélis, que se escora na sua autoridade de neurocientista para dizer que Jesus, Abraão e Maomé eram apenas esquizofrênicos que imaginavam falar com Deus. Esse homem estuda o cérebro há décadas, mas ainda não se deu conta de que é impossível encontrar, nesse órgão, qualquer prova de que algum objeto pensado exista ou inexista fora dele

 .

Isto aplica-se a Deus como a um gato, a uma pedra ou a uma banana. Aplica-se aliás até ao próprio cérebro. Com toda a evidência, o ilustre membro da Academia Pontifícia de Ciências não entende o alcance da sua própria afirmação, produzida no gerador de lero-lero para fazer bonito ante pessoas que também não a compreendem. Seis meses de estudo das “Investigações Lógicas” de Husserl não lhe fariam nenhum mal.

            Já nem comento os palpiteiros enragés que, em explosões verbais de uma comicidade irresistível, aparecem a toda hora professando dar cabo do Olavo de Carvalho de uma vez por todas. Um deles, a quem eu tentava explicar que não é possível ter serviço públicos gratuitos e ao mesmo tempo “acabar com a desigualdade social”, não parecia entender que um serviço público só é gratuito quando custeado por alguém que não é o seu beneficiário: a redução da desigualdade social distribui as despesas mais equitativamente entre todos e acaba automaticamente com a gratuidade. Numa situação idealizada, onde todos tivessem ganhos equivalentes, das duas uma: ou todos pagariam contribuições iguais para custear os serviços independentemente de usá-los ou não, ou cada um pagaria proporcionalmente aos serviços que recebesse. No primeiro caso estaria imediatamente instaurada a desigualdade entre os que pagam sem usar e os que usam sem pagar. No segundo, os serviços não seriam gratuitos de maneira alguma. Por mais que eu explicasse, analisasse e desenhasse essa equação simples, o sujeito, homem de formação universitária, continuou esperneando e jurando que eu era um adepto da injustiça social.
            Só pode haver divergência de opiniões entre pessoas com nível similar de inteligência e conhecimento. Com mentecaptos, só o que existe é uma dificuldade de comunicação quase invencível.