A Justiça brasileira perante a Nova Ordem Mundial

Mensagem enviada por Olavo de Carvalho ao II Encontro Regional da Justiça do Trabalho da 15ª Região, S. José do Rio Preto, SP.

26 de agosto de 1999

Impossibilitado de estar fisicamente presente a esse simpósio, atendo ao gentil convite do TRT de Campinas enviando como representantes, desde o outro lado do oceano, alguns exemplares dessa espécie de seres, por natureza, alados e aéreos: as palavras. Num escritor, elas são os únicos atributos que importam; e talvez, desobstruídas de toda interferência da minha presença física, acabem me representando melhor do que eu mesmo. Dito isto, entro no assunto. De tempos em tempos ouvimos falar que a justiça brasileira está em crise. Crise é um estado de conflito radical entre os princípios fundamentais e as leis incumbidas, teoricamente, de realizá-los na esfera prática. Quando uma sociedade perde de vista os princípios que a inspiram e fundamentam, as discussões sobre as leis proliferam ilimitadamente, sem que ninguém tenha a certeza íntima e sincera de defender a opinião correta, pois só os princípios poderiam fundar esta certeza e nessa hora o que falta não são opiniões, mas justamente os princípios capazes de arbitrá-las. É aí que cada um procura tanto mais teimosamente persuadir os outros quando menos persuadido ele próprio se encontra. Ao mesmo tempo, junto com as opiniões, proliferam as próprias leis, numa tentativa estéril e vã de ordenar por fora aquilo que por dentro já não é senão fragmentação e desordem no meio da cegueira geral.

Recentemente, um amigo meu, o advogado Cândido Prunes, me informou que, só no que concerne a um item específico e limitado — a alocação de recursos do orçamento federal —, o número de dispositivos legais já sobe a 5.200, entre leis, decretos, medidas provisórias, etc. etc. Idêntico florescimento quantitativo observa-se em muitos outros domínios da legislação, entre os quais é até covardia mencionar o direito tributário. A multiplicação das normas vigentes tem dois efeitos bastante óbvios: em primeiro lugar, elas perdem sua força normativa, já que cada uma é atenuada, mediatizada, desviada e eventualmente, na prática, até mesmo neutralizada por uma centena de outras. Em segundo lugar, se considerarmos — para voltar só ao caso do orçamento — que só raríssimos seres humanos são capazes de decorar 5.200 versos, quanto mais 5.200 normas, a situação assim criada torna nulo e sem efeito um dos princípios fundamentais, que é aquele segundo o qual ninguém tem o direito de alegar desconhecimento da lei. Na prática, ninguém tem mais é a possibilidade de alegar, verossimilmente, o CONHECIMENTO da lei. Nenhum brasileiro pode hoje, nos atos mais simples da vida comercial, familiar, funcional, etc., acreditar que sua simples boa-consciência espontânea seja um indicador confiável de que ele está dentro da lei. Quando as leis se transformam num emaranhado inabarcável a olho nu, a prudência recomenda que o cidadão esteja ciente de que a qualquer momento pode estar cometendo alguma infração sem perceber.

Eis aí um exemplo de conflito radical entre um princípio e as leis que, teoricamente, deveriam ser o seu prolongamento lógico. Ao contrário do que acontece no domínio do puro pensamento teórico, onde as conseqüências derivam das premissas linearmente e sem desvios, no curso tortuoso da vida histórica acontece que as conseqüências se voltam contra as premissas e, numa rebelião suicida, revogam seus próprios fundamentos. Isso é o que se denomina uma crise da justiça.

A expressão “crise da justiça” parece denotar, desde logo, o império da injustiça. E o império da injustiça, por sua vez, não pode apresentar outra aparência senão a de um caos sangrento, a luta de todos contra todos. Será isso o que ocorre no Brasil?

Algo na vida cotidiana de algumas grandes capitais parece confirmar esse diagnóstico. A atmosfera de medo, brutalidade e desconfiança, o banditismo triunfante e auto-satisfeito, a insubordinação e corrupção de tantos funcionários do Estado — tudo isto confirma a veracidade ao menos parcial do diagnóstico de injustiça generalizada que se associa espontaneamente à expressão “crise da justiça”.

