Direitista à força

Direitista à força

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de maio de 2014

          

Desde que comecei a ler livros, meu sonho era um dia emergir do meio social culturalmente depressivo e ter um círculo de amigos com quem pudesse conversar seriamente sobre arte, literatura, filosofia, religião, as perplexidades morais da existência e a busca do sentido da vida – o ambiente necessário para um escritor desenvolver sua autoconsciência e seus talentos. Li centenas de biografias de escritores e todos eles tiveram isso.

Nunca realizei esse sonho, nunca tive esse ambiente estimulante. Por volta dos quarenta anos, entendi que não o teria nunca, e decidi que minha obrigação era fazer tudo para que outros o tivessem.

Minha atividade de ensino é voltada toda para isso. É com profundo desprezo que ouço gente dizendo que o objetivo dos meus esforços é “criar um movimento de direita”.

Não conheço coisa mais inútil do que tomadas de posição doutrinal em política. O sujeito adota certas regras gerais e delas deduz o que se deve fazer na prática. Por exemplo, acredita em liberdade individual e daí conclui que não se pode proibir o consumo de cocaína e crack. Ou acredita em justiça social e por isso acha que o governo deve controlar todos os preços e salários.

O que caracteriza esse tipo de pensamento é a arbitrariedade das premissas, escolhidas na base da pura preferência pessoal, e o automatismo mecânico do raciocínio que leva às conclusões. No Brasil, praticamente todas as diferenças entre direita e esquerda se definem assim.

A coisa torna-se ainda pior pela tendência incoercível de raciocinar a partir de figuras de linguagem, chavões e clichês, em vez de conceitos descritivos criticamente elaborados. Isso torna o “debate político nacional” um duelo entre fetiches verbais imantados de uma carga emocional quase psicótica. Os fatos concretos, a complexidade das situações, as diferenças entre níveis de realidade, o senso das proporções e das nuances, ficam fora da conversa.

Aristóteles já ensinava que a política não é uma ciência teorético-dedutiva, na qual as conclusões se seguissem matematicamente das premissas, mas uma ciência prática enormemente sutil, onde tudo dependia da frónesis, o senso da prudência, assim como do exercício da dialética. Mas a dialética é a arte de seguir ao mesmo tempo duas ou mais linhas de raciocínio, e a impossibilidade de fazer isso é, dentre as 28 deficiências de inteligência assinaladas pelo pedagogo israelense Reuven Feuerstein, certamente a mais disseminada entre estudantes, professores, jornalistas e formadores de opinião no Brasil.

Não raro essa deficiência é tão arraigada que chega a determinar, por si, toda a forma mentis de alguma personalidade falante. Naquilo que neste país se chama um “debate”, o que se observa nos contendores é a incapacidade de apreender o argumento do adversário, a ausência de uma verdadeira relação intelectual, substituída pela reiteração de opiniões prontas que o debate em nada enriquece.

O que me colocou contra a esquerda nacional desde o início dos anos 90 não foi nenhuma tomada de posição “liberal” ou “conservadora”, mas a simples constatação de dois fatos: 1) a instrumentalização política das instituições de cultura e ensino pela “revolução gramsciana” estava acabando com a vida intelectual no Brasil e em breve iria reduzi-la a zero, como de fato veio a acontecer; 2) a opção preferencial dos partidos de esquerda pelo lumpenproletariat, tomado erroneamente como sinônimo de “povo” por influência residual de Herbert Marcuse, estava destinada a transformar a existência cotidiana dos brasileiros no carnaval sangrento que hoje vemos por toda parte.

Como é óbvio e patente que a solução de quaisquer problemas na sociedade depende da dose de inteligência circulante e do nível de consciência moral da população, daí decorria que, para denunciar a atividade maligna da esquerda nacional, que estava destruindo essas duas coisas, não era preciso que eu me definisse quanto àqueles inumeráveis pontos específicos de política econômico-social em que tanto se deliciam os doutrinários de todos os partidos e que em muitos casos eu considerava superiores à minha capacidade de análise.

