Carpeaux nos EUA

Olavo de Carvalho

13 de outubro de 1999

Todo brasileiro que faça alguma coisa pelo seu país deve estar preparado para ver as sementes que lançou no solo pátrio germinarem antes no Exterior do que aqui. Se a imprensa local fez tudo o que pôde para ocultar os meus esforços de editor e biógrafo de Otto Maria Carpeaux, o Center for Portuguese Studies and Culture da Dartmouth University, ao preparar sob a direção do Prof. João Cezar de Castro Rocha uma edição especial de Portuguese Literary & Cultural Studies que estuda as influências estrangeiras na formação da cultura nacional, e que não podia deixar de conter um capítulo sobre a obra de Carpeaux, não hesitou em encomendá-lo a alguém que se dedicara seriamente ao resgate dessa obra, em vez de pedi-lo aos tradicionais aproveitadores políticos e saqueadores de túmulos.

Como tantos outros brasileiros que passaram por essa situação, não posso deixar de considerá-la ao mesmo tempo reconfortante e constrangedora. Reconfortante porque, afinal, é um reconhecimento. Constrangedora porque mostra, uma vez mais, que a elite intelectual nacional continua incapaz de se governar a si mesma e necessitada de guiar-se pelo exemplo estrangeiro.

Reproduzo aqui o texto que enviei para essa louvável publicação da Dartmouth University. Dentro de algumas semanas receberei o texto da tradução inglesa, que também constará desta página. — O. de C.

Otto Maria Carpeaux

Olavo de Carvalho

Portuguese Literary & Cultural Studies. Special Issue, No. 4, 2000, “Brazil 2000”, João Cezar de Castro Rocha (org.), Universidade de Massachusetts, Dartmouth.

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O conhecimento começa com o espanto, e o espanto surge da percepção de problemas. Problema, dizia Ortega y Gasset, é consciência de uma contradição. A insensibilidade aos problemas, que repousa em certezas convencionais sem que mesmo as contradições mais gritantes lhe perturbem o sono, é sinal seguro de decadência intelectual, seja dos indivíduos, seja das coletividades e nações.

Quem deseje, por curiosidade sociológica ou afeição aos abismos, avaliar a profundidade da queda da vida intelectual no Brasil de hoje pode colher uma amostra significativa desse fenômeno nas reações unânimes da imprensa cultural brasileira à recente edição dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux (Vol. 1, Rio, Topbooks, 1999). Foi tudo uma repetição dos elogios feitos à beira do túmulo do escritor quando da sua morte em 1978 — sem uma só menção aos problemas de interpretação de sua vida e obra, para os quais chamei expressamente a atenção dos leitores na longa introdução que preparei para o volume. Eis alguns:

1. Otto Maria Carpeaux chegou ao Brasil em 1939 e, tão logo estreou no jornalismo com ensaios literários publicados no Correio da Manhã, foi alvo de uma violenta campanha de difamação movida pelos comunistas. Ao morrer, em 1978, tinha-se tornado o ídolo máximo da intelectualidade comunista no Brasil. Dá-se isto por explicado pela oposição feroz do escritor ao regime militar de direita, mas se esta explicação valesse ela se aplicaria também ao romancista Carlos Heitor Cony, companheiro de Carpeaux nessa batalha heróica e desigual, no entanto até hoje antipatizado pelos comunistas. A tranfiguração de Carpeaux de bête noire em santo beatificado permanece, pois, um problema, e um tanto mais enigmático porque, enquanto crítico e historiador, Carpeaux jamais aderiu ao marxismo. Sabe-se que no Brasil contribuições financeiras ao Partido Comunista — fortemente hegemônico na imprensa e nos meios editoriais — bastam para absolver um escritor de qualquer pecado ideológico, como aconteceu, por exemplo, com o grande romancista José Geraldo Vieira, que se tornou comunista de carteirinha sem deixar de ser, nos livros, o cristão conservador que sempre fôra (se o leitor americano não compreende estas coisas, saiba que no Brasil também ninguém as compreende; apenas as admite). Mas Carpeaux nunca teve dinheiro.