No entanto, quem percorra o interior do Brasil, tanto o campo quanto as pequenas cidades nas quais se distribui a maior parte da nossa população, ou mesmo as capitais de província que ainda não entraram em crescimento canceroso e conservam proporções compatíveis com a escala humana, não encontra nada daquela turva e inquietante desordem que sacode as capitais maiores. Mesmo nas regiões mais pobres, onde a desigualdade social mais pronunciada deveria — se a violência tivesse causas econômicas — produzir os maiores distúrbios, o que se observa ainda é o mesmo bom e velho povo brasileiro de sempre, ordeiro, pacífico, sempre mais inclinado a enfrentar suas dificuldades pelo trabalho e pela oração do que a jogar as culpas sobre outras pessoas (mesmo quando estas têm de fato uma parcela de culpa nada pequena) e sempre resistindo, com uma serenidade milagrosa, à tentação da amargura e do ressentimento.

Em 1997, num debate de que participei em Porto Alegre, defrontei-me com o sr. João Pedro Stedile, o qual, agitando os braços e elevando a voz, proclamava existir na área rural brasileira “um estado endêmico de violência”. Com toda a calma, mas sem poder conter de todo o riso ao menos discreto que a situação me inspirava, apelei ao testemunho do próprio sr. Stedile, que dizia uma coisa enquanto orador e outra completamente diversa enquanto escritor. Pois o livro de sua autoria, “A Questão Agrária no Brasil”, do qual, por uma dessas coincidências providenciais, um exemplar tinha vindo parar às minhas mãos algumas horas antes do debate, informava que em toda a extensão do campo brasileiro, onde se concentram mais de 30 por cento da nossa população, o número de homicídios, ao longo da última década, não tinha passado de 40 por ano, um número inferior ao registro, não digo anual, mas mensal, de qualquer delegacia de bairro nas grandes capitais. O número, se algo provava, era que o campo era ainda, como sempre, a região mais pacífica do Brasil. E esse número seria ainda reduzido pela metade se líderes apressados como o próprio Sr. Stedile, incitando e comandando invasões sem sentido nem proveito, não tivessem precipitado artificialmente situações de ódio que uma estratégia mais inteligente e mais humana teria evitado, alcançando com menos dores os objetivos de um movimento que, em si, nada tem de injusto.

O sr. Stedile não deve ter apreciado muito essas observações, pois, quando chegou a sua vez de me interpelar, recusou-se a fazê-lo, bufando, esfregando nervosamente as mãos e alegando que seu oponente não merecia a honra de ser interrogado, afirmação que interpretei como sinal de que suas perguntas, se as fizesse, teriam sido demasiado científicas para os meus parcos recursos intelectivos.

Mas conto esse episódio só para ilustrar que, em plena crise da justiça, reconhecida e proclamada por todos, o estrato mais profundo da vida brasileira, a vida do povo brasileiro, permanece obediente a regras tradicionais de convivência que nem a confusão das leis, nem a perplexidade dos intelectuais urbanos, nem a brutalidade e a corrupção das grandes cidades lograram abalar.

Ao dizer isto, acabo de formular um problema. Problema, dizia Ortega y Gasset, é consciência de uma contradição. Porque o fato é que nós, homens letrados, professores, jornalistas, doutores, bacharéis, nos atormentamos diante da crise da justiça, que para nós significa desorientação e caos, significa não saber o que fazer, significa perplexidade e dificuldade para discernir o certo e o errado, enquanto no interior do Brasil os homens iletrados, o povão que com tanta empáfia denominamos ignorante, parece perfeitamente orientado, perfeitamente sabedor do certo e do errado, perfeitamente capaz de obedecer quase que por instinto às regras não escritas que tradicionalmente ordenam as relações entre os homens, os grupos, as famílias, e permitem que a vida, mesmo no meio de tantas dificuldades e desventuras, ainda tenha um rosto humano.

A justiça está em crise? Sim, a justiça escrita está em crise. Os papéis avolumaram-se, os registros acumularam-se, as decisões de tantos legisladores e intérpretes foram formando uma montanha densa de enigmas e impossibilidades, até o ponto em que os tribunais inferiores, não sabendo o que fazer, têm de chutar cada vez mais os problemas para os escalões superiores e estes, como se fossem deuses, têm de arbitrar o inarbitrável, inteligir o ininteligível e produzir justiça desde o acúmulo de injustiças.

