O filho do Imbecil Coletivo

O filho do Imbecil Coletivo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de setembro de 2014

          

O traço estilístico mais constante e saliente nos escritos dos imbecis é a indistinção entre coisas objetivamente diferentes que têm o mesmo nome. Levado pelo potente automatismo da construção verbal separado da percepção, da memória e da imaginação, o sujeito extrai, de premissas referentes a um objeto, conclusões sobre outro objeto completamente diverso designado pela mesma palavra. Isso é o que propriamente se chama “equívoco”: tomar a identidade nominal como real. O estilo característico dos imbecis é um arquitetura de equívocos.

Desfazer um equívoco não é difícil. O problema com o imbecil é que ele não sabe que o é, nem imagina, pois, que deveria deixar de sê-lo; e os equívocos que comete são tantos e tão grosseiros que não é possível desfazê-los sem tornar evidente que o desempenho da sua inteligência está abaixo do normal – um dano à sua querida auto-imagem contra o qual ele se defenderá com todas as suas forças. A imbecilidade, como o segredo esotérico, protege-se a si mesma.

Pessoas normais podem superar seus erros porque apreciam a inteligência superior e desejam aprender com ela, ao passo que o imbecil genuíno não percebe superioridade nenhuma ou, quando a percebe, deseja achincalhá-la ou exorcizá-la para libertar-se de toda obrigação de melhorar.

O imbecil a que aqui me refiro não é o mesmo que o “imbecil coletivo” do qual falei outrora. Este, conforme o defini na ocasião, era “uma comunidade de pessoas de inteligência normal ou superior que se reúnem com o propósito de imbecilizar-se umas às outras”. Decorrida uma geração, o imbecil de agora já é o filho ou produto acabado do imbecil coletivo: não precisa imbecilizar-se porque imbecilizado está. Não tendo participado dos afazeres da alta cultura como o seu antepassado e mentor, nem procura macaquear o exercício da inteligência, porque o desconhece e não imagina em que possa consistir semelhante coisa.

Um exemplo irrisório, típico, veio-me de um rapaz que, diante da minha asserção de que a caça esportiva é hoje o meio mais eficaz de manter o equilíbrio entre as várias populações animais num dado território, proclamou indignado que, nos EUA, os caçadores extinguiram, no século 19, não sei quantas espécies de bichos.

A ira do cidadão contra o símbolo “caça” o impedia de ver que por trás desse nome se ocultavam duas atividades diferentes e antagônicas. Os homens que mataram lobos, ursos, raposas e bisões em quantidade descomunal e obscena, na época da ocupação do Oeste americano, eram eminentemente comerciantes de peles, que esfolavam os animais abatidos e saíam em busca de mais peles, deixando a carne apodrecendo sob a chuva e sob o sol.

Essa atividade, cujo análogo residual persiste na África sob a forma do comércio ilegal de marfim malgrado toda a repressão governamental, está rigorosamente excluída da caça esportiva tal como se pratica hoje no Ocidente. Aqui o caçador, ao abater um veado, um alce, um urso, está sobretudo em busca de algo que possa abastecer a sua geladeira, a de seus amigos ou a de alguma instituição de caridade, considerando a pele (ou os chifres) como um bônus ou troféu que atesta sua qualificação no exercício da tarefa.

Isso é assim não apenas por uma convenção unânime entre os caçadores, mas pela força das leis. Leis que não foram instituídas contra os caçadores, mas por eles mesmos e pelas organizações que os representam, e aliás por uma razão muito simples: o controle dos efeitos objetivos da ação humana sobre o meio natural é inerente a toda busca organizada de alimentos, seja na agricultura ou na caça.

Ninguém em seu juízo perfeito, muito menos um caçador esportivo, é louco de destruir as fontes do alimento que procura. Por isso mesmo é que a única exceção à caça como busca de alimentos é a liquidação de predadores que destroem fontes de alimentos. E é também por isso que as associações de caçadores têm sido, desde os tempos de Theodore Roosevelt, as maiores promotoras do conservacionismo.