2. Carpeaux ou Otto Karpfen, judeu nascido em Viena em 1900, converteu-se ao catolicismo aos trinta anos de idade e no curso da década seguinte tornou-se um dos principais teóricos da direita católica que governava a Áustria sob a liderança de Engelbert Dolfuss. Após a queda do regime, com a invasão nazista, encontrou refúgio no Brasil graças à intervenção do Vaticano. No estudo aliás notável Os Judeus do Vaticano, de Avram Milgren, seu nome, aliás com grafia errada, consta da lista dos judeus que receberam falsas certidões de batismo para escapar à perseguição. É um equívoco: Carpeaux não apenas era católico desde bem antes da guerra, mas, quando os nazistas entraram em Viena, ele já era conhecido como teórico do regime austrocatólico, através de seu livro A Missão Européia da Áustria (Österreichs Europäische Sendung, 1936). Ademais, na correspondência que logo após sua chegada ao Brasil trocou com Álvaro Lins, seus sentimentos católicos são bem patentes. É pois um espanto para o pesquisador que esse católico tenha sido sepultado sem ritos religiosos porque, segundo alegou então a viúva em declarações à imprensa, ele “era homem sem religião”. Ainda que a hipótese de uma apostasia senil após a conversão tardia seja um tanto extravagante, ela poderia ser aceita se, no depoimento do amigo mais íntimo do escritor, Carlos Heitor Cony, não constasse a informação de que Carpeaux, até o fim da vida, fazia regularmente suas orações, e se o testemunho igualmente insuspeito do filólogo Antônio Houaiss não nos informasse que ele tinha medo de tocar em assuntos religiosos nas rodas intelectuais brasileiras, fortemente materialistas. Bem, se, do ponto de vista de um biógrafo, isso não é problema, não sei o que seja um problema. Para explicá-lo, sugeri a hipótese de que o exilado, cansado de sofrer, disfarçava sua opinião para não desagradar seus anfitriões brasileiros, quase todos ateus. Mas é apenas uma hipótese, e toda encrencada. Como é que um homem tão valente contra os inimigos podia ser tão frouxo ante os amigos? E, ademais, como conceber que a precaução do escritor contaminasse sua esposa ao ponto de esta fazê-lo levar o disfarce para o além-túmulo? Não, nada aí está explicado.

3. Carpeaux escreveu toda a parte mais valiosa de sua obra — os melhores ensaios e a monumental História da Literatura Ocidental— num período de não mais de seis anos, entre 1941 e 1947. São quase cinco mil páginas. Fora disso, sua produção continuou volumosa, mas foi caindo de qualidade até baixar ao nível do louvor convencional, na biografia de Alceu Amoroso Lima, seu último escrito. Em 1968, Carpeaux anunciou o fim de sua carreira literária, prometendo dedicar o resto de seus dias à luta política. Assim fez, dispersando seus talentos em polêmicas contra o regime que, se então tiveram a mais assombrosa repercussão, hoje só conservam interesse como documentos históricos. E o fato é que ele já vinha perdendo impulso desde vinte anos antes, de modo que sua famosa abdicação, longe de poder ser compreendida pela motivação exclusivamente política, parece ter sido a cristalização final de um longo processo de autonegação depressiva. Mas isto é também pura hipótese, se bem que confirmada pelo depoimento de um íntimo amigo de Carpeaux, o escritor pernambucano Edson Nery da Fonseca.