A última coisa que eu desejaria ser, hoje, é ministro do Supremo Tribunal Federal. Contaram-me que cada uma dessas criaturas tem de examinar, em média, oito processos por dia. Algum de vocês já teve de tomar na vida uma decisão forçada pela urgência das circunstâncias? Pois esses senhores tomam uma atrás da outra, incansavelmente, movidos a comprimidos para não dormir e a enxertos de pontes de safena. Sim, a justiça dos homens letrados está em crise.

Essa crise, para piorar, não vem só de dentro. De todos os lados, vendo a justiça vacilar, outros homens letrados perdem a confiança nela e a atacam, desejando subjugá-la, pedindo que seja submetida a controle externo — como se o controlador não tivesse de ser em seguida controlado por outro controlador, e este por outro, e assim por diante infindavelmente, e como se a proliferação dos controles não fosse, por si própria, a prova mais eloqüente do descontrole do conjunto.

Mas, no meio de tanta celeuma e desorientação geral, olhem em torno. Não verão um povo descontrolado e possesso, mas um povo tranqüilo e firme, fiel a normas de senso comum que ninguém lhe ensinou, que parecem vir espontaneamente do fundo das épocas ou talvez do fundo da natureza das coisas. Esse povo, que desconhece as leis, parece conhecer mais profundamente que nós, letrados, os princípios que as fundamentam. Eles bastam para orientá-lo nas questões básicas da vida, pelo menos até o ponto em que é necessário recorrer à justiça dos letrados, porque aí tudo se complica formidavelmente.

Não é de hoje que esses dois Brasis coexistem em camadas separadas e mutuamente impenetráveis como o óleo e a água: o Brasil da ordem costumeira, lento, firme, seguro de si, e o Brasil das leis escritas, nervoso, inquieto, sempre devorando-se a si mesmo em acessos furiosos de autodestruição em que o proibido se torna obrigatório e o obrigatório proibido.

Não será precisamente nesse descompasso entre a vida e as leis que reside a famosa “crise da justiça”?

Nesse caso, a justiça brasileira não está em crise só neste momento. Ela viveu em crise, pelo menos, desde o século passado.

As leis são obras de gente letrada, e a gente letrada tem o hábito de olhar menos para o povo iletrado do interior do que para as gentes ainda mais letradas do Exterior. Sim, desejamos acompanhar as transformações do mundo, temos medo do que vão dizer de nós em Nova York e Paris, tememos ser chamados de atrasados e caipiras. Por isto, tão logo alguma nova doutrina surge por lá, nos apressamos a remoldar por ela todo o conjunto das nossas leis. Nossas constituições, que se sucedem velozmente, refletem menos a ordem real da nossa vida do que os ideais da classe letrada, a que o povo permanece profundamente indiferente. Não as fizemos para expressar o que realmente somos, para manifestar por escrito os princípios que governam a nossa vida. Ao contrário: fizemo-las para ser o que não éramos, fizemos para nos tornar, por obrigação escrita, aquilo que, de olho num mundo em rápida transformação, as classes letradas desejavam que fôssemos. Repetidamente, nós, o povo, temos decepcionado essas grandes esperanças dos reformadores. Repetidamente temos insistido em ser somente o que somos.

A crise atual da justiça, novamente, sacode as classes letradas sobre o pano de fundo da indiferença popular, reiterando o descompasso entre os dois Brasis.

No momento, porém, a crise apresenta um componente novo, ausente em todas as mudanças anteriores, traumáticas o quanto fossem, com que procuramos adaptar a um mundo em mudança um povo que quase sempre insistia em não mudar. É que antes nos limitávamos a copiar, com admiração e inveja, as novas normas produzidas no Exterior. Éramos nós, os letrados brasileiros, que íamos no encalço da moda.

Agora, os novos moldes não esperam até que os copiemos. Já não somos nós que os procuramos. São eles que nos procuram, são eles que se impõem, respaldados em poderes incalculavelmente vastos que decidem os destinos do mundo e não nos perguntam se concordamos.

As novas normas, os novos valores, as novas leis, os novos critérios vêm prontos do Exterior e não querem saber nossa opinião. Os nos adaptamos, ou somos jogados para fora dos trilhos da História, ou ao menos para fora do mundo economicamente real. Nossa única escolha é entre a obediência e a exclusão. Eis a justiça brasileira ante a Nova Ordem Mundial.

Crise da justiça? Esta expressão, como vimos, tem sentido duplo. Designa, de um lado, a confusão geral entre os doutores, à qual o povo permanece largamente indiferente, regido, como sempre, por princípios e costumes que ele não aprendeu com os doutores. Este é o sentido imediato da expressão “crise da justiça”.