Você pode, se quiser, chamar de “caça” essas duas atividades opostas: a do destruidor de espécies animais e a do caçador conservacionista de hoje em dia. Contudo, não pode, exceto por imbecilidade, aplicar ao segundo as conclusões daquilo que acha que sabe do primeiro. E, se o faz com eloquência indignada, só acrescenta à inépcia o ridículo da presunção.

A arte imbecil da conclusão equívoca tem ligação profunda e orgânica com outros dois fenômenos de patologia intelectual a que já me referi em artigos anteriores: a verbalização histérica e o pensamento metonímico.

A primeira consiste em o sujeito acreditar em algo, não porque o viu ou dele teve ciência, mas porque conseguiu dizê-lo e porque a mera forma gramatical da frase acabada tem para ele um valor de prova. O pensamento reduz-se, dessa maneira, à autopersuasão barata, em que a ênfase emocional postiça faz as vezes da convicção profunda e séria.

O vício do raciocínio metonímico consiste em tomar a parte pelo todo, ou o instrumento pela ação, mas enxergando aí uma identidade real em vez de uma mera figura de linguagem. No exemplo citado, a “caça” é tomada como sinônimo de “matar o animal”, quando, na realidade, o ato de matar é apenas o instrumento, o meio pelo qual se perfazem duas atividades objetivamente diversas e incompatíveis.

Extinguindo o inexistente

Extinguindo o inexistente

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de setembro de 2014

          

Semanas atrás escrevi no meu Facebook que, se Marina Silva rompesse publicamente com o Foro de São Paulo e prometesse liquidá-lo caso eleita para a Presidência da República, não hesitaria em votar nela e apoiar sua candidatura pelos modestos meios ao meu alcance. Logo apareceu na internet uma entrevista à CNT, na qual a candidata anunciava a intenção de acabar com o Foro.

Dizem que a entrevista é falsa, e até acredito que seja, mas de qualquer modo ela expressa o que os admiradores de Marina querem que os eleitores “de direita” pensem dela, e nesse sentido é muito significativa, precisamente pelos atos falhos freudianos que, por trás da boa imagem pretendida, revelam uma ambiguidade inquietante.

Por um lado, Marina – ou quem pôs palavras na sua boca -– prometia extinguir até “o último vestígio” da maligna entidade, o que é uma notícia animadora. Mas, de outro afirmava que o Foro não existe na prática, jamais tendo passado de uma tentativa do sr. Lula, o que é manifestamente falso. O Foro continua em plena atividade, numa atmosfera de euforia que seus feitos justificam integralmente.

A Declaração Final do XX Encontro, realizado em La Paz, Bolívia, de 25 a 29 de agosto último, deixa isso claro: “Decorridos vinte e cinco anos da criação do Foro de São Paulo, uma das experiências mais bem sucedidas e unitárias da esquerda na região latino-americana e caribenha, o balanço da situação é indubitavelmente favorável às forças que o compõem. Quando o Foro de São Paulo foi criado, um só país dessa região era governado por um partido pertencente a ele, e hoje são mais de dez.” ( http://forodesaopaulo.org/declaracion-final-del-xx-encuentro-del-foro-de-sao-paulo/). Para um agente histórico que “não existe na prática”, essas vitórias são mais do que espetaculares: são mágicas. Na verdade, o Foro continua sendo a maior, mais poderosa e mais eficiente organização política que já existiu no continente latino-americano.

O texto de “Marina” dizia ainda que a ligação do PSB com o Foro de São Paulo “é um boato espalhado em tempo de eleição para confundir leigos” e que “quem fazia parte (do Foro) era uma ala do PSB ligada ao governo, desativada há anos”. Isso também é falso. O PSB ainda é um membro ativo do Foro e participou do seu mais recente encontro (www. psb40.org.br/ not_det.asp?det=5808) em La Paz.

Por fim, vinha a afirmativa de que “esses boatos são plantados pela turma do Aécio Neves”. Isso talvez seja o mais falso de tudo. Tanto o sr. Neves quanto os seus adeptos e, de modo geral, o seu partido, têm-se notabilizado, sobretudo, pelo silêncio obstinado que mantêm em torno do Foro de São Paulo, ao ponto de despertar a suspeita de cumplicidade ao menos passiva.