Não vou me prolongar em exemplos. Os que citei já bastam para mostrar que Otto Maria Carpeaux, no Brasil, é tanto mais desconhecido quanto mais celebrado. O preguiçoso alheamento com que seu vasto círculo de admiradores e amigos se absteve, por vinte anos, de reunir em livro seus escritos jornalísticos dispersos — uma assombrosa coleção de obras-primas do ensaio literário — já mostra que tinham mais interesse em cultuar um estereótipo do que em divulgar uma obra. O motivo disto é bem evidente. Se Carpeaux, de início rejeitado pela massa da intelligentzia esquerdista e só aceito por um grupo seleto de cérebros privilegiados — um grupo politicamente diversificado ao ponto de incluir o comunista Graciliano Ramos ao lado dos conservadores Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt — acabou por se tornar um ídolo das esquerdas, isto foi graças à série de artigos políticos publicados no Correio da Manhã a partir de 1964 com os quais obteve a fama de inimigo público número 1 do regime militar (o qual aliás nunca o perseguiu seriamente, limitando-se a mover-lhe um processo no qual foi polidamente interrogado por algumas horas e que terminou sendo suspenso pela promotoria mesma). A imagem de Carpeaux que se consolidou na imprensa foi a de um militante comunista, que trazia a essa corrente política o reforço da pena afiada por uma erudição prodigiosa a serviço de um estilo literário que deve ser qualificado, no mínimo, de delicioso. Ora, a publicação dos ensaios literários completos dissolvia essa imagem simplória, revelando um Carpeaux religioso e místico, admirador de Léon Bloy, e um elitista preocupado, na linha de Ortega y Gasset, com a ascensão de massas de ignorantes ao comando da máquina cultural. Não espanta que a intelectualidade de esquerda, prevendo as dificuldades, adiasse indefinidamente um confronto com essas contradições, nem que, mesmo após a publicação dos Ensaios Reunidos, preferisse fazer de conta que não tinha visto nada…

Mas não há homenagem póstuma que possa fazer justiça a um escritor se os louvores que a compõem não vêm junto com um sério esforço de compreensão. Por isto, o coro de elogios que se seguiu à morte de Carpeaux e, agora, à publicação dos Ensaios, acabou, de maneira aparentemente paradoxal, por depreciar o escritor, ressaltando-lhe os méritos menores de erudito e divulgador sem atentar para o que sua obra tem de mais original e valioso. Pois o valor e a originalidade dessa obra residem, precisamente, nas suas contradições.

Para começar, a História da Literatura Ocidental é uma tentativa de responder de maneira sintética e simultânea a preocupações dificilmente compatíveis: a compreensão sociológica das épocas e a individualização estilística dos autores, a apreensão da unidade histórica de uma civilização e a avaliação judicativa das obras singulares. Fortemente escorado nos métodos que aprendeu de Burckhardt, Dilthey, Weber e Max Dvorak, mas também inspirado no senso croceano da individualidade irredutível da obra poética, Carpeaux busca ser inseparavelmente historiador e crítico — e, se falha aqui ou ali, exagerando os julgamentos de obras para harmonizá-los com o desenho das épocas, no conjunto ele se sai perfeitamente bem e compõe uma obra ímpar na bibliografia historico-literária, alguma coisa de equivalente, na escala do Ocidente como um todo, ao que Francesco de Sanctis fez com a literatura italiana. Para o crítico Mauro Gama, a História da Literatura Ocidentalé “simplesmente a melhor obra do gênero já publicada em qualquer língua e em qualquer país”.

Em segundo lugar, o modo de pensar de Carpeaux enfatiza antes os problemas do que as soluções, o que o leva a parecer inconclusivo. Alma sacudida por dúvidas e contradições temíveis, ele usa o seu próprio estado interior de perplexidade como instrumento de sondagem das obras e das épocas, e o resultado tem de ser, em muitos casos, uma pergunta sem resposta. Para muitos leitores o choque dessas contradições é uma experiência especialmente perturbadora e desagradável. Não percebem que é essa peculiar forma mentis do escritor o que lhe permite acompanhar o drama íntimo das idéias por baixo das suas manifestações literárias sem cair no simplismo das soluções forçadas.

O estilo literário de Carpeaux reflete o caráter paradoxal de sua visão do mundo. Às vezes, durante páginas e páginas, ele assume o ponto de vista do escritor que está analisando, defendendo as idéias dele como se fossem as suas próprias, para logo em seguida desmenti-las brutalmente ou relativizá-las com a simples menção de um ou dois fatos que as contradizem. O leitor que exige certezas finais é levado ao desespero, mas para aqueles que se deleitam na contemplação da realidade como tal, a leitura de Carpeaux é uma rara exaltação do espírito. No conjunto, a História da Literatura Ocidental permanece uma das obras mais sólidas nesse gênero, superando de muito a de Arnold Hauser, divulgada no Brasil contemporaneamente a ela e ainda hoje investida de muita autoridade e prestígio no nosso país.

