Money and power

OLAVO DE CARVALHO

Translated by Marcelo De Polli

Whenever I hear a left-wing politician condemn the capitalist greed in prophetic voice, I wonder if he really fancies the craving for power to be a passion which is morally superior to the wish for money, or if he simply pretends to believe in that in order to play innocent. There is evidently no third alternative. No left-wing activist would make a revolution to just go home afterwards, living as an obscure common citizen of the socialist republic — each one of them is, by definition, the virtual holder of a share of power in the upcoming State. This is, among the members of a party, the only difference between an activist and a plain voter. When taking up the revolutionary fight, one expects no less than a position as commissioner of the people. After all, there would not be much sense in giving less from oneself than what was given when taking up the responsibility of active leader in the destruction of capitalism. (The same, of course, can be applied, mutatis mutandis, to the activists of fascism or any other proposal of radical change of society. If I stress socialism, it is for the simple reason that today in Brazil there is not a fascist-inspired mass movement.)

All revolutionary activism is therefore inseparable from the craving for power, and it takes either a brutal shamelessness or a pathological unconsciousness to prevent someone from realizing that such a passion is infinitely more destructive than the wish for wealth. Wealth, no matter how relative the abstractions of financiers may try to make it, always has a residual materiality — houses, food, clothes, implements — that makes it something concrete, a visible good worthy in itself, independently from the surrounding opulence or misery. Power, on the other hand, as Nietzsche well saw it, is nothing if it cannot be more power. This is the most obvious thing in the world: mediated by social relationships as it may be, wealth is ultimately domain over things. Power is domain over men. A rich man does not become poor when his neighbours also get rich. On the other hand, a power that eventually gets equalled by other powers is automatically cancelled out. Wealth is developed by the adding up of goods whereas power, essentially, does not increase so much by the expansion of its means than by the suppression of other men’s means of action. In order to establish a police State, it is not necessary to provide the police with additional guns — it is enough to take them from the citizens. A dictator does not become a dictator because he grants himself new rights, but because he suppresses the old rights from the people.

The human intelligence would have to sink down to almost infranatural levels before a philosophy — or something similar to that — could come to invert such an evident equation, seeing in misery the foundation of wealth and in political power the creative instrument of equality.

The most characteristic phenomenon of the 20th century – totalitarianism – was not a detour or a bump on the road to the democratic dream. It was the inescapable consequence of a suicidal wager on the moral superiority of political power and its equalitarian social mission. The outcome of this wager is before everyone’s eyes. The promised economic equality failed to come about. However, the difference in terms of means of action between those who govern and those who are governed has increased to a point of which the most ambitious tyrants of Antiquity did not even dare to dream. Julius Caesar, Attila or Genghis Khan would shun in horror if they were offered the means to listen to every private conversation or to disarm every adult man. Today, governments already study how to program the conduct of future generations by genetic means. They are not satisfied with the destructive power of demons: they want the creative power of gods.

It is one of the most atrocious perversities of our time that a man imbued with the simple desire to get rich is considered a morally harmful person and almost a criminal, while an aspiring political leader is seen as a beautiful example of idealism, kindness and love to one’s neighbour. A century who thinks that way is crying to heaven for a Hitler or a Stalin to be sent down.

Dinheiro e poder

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 16 de setembro de 1999

Sempre que ouço um político de esquerda verberar em tom profético a cobiça capitalista, pergunto-me se ele imagina mesmo que o anseio de poder é uma paixão moralmente superior ao desejo de dinheiro, ou se simplesmente finge acreditar nisso para se fazer de santinho. Evidentemente, não há terceira alternativa. Nenhum militante esquerdista quer fazer uma revolução só para depois ir para casa viver como obscuro cidadão comum da república socialista: cada um deles é, por definição, o virtual detentor de uma fatia de poder no Estado futuro. Essa é, entre os adeptos de um partido, a única diferença entre o militante e o simples eleitor. Ao assumir a luta revolucionária, o mínimo que um sujeito espera é um cargo de comissário do povo. Afinal, não teria sentido que, após ter arcado com a responsabilidade de líder ativo na destruição do capitalismo, ele desse menos de si à “construção do socialismo”. (O mesmo, é claro, aplica-se, mutatis mutandis , aos militantes do fascismo ou de qualquer outra proposta de mudança radical da sociedade. Enfatizo o socialismo pela simples razão de que no Brasil de hoje não há um movimento de massas de inspiração fascista.)

Toda militância revolucionária é, pois, inseparável da ânsia de poder, e é preciso um brutal descaramento ou uma inconsciência patológica para não perceber que essa paixão é infinitamente mais destrutiva que o desejo de riqueza. A riqueza, por mais que as abstrações dos financistas tentem relativizá-la, tem sempre um fundo de materialidade – casas, comida, roupas, utensílios – que faz dela uma coisa concreta, um bem visível que vale por si, independentemente da opulência ou miséria circundantes. Já o poder, como bem viu Nietzsche, não é nada se não é mais poder. Isto é a coisa mais óvia do mundo: por mais mediada que esteja pelas relações sociais, a riqueza é, em última instância, domínio sobre as coisas. O poder é domínio sobre os homens. Um rico não se torna pobre quando seus vizinhos também enriquecem, mas um poder que seja igualado por outros poderes se anula automaticamente. A riqueza desenvolve-se por acréscimo de bens, ao passo que o poder, em essência, não aumenta pela ampliação de seus meios, e sim pela supressão dos meios de ação dos outros homens. Para instaurar um Estado policial não é preciso dar mais armas à Polícia: basta tirá-las dos cidadãos. O ditador não se torna ditador por se arrogar novos direitos, mas por suprimir os velhos direitos do povo.