Nos meus artigos, aulas e conferências, como o pode atestar qualquer observador isento, não se trata nunca de advogar determinada política em particular, mas apenas de lutar para que as condições intelectuais e morais mais genéricas e indispensáveis a qualquer debate político saudável não se percam ao ponto de desaparecer por completo do horizonte de consciência da classe nominalmente “intelectual”.

Quando essas condições forem restauradas, não terei a menor dificuldade de me voltar para assuntos da minha preferência e deixar que o debate político transcorra normalmente sem a minha gentil intervenção.

Mas o fato é que, se a deterioração mental do País começou já no tempo dos militares, logo depois a esquerda triunfante a agravou ao ponto da mais desesperadora calamidade, e o fez de propósito, planejadamente, maquiavelicamente, disposta a tudo para impor, de um lado, a hegemonia cultural de cabos eleitorais, agitadores de botequim e doutores salafrários com carteirinha do Partido; de outro, a beatificação do lumpenproletariado e a completa perversão da consciência moral na população brasileira.

Até o momento nenhum partido de esquerda deu o menor sinal de arrependimento. Ao contrário, cada um se esmera na autoglorificação como se fosse uma plêiade de heróis e santos. Assim, não me deixam remédio senão estar na direita, no mínimo porque esta, no momento, não tem os meios de concorrer com a esquerda na prática do mal.

O direitista ideal

O direitista ideal

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de maio de 2014

          

Entre os direitistas chiques no Brasil de hoje, a maior das virtudes é a pusilanimidade: nunca diga nada com que a mídia já não tenha concordado, nunca cite o Olavo de Carvalho ao repetir o que ele dizia dez anos antes, e sobretudo capriche na moderação ao ponto de não parecer mais direitista do que o compatível com a admiração pelas grandes figuras do esquerdismo internacional, especialmente Barack Hussein Obama.

Nelson Mandela, então, nem se fala. Afinal, quem sintetiza melhor os ideais da “zé-lite” do que um comunista vendido aos Rockefellers? (Melhor que isso, só o Lula, homenageado na mesma semana, em Davos e em Havana, por sua conversão ao capitalismo e por sua fidelidade ao comunismo.) Sem dizer pelo menos umas quinze palavrinhas em louvor desse grande homem, ninguém no Brasil adquire o salvo-conduto para ser um direitista de respeito.

Se ao criticar alguma idéia do Frei Betto você puder chamá-lo de “meu querido”, você será, no consenso da mídia, o direitista perfeito. Afinal, só pessoas de mentalidade truculenta, reencarnações talvez do nefando Dr. Fleury, podem imaginar que os comunistas têm más intenções.

Assegure a seus leitores e ouvintes que a diferença entre esquerda e direita é só a preferência pelo intervencionismo estatal ou pela economia de mercado; e, quando um comunista aparecer fazendo a apologia do livre comércio – como, em seu tempo, já o fizeram Karl Marx e Lênin, sem que você o saiba –, elogie-o por ser um esquerdista esclarecido, “aberto à modernidade”.

E nunca esqueça de dizer que quem não foi comunista aos dezoito anos não tem coração. Mediante essa frase maravilhosa, você provará superior moderação e equilíbrio, dividindo o universo em duas partes iguais e concedendo ao comunismo o monopólio da virtude moral, ao capitalismo o da eficiência econômica. Se puder, cite em apoio dessa tese a Fábula das Abelhas de Bernard de Mandeville ou alguma coisinha de Ayn Rand.

Sobretudo, nunca tenha a menor consciência de que, ao fazer isso, você é o bilionésimo que consagra como uma fatalidade metafísica o abismo entre o ideal e o real, o qual um século e meio atrás Karl Marx já identificou como um chavão infalível do pensamento burguês.