Por isso não é exato dizer, como Franklin de Oliveira, que o maior mérito de Carpeaux é ter introduzido no Brasil os métodos da Geisteswissenschaft de Dilthey. A História da Literatura Ocidental, se bem que moldada à luz desses métodos, é algo mais que simples divulgação deles. É realização que ultrapassa, por sua amplitude e perfeição, qualquer aplicação que os próprios inventores deles possam ter-lhes dado. Nesse sentido, ela não é uma contribuição da escola de Dilthey à cultura brasileira, mas uma contribuição brasileira à escola de Dilthey.

Por isto, no meu livro O Futuro do Pensamento Brasileiro (Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1998), no capítulo dedicado a extrair da massa de produções do pensamento brasileiro a lista quintessencial das conquistas fadadas a permanecer quando tudo o mais se desvaneça, não pude deixar de colocar, ao lado dos escritos de Gilberto Freyre, de Miguel Reale e de Mário Ferreira dos Santos, a obra historiográfica e ensaística de Otto Maria Carpeaux.

O critério aí adotado foi simples: tomei como obras intrinsecamente dotadas da capacidade de durar, não aquelas que “representassem o Brasil”, pois nada nos garante que os homens dos séculos vindouros desejarão saber do Brasil, mas sim aquelas que, desde o Brasil, levasse a cada homem, de qualquer país, um ensinamento que o ajudasse a compreender melhor o sentido da vida humana em geral e a dele próprio em particular. O clássico, por definição, não fala de si, da sua época, do seu país: fala de nós. Uma obra histórica — preparada, amparada e completada por uma multidão de ensaios — que logre mostrar a unidade interna do desenvolvimento literário no Ocidente, de Homero a Valéry, é por si mesma um microcosmo da alma humana e se torna merecedora de que o leitor se aproxime dela com um temor devoto, consciente da advertência latina: De te fabula narratur.

Marilena Chauí: A segunda excomunhão de Espinosa

Discípula bastarda do filósofo holandês, a uspiana Marilena Chauí mostra que é filha legítima de Marx e transforma Espinosa num militante do MST

por JOSÉ MARIA E SILVA

Publicado no Jornal Opção, de Goiás, em 10 de outubro de 1999

O filósofo holandês Baruch de Espinosa foi excomungado pela primeira vez na noite de 27 de julho de 1656. Os rabinos da comunidade judia de Amsterdã se reuniram em assembléia e, enquanto uma trompa se pôs a arrastar uma nota agônica, começou a ser lida a sentença de excomunhão do pensador: “Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Espinosa, estando de acordo toda a sagrada comunidade, reunida diante dos livros sagrados”.

As luzes iam-se apagando, uma a uma, simbolizando Deus que se afastava, e todas as maldições do Antigo Testamento foram recaindo sobre ele, com o peso milenar das profecias: “Que ele seja execrado durante o dia e execrado à noite; seja execrado ao deitar-se e execrado ao levantar-se; execrado ao sair e execrado ao entrar. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou aceite; que a ira e o desfavor do Senhor, de agora em diante, recaiam sobre esse homem, carreguem-no com todas as maldições escritas no Livro do Senhor e apaguem seu nome de sob o firmamento”.

E a todos os judeus foi ordenado que se afastassem de Espinosa: “Por meio deste documento ficai, portanto, avisados de que ninguém poderá manter conversação com ele pela palavra oral, ter comunicação com ele por escrito; de que ninguém poderá prestar-lhe nenhum serviço, habitar sob o mesmo teto que ele, aproximar-se dele a uma distância de menos de quatro cúbitos e de que ninguém possa ler qualquer papel ditado por ele ou escrito por sua mão”. A trompa se calou e a última luz foi apagada – a escuridão selou a maldição de Baruch de Espinosa.

Onze anos antes, nessa mesma sinagoga, quando o jovem Espinosa tinha apenas 15 anos, ocorreu a retratação de Uriel Acosta, um jovem e inflamado pensador que escrevera um livro negando a imortalidade da alma. Sua penitência foi deitar-se no umbral da sinagoga, enquanto os membros da comunidade passavam por cima de seu corpo. Como Espinosa faria depois, ele poderia ter recusado a penitência e aceitado a maldição. Não o fez. Sentindo-se profundamente humilhado, Acosta, quando retornou à casa, escreveu mais um libelo contra sua comunidade e matou-se com um tiro. O calmo Espinosa foi muito mais forte – não se retratou e saiu da religião dos judeus para entrar na filosofia do Ocidente.