Que algo nas relações entre o PSDB e o Foro não está claro nem pretende estar, é algo que se percebe sem dificuldade pela reunião discreta entre dirigentes do Foro e o sr. Fernando Henrique Cardoso, na presença de alguns líderes do Partido Democrata americano, realizada em Miami em maio de 1993.

Essa reunião só foi noticiada por um único jornal, o Granma (edição cubana, não internacional), e justamente as cópias dessa edição, quando pus um aluno meu a procurá-las em 2008, haviam desaparecido da Biblioteca do Congresso e das suas subsidiárias. Coincidência ou não, a diretora da seção latino-americana da Biblioteca do Congresso em 2008 era a mesma pessoa que tinha organizado a reunião de 1993.

Quem levantou a lebre da ligação entre o PSDB e o Foro tão logo apareceu a candidatura Marina não foi nenhum emissário do sr. Aécio Neves. Fui eu, que sou tão entusiasta do sr. Neves quanto do consumo de pudim de alface diet. E não puxei o assunto para favorecer candidatura nenhuma, porém, bem ao contrário, para sugerir que a presente eleição presidencial deveria ser suspensa pelo TSE, dada a ilegalidade dos dois partidos mais favorecidos para o segundo turno.

Esta é, seguramente, a eleição mais irregular, mais ilegal que já se realizou no Brasil. A Lei Eleitoral de 1995 é categórica e inequívoca: diz o Art. 28: ” O Tribunal Superior Eleitoral… determina o cancelamento do registro civil e do estatuto do partido contra o qual fique provado… (II) estar subordinado a entidade ou governo estrangeiros.”

Que o Foro de São Paulo é uma entidade estrangeira, multinacional, criada em Havana por Fidel Castro e Lula; que a maior parte das organizações que o compõem são de fala espanhola; e que uma das especialidades do Foro, conforme confessou o próprio Lula, é ajudar os governantes esquerdistas a interferir em segredo na política interna dos países vizinhos – nada disso é coisa de que se possa duvidar razoavelmente.

Pouco importando quem leve a maioria dos votos, se Marina Silva ou Dilma, esta eleição já tem um único vencedor previsto e assegurado: o Foro de São Paulo.

Para piorar as coisas, a candidata que aparece na entrevista com a promessa de eliminar o monstro já vai desde logo acobertando as atividade dele sob o pretexto pueril de que ele não existe na prática. Cabe portanto perguntar se, por “extinguir os seus últimos vestígios”, os autores da farsa não estão confessando, involuntariamente, que Marina, uma vez no poder, vai eliminar só os vestígios, os traços patentes do Foro, deixando que por baixo disso a coisa real continue existindo sob outra identidade, sob outro nome ou sem nome nenhum, mais invisível e onipresente do que nunca.

Afinal, quem pode levar a sério uma promessa de extinguir o que não existe?

A degradação dos melhores

A degradação dos melhores

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 31 de agosto de 2014

          

No último número da elegante revista do Banco Itaú Personnalité, Ruy Castro enfatiza o contraste entre duas fases da existência do poeta Vinícius de Moraes:

“Há um Vinícius de Moraes sobre o qual não resta a menor dúvida: … o compositor, o letrista e o showman; o diplomata, o homem do mundo e o amigo de ilustres; o boêmio, sempre com um uísque a bordo, e o liberal, o homem de esquerda, com muitas amizades entre os comunistas; o cantor da beleza, o homme à femmes, que se casou nove vezes e vivia em permanente estado de paixão; o capitão do mato e o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô; o diletante da crônica, do teatro e do cinema…”

“Mas houve também um Vinícius tão real quanto esse acima, e que seus admiradores mal conseguiriam reconhecer se descrito sem as necessárias ressalvas. Um Vinícius profundamente católico, metafísico, passadista, politicamente de direita, simpático ao fascismo, íntimo de assombrações, inimigo do cinema falado, alérgico ao jazz moderno, desconfiado da juventude – e olhe que ele também era jovem – e certo de que o sexo era uma coisa apenas espiritual. O que? Sim, esse era o Vinícius de 1933.”

Sim, esses dois Vinícius existiram, e, se o do primeiro parágrafo é ainda um personagem popular decorridos trinta e tantos anos da sua morte, o do segundo permanece tão desconhecido que Ruy Castro tem de revelá-lo a um grupo de admiradores estupefatos, numa revista de poucos e requintados leitores.