Mas, numa escala histórica mais duradoura, ela designa o descompasso permanente entre a esfera das leis escritas, sempre em mudança para acompanhar o ritmo do mundo, e a vida do povo brasileiro, que, assentando-se nos princípios e na autoconfiança da consciência limpa, não precisa conhecer as leis para agir de maneira correta e sã.

Há duas crises da justiça brasileira: a nova e a velha. A nova reflete a dificuldade que as classes letradas encontram para criar um aparato judicial que funcione tão bem quanto se supõe que funcione a justiça de tal ou qual país dito mais avançado. Essa crise reflete o desejo das classes letras de lutar contra o arcaísmo, o desejo de entrar na modernidade.

Mas a crise mais velha, o divórcio entre leis e costumes, agrava-se precisamente na medida em que a classe letrada vai mudando as leis antes mesmo que o povo tenha se dado conta de que elas existem. Por isto dizia Euclides da Cunha: “Estamos condenados ao progresso.” Sim, condenados: o progresso, a modernidade, nos vem sempre de fora, de repente, como um traje apertado que nunca nos cabe direito.

Enquanto esse desajuste consistiu apenas numa diferença de ritmo entre as classes letradas e o povo, foi sempre possível alguma solução de compromisso, graças ao gênio brasileiro do meio-termo, da conciliação, das soluções práticas fundadas num acordo tácito de descumprir as leis da maneira mais legal possível. Mas agora já não são as nossas classes letradas que buscam adaptar-se a um modelo estrangeiro admirado e invejado. Agora é o próprio modelo que chega de repente e nos impõe, do dia para a noite, as mais bruscas modificações de costumes, de normas, de leis.

A modernidade bate à nossa porta, não como um portador de boas novas, mas como um oficial-de-justiça que nos traz uma intimação: adaptem-se ou morram.

A questão que se coloca para todos nós, nesta hora, é se esta adaptação supremamente radical e brusca não abrirá até às dimensões de um abismo intransponível o hiato já existente entre a cultura do nosso povo e as instituições legais com que as classes letradas procuram revesti-la. A questão é saber se, para ajustar-nos ao mundo, não nos desajustaremos definitivamente de nós mesmos, perdendo, para sempre, o senso de unidade cultural já tão enfraquecido por tantas adaptações anteriores. A questão é saber se, para adaptar-nos à Nova Ordem Mundial, não institucionalizaremos a desordem nacional, cristalizada no abismo entre a cultura popular e as leis.

A Nova Ordem Mundial, por si — garanto —, não está nem ligando para esse problema. O que ela quer é obediência, ajuste, concordância, coerência geométrica de um mundo arquitetado por engenheiros comportamentais para a maior glória do poder global. Se para tanto for preciso esmagar aqui e ali um país a mais ou a menos, quem se importa? O carro da História, dizia Trotski, esmaga as flores do caminho.

Entre o carro e as flores, deixo portanto vocês ante esse enigma, que não me cabe resolver em seu lugar.

Que cada um, no silêncio da sua intimidade, medite e receba, com a ajuda de Deus, a inspiração melhor, e que o pensamento de todos acabe por encontrar o caminho mais afortunado para este país.

Muito obrigado a todos pela sua atenção.

Idéias e grupos

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 19 de agosto de 1999

Uma discussão política nunca é exclusivamente teórica: ela não gira em torno de descrições da realidade, mas de alternativas de ação (mesmo se disfarçadas ou subentendidas sob descrições da realidade). Mas a mera escolha de uma alternativa de ação não é ainda uma opção política, porque a política não consiste no confronto entre hipóteses abstratas, e sim entre grupos humanos concretos. Numa discussão política não se discute só o que fazer, mas sobretudo quem vai fazer. A vitória política não é a conquista do apoio para uma proposta, mas para o grupo que a representa. Por isto, em política, todas as discussões teóricas ou práticas degeneram facilmente em simples meios para a conquista do poder. Quanto mais politizadas as discussões, menor é a probabilidade de que gerem alguma idéia que tenha valor intrínseco, e maior a de que produzam apenas uma retórica de pretextos.