Para os alunos que assistiram à palestra da filósofa uspiana Marilena Chauí, na quinta-feira, 7, na Universidade Federal de Goiás, a excomunhão de Espinosa da comunidade judaica deve ter tido a mesma causa que a expulsão de Marx de Paris quase dois séculos depois – pura agitação política. Como alertou o filósofo Olavo de Carvalho, numa entrevista ao Jornal Opção, o Espinosa de Marilena Chauí é um “petista avant la lettre”. Os alunos saíram de sua palestra convencidos de que devem render-se à evidência de três axiomas: a) Baruch de Espinosa foi um incendiário precursor de Marx; b) a filosofia é uma bandeira de luta contra o neoliberalismo; c) a invasão de terras do MST é a maiêutica socrática da revolução.

Autora do recém-lançado A Nervura do Real, pretensa bíblia sobre Espinosa, Marilena Chauí conseguiu impingir aos alunos que assistiram sua palestra um filósofo imaginário e uma filosofia falsificada – sob o silêncio abonador dos professores e o aplauso embasbacado dos alunos. Sua palestra foi pontuada por risos de aprovação e aplaudida de pé no final, com direito a grunhidos de um estudante. Embalado pela assunção do corpo ao lugar da alma, sutilmente empreendida por Marilena, esse jovem deve ter-se sentido adequadamente dionisíaco, num ambiente filosófico, ao exprimir seu contentamento numa atitude rupestre. O motivo de arrancar tanto entusiasmo com uma filosofia tão intrincada como a de Espinosa é que Marilena Chauí encontrou para ela a solução final – a revolução.

Foi assim que concluiu a leitura de sua conferência, entrecortada por explicações de improviso, em que a pimenta socialista dava um calor tropical ao gelo quase nórdico da filosofia de Espinosa. Apesar de tradutora e comentadora do Espinosa da coleção Os Pensadores, Marilena Chauí subverteu a ética e a política do filósofo holandês, fazendo dele um irredutível materialista. Apenas porque, ante uma maioria de prováveis leigos no assunto, não lhe foi difícil apagar o lastro profundamente religioso da filosofia de Espinosa (que Novalis chamava de “homem intoxicado de Deus”) para ficar apenas com o empenho do filósofo em tratar o homem não como um estranho à natureza, mas como parte dela. Nesse mote, Marilena aproveita para glosar até um discreto hedonismo, chegando quase a proclamar a hegemonia do corpo e seus prazeres sobre a alma e seus deveres.

Ao menos foi assim que boa parte dos alunos deve ter entendido sua conferência. Tanto que o primeiro a empunhar o microfone para lhe fazer pergunta foi um aluno que, durante toda a palestra, procurou aparecer mais do que a convidada: com a cabeça toda raspada e óculos brancos espelhados, deitou-se no chão, ao pé da mesa da conferencista, de costas para o público, com os ombros no piso baixo e os pés no alto, sobre o estrado. E seus pés, realçados por meias brancas, foram propositadamente cruzados sob o rosto de Marilena Chauí, relativamente próximos dele. A atitude desse estudante, muito mais irritante pela tolice do que pela suposta irreverência, acabou se tornando o sintoma de uma grave crise da inteligência brasileira na medida em que foi exatamente ele que se mostrou um porta-voz da revolução, indagando à mestra o que fazer para concretizá-la, já que s eus colegas lhe pareciam conformistas.