Só há um problema. O “Vinícius de 1933”, que Ruy Castro descreve em termos que fazem dele um monstrinho antediluviano, era, malgrado algumas esquisitices inegáveis, um dos poetas mais sérios e profundos do idioma. Já o Vinícius nacionalmente conhecido – para Ruy Castro, o único normal e digno de admiração irrestrita – nunca passou de uma figura do show business, um velho caricato macaqueador da moda juvenil, gabando-se de ser “o branco mais preto do Brasil”, mas bebendo uísque importado em vez de cachaça, namorando populisticamente mulheres da alta sociedade, e escrevendo nada mais que sambinhas autocongratulatórios e umas frases de efeito que se conservaram na memória nacional não por meio da história literária, mas da indústria de discos e do governo que ele tanto ludibriou, vivendo de dinheiro público sem nem marcar o ponto na repartição.

“A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros pela vida”, “A mulher amada é o tempo passado no tempo presente no tempo futuro no sem tempo”, “Quem já passou por essa vida e não viveu pode ser mais, mas sabe menos do que eu…”, “Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém” e milhares de tolices semelhantes, que parecem ter sido produzidas especialmente para diários de moças, assinalam com toda a clareza a decomposição de um talento de poeta e de um caráter de homem, diluídos em álcool para mais rentosa distribuição comercial.

Não é coincidência, de maneira alguma, que essa transfiguração da literatura em cocô acompanhasse pari passu a aproximação cada vez mais íntima do poeta com os grupos de esquerda, que naqueles anos da ditadura precisavam desesperadamente de poster men. Se para servir a esse fim um grande homem tinha de ser infantilizado por meio de paparicações grudentas e seduções corruptoras, tanto melhor.

Era uma política consciente. Lembro, como se fosse hoje, o zunzum entre os comunistas da redação quando Carlos Alberto Libânio Christo, o “Frei Betto”, veio trabalhar na Folha, naquele intervalo de retorno ao ambiente profano, que nos seminários precede a opção definitiva pela ordenação sacerdotal. Era necessário, era urgente, comentavam, fazer amizade com o padreco, embebedá-lo, levá-lo a boates e puteiros, fazer dele um membro em regra da patota dos bons.

A ética por trás disso era a boa e velha inversão: já que a sociedade burguesa é corrupta e hipócrita, é preciso combatê-la desde dentro por meio da corrupção ostensiva, exibida, orgulhosa de si. Os serviços prestados ao Partido santificavam tudo. Quando Vinícius trocou o cristianismo por uísque, mulheres, samba e comunismo, tornou-se um modelo de virtudes.

Às vezes não era preciso chegar a tanto. O Partido sabia tocar o ponto sensível de cada um. Se o alvo escolhido fosse um pobretão apavorado com a perspectiva de morrer de fome, como Otto Maria Carpeaux, bastava oferecer-lhe empregos em troca de favores prestados, depois ir pedindo cada vez mais favores até que consumissem por inteiro o tempo e os talentos do infeliz, bajulando-o e aplaudindo-o à medida que se imbecilizava cada vez mais.

O apoio na hora da encrenca sempre deixava marcas fundas. Roland Corbisier, brilhante intelectual do Partido Trabalhista, intermediou o apoio dos comunistas à candidatura de Negrão de Lima ao governo do Rio em 1965, foi demitido do Ministério da Educação pelos militares e acabou fisgado. Virou o típico “bom sujeito”: divorciou-se da mulher, abandonou a Igreja e, de seus primeiros livros, A Responsabilidade das Elites e Formação e Problema da Cultura Brasileira (ambos de 1956), estudos magníficos sobre a vida intelectual no Brasil, passou a escrever manuais de marxismo-leninismo dignos da Academia de Ciências da URSS.

À medida que o gramscismo se consolidou como doutrina dominante nas universidades, a política de cooptação perdeu seu caráter de seleção individual e se tornou o critério geral de aprovação na carreira acadêmica e jornalística, a conditio sine qua non para os neófitos serem reconhecidos como “intelectuais”. A imbecilização industrializou-se e a cultura superior no Brasil acabou.