Em suma: seja um burguês, pense como um burguês, fale como um burguês. Seja aquele adversário padrão do qual a esquerda jamais tem de esperar alguma surpresa.

Ah, em tempo: ao falar do PT, chame-o de “jurássico”. Isso não pode faltar. O primeiro a chamar a esquerda de “jurássica” foi Roberto Campos, nos anos 70 do século 20. Naquele momento, foi um achado. Entre os meus modestos títulos de glória literária, está o de jamais ter copiado essa expressão. Mas há pessoas que, quando a empregam hoje em dia, sentem um orgasmo de originalidade estilística. E seus leitores acreditam piamente que aí reside o argumento mais devastador contra o petismo. Use esse termo repetidamente e obterá um lugar no conselho consultivo de alguma entidade liberal.

Quando alguém lhe mostrar algum sinal patente da hegemonia gramsciana nas universidades ou no show business, responda que isso é paranóia, já que indícios similares aparecem de montão nos EUA, país onde, como todo mundo sabe, não existem comunistas. Afinal, o ex-ou-futuro-presidente Lula já não nos ensinou que (sic) “Não existe nada de mais anticomunista do que o cinema americano”?

Se por acaso ouvir falar da invasão muçulmana no Ocidente, diga, com ares de superior tranquilidade olímpica, que nada disso existe, que o terrorismo islâmico é puro atraso cultural e fundamentalismo religioso, coisas já superadas no nosso mundo de progresso científico-tecnológico.

E se algum engraçadinho vier lembrar que em 2002 você assegurou que a vitória do PT era impossível; que você um dia jurou que o Foro de São Paulo não existia; que uns anos atrás você dizia que a ligação PT-Farc era invencionice de adeptos da ditadura; que você acreditou que Barack Hussein Obama era a salvação dos EUA; que a idéia de a Rússia invadir países em torno sempre lhe pareceu loucura de saudosistas da Guerra Fria; e que, em suma, você nunca acertou uma previsão ou análise política ao longo de toda sua porca vida, faça como todos os seus iguais. Diga: “o que vem de baixo não me atinge”, e continue, impávido colosso, treinando diante do espelho essa esplêndida aparência de normalidade, maturidade e equilíbrio, que tem sido o segredo do seu sucesso na existência.

Duguinismo e ignorância

Duguinismo e ignorância

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de abril de 2014

          

Os leitores deste jornal são em geral empresários, pessoas com grande responsabilidade na área econômico-social, e é da máxima importância que tomem suas decisões estratégicas com base em informações fidedignas. Lembro a esses leitores que há nove anos venho aqui fazendo análises e previsões que nunca, nem uma única vez, a passagem do tempo e o acúmulo de fatos deixaram de confirmar.

As mais confirmadas de todas vieram a ser, especialmente, aquelas que, num primeiro momento, mais foram alvos de chacota, deboche e negações peremptórias, proferidas com ares de desprezo olímpico pelos representantes da grande mídia e do establishment universitário e repetidas infindavelmente por estudantes e blogueiros semi-analfabetos.

O caso do Foro de São Paulo é somente o mais notório. Menos vistoso, porém incomparavelmente mais importante, é o prof. Alexandre Duguin (alguns preferem escrever “Dugin”), cujo papel decisivo no cenário mundial os “formadores de opinião”, tanto jornalísticos quanto universitários, insistem em ignorar ou minimizar, mantendo assim o público na total obscuridade quanto a fatores cruciais que determinam o curso das coisas na política internacional.

Em 2011 tive com esse eminente pensador e estrategista russo um longo debate por internet, que se prolongou de março a julho e cujo texto integral foi depois publicado pela Vide Editorial, de Campinas (“Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Um Debate entre Alexandre Dugin e Olavo de Carvalho”, 2012), sendo também acessível, em versão na língua inglesa, no site do Inter-American Institute (www.theinteramerican.com).