Marilena Chauí, se tivesse entendido de fato Espinosa, mandaria o menino primeiro transformar a si mesmo, domando suas paixões exibicionistas, para depois domar o mundo. Mas como professor deixou de ser farol para ser faísca, o que ela fez foi dizer exatamente o contrário – massageou o ego do rapaz e confessou-se esperançosa com o futuro do país, porque acredita que o movimento estudantil está despertando e que os estudantes estão carregando os professores para a revolução. Julgando insuficiente essa crença destituída de fundamento, perpetrou outra – que o MST é o paradigma crítico ao neoliberalismo, digno de seguidores até mesmo nas universidades. Como tudo isso foi dito à sombra da nobre filosofia de Espinosa, dá para imaginar o rebuliço que o pobre filósofo fez em seu túmulo. Sorte que sua filosofia, ao contrário do que pensa Marilena, é sobretudo conformista, e se Espinosa soubesse o que ela perpetra em seu nome, nada mais faria do que dar de ombros, certo de que a eternidade do todo encarregar-se-ia de corrigir a parte momentaneamente afetada pelas paixões de sua bastarda discípula brasileira.

Quase no final da conferência, alguém perguntou a Marilena Chauí, por escrito, o que ela achava das críticas do filósofo Olavo de Carvalho à filosofia da USP. Marilena remexeu-se na cadeira, sacudiu a cabeça e disse que iria fazer uma confissão – nunca leu nada de Olavo de Carvalho. Disse que só soube da existência dele quando da polêmica com Osvaldo Porchat, segundo ela, motivada pelas distorções propositalmente feitas por Carvalho no pensamento de seu colega. E se atreveu mais ainda na difamação a Olavo de Carvalho, enfileirando cerca de meia dúzia de xingamentos para defini-lo, entre eles, “cafajeste” e “pulha”. Marilena xingou-o de modo elíptico, atribuindo essas classificações a uma pessoa que lhe sugeriu não se importar com as críticas de Olavo de Carvalho, já que ele não presta como pessoa e “vive de pegar carona na obra alheia”. Como boa discípula bastarda de Espinosa que é, ela fez o contrário do que esse mestre que tomou de empréstimo faria – aceitou uma causa externa (a fofoca da pessoa amiga) e não foi conferir com sua própria razão (a causa interna essencial a um filósofo) se correspondiam ou não à realidade os adjetivos impingidos a Olavo de Carvalho.

Marilena chegou a dizer que Olavo de Carvalho não tem obra e que faz filosofia na Internet, como se o pensamento fosse afetado por seu veículo no mesmo grau em que a música é afetada pela qualidade de seu instrumento. Da platéia, tive vontade de interferir. Não lembrando que Sartre, ex-guru da USP, fazia filosofia em botequim, movido a uísque, nem usando o próprio Espinosa no combate à conferencista, mas valendo-me de armas mais modestas. Pensei apenas em lembrar a Marilena que, se até a Inquisição que ela tanto critica procurava conhecer as bruxas antes de queimá-las, produzindo tratados sobre bruxaria, que direito tem um filósofo de desqualificar um adversário sem antes ler o que ele escreve? A atitude da autora de A Nervura do Real é um caso nada exemplar de neurose da realidade. Porque negar existência intelectual a Olavo de Carvalho não elide do pensamento contemporâneo do país as agudas críticas que ele fez à filosofia uspiana, especialmente a José Américo Mota Pessanha e à própria Marilena Chauí.

Não quero dizer com isso que Olavo de Carvalho seja o senhor da razão. Penso até que exagera em suas críticas à esquerda, algumas delas equivocadas. Mas a atitude da filosofia acadêmica, que antes de lê-lo se põe a difamá-lo, em nada contribui com a formação dos alunos. Ela parte da pequenez intelectual, incapaz de absorver a torrencial argumentação de Olavo de Carvalho, e deságua no pensamento dogmático, responsável pela ruína da educação brasileira em todos os níveis. Para entender esse estado de sítio em que se meteu a inteligência no país, só mesmo lendo o monumental O Jardim das Aflições, de Olavo de Carvalho, em que, descontados alguns daqueles exageros contra a esquerda, tem-se um límpido e ousado panorama crítico das idéias no mundo ocidental, com a vantagem de nele se incluir o Brasil. Tudo de um modo desassombrado, típico do pensador paulista.