A politização das discussões já chegou a tal ponto, no Brasil, que hoje em dia, para impugnar uma idéia, não é preciso argumentar contra ela: basta encontrar sua classificação no catálogo de dois itens que constitui a totalidade do repertório. Nos meios esquerdistas, a exclamação “É de direita!” neutralizará automaticamente qualquer teoria, argumento ou prova. Já entre os neoliberais, não há fórmula-padrão para exorcisar opiniões, mas alguns termos recorrentes, como “tridentino”, “nacional-desenvolvimentista” ou “estatizante”, pronunciados no adequado tom de desprezo, bastam para encobrir de uma aura de suspeita as mais inocentes idéias.

O resultado dessa simplificação geral da conversa é que as duas teses em disputa não estão mais em disputa, de vez que os argumentos de parte a parte já estão previamente conhecidos e neutralizados pela mútua ojeriza. Pior ainda, nenhuma idéia nova pode entrar no palco, pois será imediatamente aceita ou rejeitada pelo que tenha em comum com as duas anteriores, não conseguindo tornar visível a sua diferença específica, isto se não for logo excluída por ambos os partidos como velharia ou esquisitice indigna de exame. Nessas condições, nenhuma das duas opiniões padronizadas pode ser fecundada ou enriquecida nem pelo contato íntimo com a adversária nem pela interferência de qualquer outra.

Logo, não há mais embate de opiniões: só embate de grupos. E qualquer idéia sobre o que quer que seja – sobre arte, religião, sexo ou culinária – nada mais precisa ou pode alegar em favor de si mesma senão sua perfeita identidade com as convicções do grupo cuja simpatia pretenda angariar, reduzindo-se portanto a circulação de opiniões a um festival de juramentos de fidelidade alternados com expressões de repúdio.

Nesse panorama, é natural que cada um dos blocos ideológicos se encare como um verdadeiro bloco, no sentido físico do termo, isto é, um todo compacto, homogêneo e sem contradições internas. Quando os examinamos de fora, essa impressão se desfaz e ambos se revelam compostos do aglomerado fortuito de elementos sem muita conexão lógica. Mas quem quer que perceba isso está condenado a permanecer de fora, seu ingresso no debate estando impossibilitado pelas condições acima descritas.

Sendo assim, é na condição de puro espectador inerme que faço a seguinte observação: no Brasil, quem é liberal em economia é internacionalista em política externa e quem é nacionalista em política externa é estatizante em economia. Tão fechados em si mesmos estão os dois grupos, que ninguém, dentro de um ou do outro, percebe que não há qualquer conexão lógica entre liberalismo e globalismo, tal como não há entre nacionalismo e estatismo.

Que não há nada de ilógico ou de impossível na combinação de economia liberal com política externa nacionalista, é algo que não é preciso sequer provar no campo da argumentação teórica, pois 200 anos de história norte-americana mostram que essa combinação não apenas existe como possibilidade, mas se realizou como fato. E embora este seja o fato mais gritante da história econômica nos últimos séculos, na mente dos brasileiros a referida combinação não existe nem mesmo como possibilidade teórica e está excluída de todo debate como se fosse uma absurdidade intrínseca ou uma utopia boboca indigna da atenção dos intelectuais sérios.

A única conclusão que posso tirar disso é que esses intelectuais não são tão sérios. E que por isto mesmo preferem, ao embate das idéias, o choque dos grupos.

Quatro perguntas para Olavo de Carvalho sobre jornalismo cultural

Entrevista realizada via e-mail por Talita Nóbrega, Kátia Portugal e Karla Szabados, alunas da Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro.

9 de agosto de 1999

O que o sr. entende por Jornalismo Cultural?