Aceitei o debate porque já acompanhava o desenvolvimento das idéias do professor Duguin desde pelo menos 2003, tendo sido o primeiro a mencionar-lhe o nome na mídia nacional, num tempo em que até nos Estados Unidos ele era praticamente ignorado (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/030426globo.htm). Naquela época a doutrina que ele compartilhava com o escritor Eduard Limonov ainda era conhecida como “nacional-bolchevismo”.

Ao romper com Limonov, uns anos depois, Duguin trocou o nome do sistema para “eurasianismo”. Os motivos da ruptura me chamaram a atenção: Limonov, crítico feroz da administração Putin, foi parar na cadeia, enquanto Duguin, filho de oficial da KGB, recebia do governo russo toda sorte de homenagens e favores.

Aos poucos a coerência entre a estratégia político-militar de Vladimir Putin e os preceitos do eurasianismo mostrou ser muito mais que mera coincidência, especialmente quando se soube que Putin havia colocado à disposição do prof. Duguin um vasto escritório repleto de assessores, tudo pago pelo Estado.

Na época do debate, já estava claro que o eurasianismo era literalmente a estratégia do governo russo, e de que sem o conhecimento aprofundado do pensamento do prof. Duguin era tão impossível compreender as ações de Putin quanto seria inviável compreender a política externa americana, de Eisenhower a Gerald Ford, ignorando as idéias de Henry Kissinger.

O motivo inicial que levou os iluminados opinadores a achincalhar essa obviedade como um produto extravagante da minha mente insana foi, claramente, o natural despeito do ignorante ante coisas que estão acima da sua capacidade. As idéias do prof. Duguin são uma síntese complexa dos seguintes elementos: o marxismo-leninismo-stalinismo, a geopolítica de Halford J. Mackinder e Karl Haushoffer, o messianismo russo de Aleksei Khomiakov, Nicolai Danilevski, Fiodor Dostoiévski e Vladimir Soloviev, o islamismo, o esoterismo de René Guénon e Julius Evola, bem como o pensamento “revolucionário conservador” (protonazista) de Moeller van den Bruck e Edgar Julius Jung.

Existe alguém, nos meios jornalísticos e acadêmicos deste país, que conheça todas essas áreas do pensamento pelo menos o suficiente para entender do que o prof. Duguin está falando? Não existia em 2003, não existia em 2011 e não existe agora.

Feliz ou infelizmente, com exceção de van der Bruck e Edgar Jung, que só depois disso vieram a atrair o meu interesse, todos os outros mencionados eram autores que eu já vinha estudando desde trinta anos antes do meu confronto com o prof. Duguin. O eurasianismo apresentou-se para mim, portanto, com uma inteligibilidade imediata que era absolutamente inacessível à classe intelectual brasileira. Esta só podia reagir à novidade estranha e indigerível de duas maneiras: fingindo desprezo, como a raposa da fábula, ou prosternando-se em adoração hipnótica ante a força do incompreensível. O público a quem chega alguma informação sobre o duguinismo divide-se, pois, em despeitados e deslumbrados.

Mesmo nos Estados Unidos foi preciso muito tempo para que o duguinismo chegasse a despertar alguma reação inteligente, mesmo nos círculos mais diretamente envolvidos nos altos debates da política externa americana.

O último número da Foreign Affairs trouxe um artigo interessante de Anton Barbashin e Hannah Thoburn, “Putin’s Brain: Alexander Dugin and the Philosophy Behind Putin’s Invasion of Crimea” , e na revista National Review, de 3 de março, apareceu Robert Zubin escrevendo sobre “The Eurasianist Threat“.

Já é um começo. Mas a compartimentação dos estudos universitários americanos em especialidades estanques ainda é um obstáculo à compreensão do duguinismo, sistema que, com todos os acertos notáveis e erros monstruosos que contém, se notabiliza antes de tudo pelo universalismo abrangente dos seus interesses e perspectivas.