Entretanto, Marilena Chauí parece não ter tempo de ler esse tipo de livro. Desconfio que seu estudo de Espinosa nada tem de “afinidade eletiva”, como tenta fazer crer; é somente uma obrigação burocrática ditada pelo caminho quase sem volta das pesquisas de pós-graduação – eles botam o sujeito no trilho acadêmico e o descarrilam para a inteligência. Como explicar que alguém que transpira Marx possa adorar Espinosa? Em duas entrevistas (nas revistas República e Caros Amigos), ela deixa transparecer esse equívoco. Conta que começou a estudar Espinosa a partir de uma conferência de um professor. E o fez porque, ao ouvi-lo, entendeu ter Espinosa criado uma filosofia que suprime o pecado, a culpa, o livre-arbítrio, a onisciência divina e oferece somente felicidade e alegria. O professor não corrigiu esse primeiro erro e, então, Marilena saiu pelo mundo a fazer de Espinosa um gauche na vida.

Na palestra na faculdade, sua despreocupação com a correção do intelecto chega ao absurdo. Um aluno lhe perguntou se por trás dos hábitos – como não tomar sorvete numa audiência na Justiça ou não ir de terno para a praia – haveria algum tipo de coerção voltada para algum interesse político. Até essa pergunta esconsa, que exige uma resposta capaz de atualizar o autor dela com o abecedário antropológico, ganhou de Marilena uma exegese de sabor marxista. Isto é, a mestra disse exatamente o que o discípulo queria ouvir, inaugurando uma espécie de teoria conspiratória dos costumes. Citando apenas dois exemplos de moda ditada pela classe dominante (um deles o uso da bengala pelos burgueses, em substituição à espada que eram impedidos de usar), ela teve a coragem de fazer de todos os costumes uma imanência do poder político, mais nada. O que é cuspir sobre a mais elementar noção de cultura. Provavelmente, não teria coragem de escrever semelhante asneira (em que pese ter escrito outras, devidamente denunciadas por Olavo de Carvalho), mas não se importou em proferi-la, levianamente despreocupada com o fato de que a maioria de seus ouvintes toma suas palavras por verdade e, preguiçosamente, não corrige com a leitura o que ela desconserta com sua loquacidade.

Entretanto, a mais grave distorção que Marilena Chauí fez do pensamento de Espinosa, na conferência da UFG, foi sem dúvida a sua insistência em reduzir a filosofia a uma “crítica do presente”, expressão que transformou num refrão. Também fiquei com vontade de perguntar à filósofa uspiana o que é o presente para sua filosofia. Em essência, o presente não passa de uma ilusão dos sentidos, suprimido a cada átimo de segundo pelo passado que se acumula e pelo futuro que se exaure. Historicamente, como parece ser o sentido que Marilena quis dar à sua expressão, o presente exige mais que a instantaneidade do jornalismo. Se é assim, porque Marilena Chauí, em sua conferência, não falou o nome do presidente Fernando Henrique Cardoso, preferindo demonizá-lo, chamando-o de “Desgraça”? Há menos de 20 anos, Fernando Henrique era um paradigma para ela e seus colegas. Ora, se Marilena não é capaz de ponderar esse passado tão presente até na sua vida, fica claro que, ao propor aos seus alunos que façam a “crítica do presente”, ela está, na verdade, confundindo filosofia com jornalismo e exigindo que o presente deles seja as fronteiras do aqui-agora. É a filosofia oscilando entre o artigo de jornal e as teses do PT.

Mas se Marilena Chauí tenciona fazer de todo filósofo um mero comentarista de jornal, que escolha como mestre um Voltaire, um Rousseau, ou mesmo um Montaigne. Espinosa não serve. A própria Marilena Chauí sabe disso, como se percebe nos dois volumes de Espinosa que preparou para a série Os Pensadores. Entretanto, a necessidade de afagar o ego da juventude, para transformá-la em militância, fizeram de seus consideráveis estudos filosóficos desprezíveis panfletos políticos, que transformaram a Faculdade de Filosofia da UFG numa Praça do Bandeirante. E nesta manhã de 7 de outubro de 1999, o filósofo Baruch de Espinosa foi excomungado pela segunda vez – para melhor engessá-lo na militância, Marilena Chauí o expulsou da filosofia. Mais algumas ovações, e ela o transforma em ideólogo do MST.

Post-scriptum cafajestíssimo

Olavo de Carvalho

Pouco tenho a acrescentar às notas do valente jornalista goiano José Maria e Silva. Apenas o seguinte:  

Como D. Marilena confessa que não leu nenhum de meus escritos, sua opinião sobre eles ou sobre o autor vale, exatamente, um peido.