Olavo: O jornalismo cultural é, ao mesmo tempo, um reflexo jornalístico da criação cultural e ele mesmo um tipo de criação cultural. Por definição, e aliás como qualquer outro tipo de jornalismo, ele tem de atender a duas ordens de exigências, simultâneas e ambas igualmente legítimas: as exigências da produção jornalística (prazos, normas de redação, etc.) e as exigências do seu assunto (no caso, a cultura em geral). Mas é evidente que aquelas devem ser postas a serviço destas, e não ao contrário. Uma analogia tornará isso mais claro: o jornalismo médico é jornalismo, isto é, tem de atender às imposições da técnica industrial jornalística, mas por outro lado seria absurdo que alterasse o conteúdo da ciência médica para adaptá-la a essas imposições: o que tem de ser amoldado à técnica jornalística é a difusão da medicina, e não a medicina mesma. Caso contrário, o jornalismo médico seria uma espécie de cópia inferior da medicina – uma falsa medicina amoldada ao gosto jornalístico. Ora, o que acontece nos nossos suplementos culturais é que, em vez de amoldar-se às exigências mais altas da cultura, eles procuram espremê-las no padrão jornalístico de cada publicação, isto é, nos critérios de interesse vigentes no noticiário geral. Assim, por exemplo, entre um livro excelente sobre assunto alheio ao noticiário geral e um livro ruim sobre assunto de interesse jornalístico, este último é que é valorizado. Com isto, o jornalismo cultural torna-se apenas “jornalismo geral de assunto cultural”, perdendo o que é específico do jornalismo cultural. O específico, em cada área de jornalismo, reside precisamente em incorporar critérios que, em si, não são jornalísticos, mas são próprios do assunto como tal. Uma página de turfe, por exemplo, não privilegiará um jóquei por ser um tipo bonitão ou por ter matado a mãe (destaques que seriam legítimos no noticiário geral), mas por ter se desempenhado bem segundo critérios estritamente turfísticos. Isto é tão óbvio que nem deveria precisar ser explicado, mas o nosso jornalismo está tão doente que tem dificuldade em entender essas coisas.

Concorda com a idéia de que o Jornalismo Cultural tornou-se uma instituição? Por quê?

Durante os anos da ditadura, a imprensa, paradoxalmente, melhorou muito, ao tornar-se o centro dos grandes debates nacionais, chegando a superar, em certos pontos, o debate universitário. O prestígio cultural de alguns jornais e revistas subiu às nuvens. Os atuais suplementos culturais são o efeito materializado desse prestígio, são prestígio institucionalizado. Infelizmente, a força que os constituiu desde dentro já se extinguiu, e eles são apenas uma cópia de si mesmos.

Como são realizados os trabalhos numa editoria cultural?

Isso mudou muito. Antigamente, quem escrevia para os suplementos culturais eram as pessoas de real valor nas diferentes áreas da criação cultural. Vale a pena vocês darem uma espiada nos antigos suplementos do Estadão, do JB, de O Jornal, etc. Eram uma coisa assombrosa. A partir do momento em que os critérios jornalísticos gerais começaram a predominar sobre as exigências específicas de cada área da cultura, julgou-se que qualquer repórter deveria ser capaz de fazer matérias culturais – o que é um critério absurdo, que não se ousa adotar, por exemplo, no jornalismo esportivo, onde ainda se respeita o conhecimento especializado. No antigo jornalismo cultural, não havia pauta, exceto para uma ou duas matérias: para o resto, formava-se um grande corpo de colaboradores especializados, cada qual capaz de acompanhar as novidades no seu próprio setor, e respeitava-se o material que enviassem. No estilo atual, os editores de suplementos (em geral eles próprios gente de formação apenas jornalística e sem nenhum mérito especial em literatura ou ciências, por exemplo) se tornaram tiranetes e a pauta se tornou uma régua destinada a tudo nivelar pela altura da cabeça deles. Para piorar, adotou-se nas páginas culturais a medida padrão das matérias do noticiário geral, sempre curtinhas porque se destinam a um público que supostamente odeia ler. Hoje em dias os ensaios brilhantes de Otto Maria Carpeaux ou Álvaro Lins seriam recusados sob a alegação de falta de espaço (tanto mais absurda e demagógica quanto mais os jornais cresceram em número de páginas desde a década de 50). E o mais deprimente de tudo é que esses editores, quanto menos se exige deles em preparo cultural, mais autoridade adquirem: eles têm hoje até mesmo o direito de meter a caneta no texto alheio, como se um escritor profissional fosse um foquinha necessitado da sábia assistência de um copy desk. Os suplementos culturais de hoje assinalam, enfim, uma usurpação da cultura pela classe jornalística – gente tão prepotente quanto a casta militar que nos governou por vinte anos.

Quais os critérios usados nas críticas culturais?

É difícil generalizar, mas acho que a importância jornalística, o apelo político imediato e as preferências de grupos reivindicantes acabaram por predominar sobre o critério do interesse profundo, que subentende uma visão histórica muito mais abrangente do que, em geral, a dos resenhistas. O que acaba vigorando é uma concepção redutivista, onde só tem importância nas páginas culturais aquilo que poderia ser transferido tal e qual para as páginas de noticiário geral, comportamento, diversões, etc. Aquilo que tenha importância somente intelectual, filosófica ou científica, sem se traduzir em conseqüências políticas ou comportamentais imediatas, é como se não existisse.