Foi preciso que a inteligência humana descesse a um nível quase infranatural para que uma filosofia – ou coisa assim – chegasse a inverter equação tão evidente, vendo na miséria o fundamento da riqueza e no poder político o instrumento criador da igualdade.

O fenômeno mais característico do século 20, o totalitarismo, não foi um desvio ou acidente de percurso no caminho do sonho democrático: foi a conseqüência inescapável de uma aposta suicida na superioridade moral do poder político e na sua missão social igualitária. O resultado dessa aposta está diante dos olhos de todos. A prometida igualdade econômica não veio, mas, em contrapartida, a diferença de meios de ação entre governados e governantes cresceu a um ponto que os mais ambiciosos tiranos da Antiguidade não ousaram sequer sonhar. Júlio César, Átila ou Gêngis Khan recuariam horrorizados se alguém lhes oferecesse os meios de escutar todas as conversas particulares ou de desarmar todos os homens adultos. Hoje os governantes já estudam como programar geneticamente a conduta das gerações futuras. Não se contentam com o poder destrutivo dos demônios: querem o poder criador dos deuses.

É uma das mais atrozes perversidades da nossa época que o homem imbuído do simples desejo de enriquecer seja considerado um tipo moralmente lesivo e quase um criminoso, enquanto o aspirante ao poder político é visto como um belo exemplo de idealismo, bondade e amor ao próximo. Um século que pensa assim clama aos céus para que lhe enviem um Stalin ou um Hitler.

Estados e Estados

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 4 de setembro de 1999

Paris – Num artigo recentemente publicado no Monde Diplomatique (agosto/99), o professor Ricardo Petrella, ilustre acadêmico, começa por lamentar o enfraquecimento dos Estados-nações sob o assalto da nova ideologia empresarial e termina por fazer a apologia do Estado Mundial, cujo advento não poderá deixar de levar esse enfraquecimento às suas últimas conseqüências: a extinção pura e simples dos Estados nacionais e sua substituição por administrações regionais sob as ordens do Leviatã global.

Vê-se claramente que, sob a aparência de uma defesa das nações atualmente existentes contra as sucessivas desapropriações que vêm sofrendo sob o jugo dos poderes econômicos internacionais, o professor Petrella não nos oferece senão a perspectiva de submeter essas mesmas nações a uma desapropriação única, radical e definitiva, tornada boa pelo simples fato de já não ser obra de empresas privadas e sim de uma superburocracia estatal.

Não se trata portanto de proteger a vítima, mas de trocar de ladrão.

Nada é mais ingênuo (ou talvez mais esperto) do que apresentar o quadro atual do mundo como se fosse o de um combate entre as grandes empresas e o Estado, ou, o que dá na mesma, como se não fosse senão uma reedição ampliada do velho conflito do princípio capitalista com o princípio socialista. Esse giro sutil que o enfoque esquerdista impõe à visão da realidade mundial reflete uma intenção de usar a salvação das nações como pretexto para salvar, isto sim, o que ainda pos sa restar da estratégia comunista mundial.

É falso dizer que o neoliberalismo favorece as empresas em detrimento dos Estados; ele favorece abertamente certos Estados contra outros Estados, e favorece sobretudo a ascensão da burocracia mundial, a qual não é nem empresa privada nem Estado-nação, mas uma terceira coisa especificamente diferente dessas duas. Esta coisa, seja lá o que for, é o verdadeiro inimigo dos Estados nacionais – sobretudo dos pequenos e fracos – e, ao mesmo tempo, o verdadeiro inimigo das empresas privadas, ao menos daquelas que ainda confiam no princípio liberal e não sonham com um monopolismo à sombra da proteção do Estado global.

É preciso, absolutamente, distinguir aquilo que o professor Petrella confunde absolutamente: o Estado enquanto princípio abstrato e os Estados enquanto realidades históricas concretas. O globalismo neoliberal se volta contra estes últimos, ao mesmo tempo que favorece o primeiro – sobretudo quando este se apresenta sob a forma monstruosamente inflada de Estado mundial –, mostrando, com isto, que de liberal só tem o nome. A prova é que, na mesma medida em que os neoliberais condenam as legislações nacionais de controle da economia, eles louvam a adoção de idênticos controles quando ampliados à escala mundial. Isto não é combater “o” Estado: é combater “alguns” Estados, sobretudo os pequenos, e favorecer outros Estados, sobretudo os maiores, sobretudo o maior de todos.

Confundindo a defesa dos pequenos Estados nacionais com a defesa do Estado enquanto princípio, o professor Petrella se inscreve, talvez malgré lui , na lista dos apóstolos daquilo mesmo que ele professa combater.