Metade de um peido, se tanto, vale a autoridade do acadêmico que, admitindo desconhecer o assunto, opina sobre ele em público com ar de quem sabe o que diz, enganando a platéia que nela depositou sua confiança.

Já a confiabilidade de uma criatura que, desconhecendo não somente os escritos mas também o autor, se aventura desde o alto da cátedra a imputar-lhe má conduta pessoal, sem ter a alegar em favor desta arriscada conjetura senão um zunzum ouvido de testemunha anônima, essa então escapa, por infinitesimalidade intrínseca, à possibilidade de ser medida em peidos humanos.

Requer a escala flatulencial dos micos.

17/10/99

Nota de rodapé ao Post scriptum cafajestíssimo

Alguns meses antes de receber do jornalista José Maria e Silva o relato do que D. Marilena fôra dizer de mim lá em Goiás — e que na mesma hora chegou a mim na Europa –, redigi para a segunda edição de meu livro O Jardim das Aflições, ainda hoje em preparo, a seguinte nota de rodapé que, por absoluta pertinência ao caso, hei por bem reproduzir nesta homepage:

Algum tempo após os acontecimentos comentados neste livro, D. Marilena, graças a substancial ajuda oficial e privada, retirou-se por seis anos da agitação pública para, entre as dores e júbilos da criação, finalmente dar existência escrita ao livro-mito que desde duas décadas antes já era celebrado, pelo seleto círculo dos que o leram dos lábios da autora, como obra magna destinada a fazer da ex-musa do Departamento de Filosofia da USP a intérprete e porta-voz definitiva do filósofo judeu holandês Baruch de Spinoza, coisa que na idade dela, se não resolve, ao menos eleva, honra e consola. A Nervura do Real, com mil páginas de texto mais duzentas de notas em volume separado, saiu pela Companhia das Letras em 1999. Trata-se de uma mixórdia formidável, onde soltando perguntas a esmo sem conseguir formular um problema central, D. Marilena, na conclusão, diz finalmente a que veio: veio provar que Spinoza, por menos que o suspeitasse, era no fundo materialista e até mesmo um tanto petista. O livro foi aplaudidíssimo por pessoas que, admitindo-se incapacitadas para lê-lo, declaravam ver nisto uma prova das excelsas qualidades da obra. Fora disto, A Nervura do Real foi lido apenas pelos revisores e – horresco referens – por este que lhes fala. [Nota da 2ª ed.]

O bicho-síntese

Olavo de Carvalho

Bravo!, outubro de 1999

James Bryce, no fim do século passado, observou que para a elite brasileira as palavras eram mais reais do que as coisas. Transcorrido um século da visita do diplomata inglês, temos de admitir que o verbalismo assinalado por ele não é apenas o hábito de um grupo social localizado. O culto das palavras, uma hipersensibilidade às harmonias sonoras que chega a distrair do curso do pensamento, a idolatria da técnica verbal vista como o supremo sinal de inteligência a despeito do conteúdo ralo ou nenhum são constantes da mentalidade brasileira, independentes dos grupos e classes, das épocas e situações.

Quem hoje em dia assista na televisão a entrevistas de intelectuais e políticos se surpreenderá — caso não esteja ele próprio contaminado ao ponto de não notar nisto nada de anormal — com o fato de que seja possível criar tantas opiniões com tão poucas idéias. Mais surpreendente ainda é a capacidade que essas criaturas têm de reproduzir os mais tontos lugares-comuns com a fisionomia concentrada de um pensador que impusesse a seu cérebro as provações dolorosas de uma sondagem intelectual profundíssima. Abaixando o volume e contemplando esses senhores na pureza da sua expressão visível, diríamos que cada um deles é um Leibniz a enunciar as sutilezas do cálculo infinitesimal ou um Swedenborg a surpreender os incrédulos com a descrição dos mundos celestes. Aumentamos o volume, e percebemos que estão apenas falando mal ou bem do governo. Um dia vi na TV Cultura o sapientíssimo Paulo Freire. Tinha o cenho franzido, as mãos em garra, o olhar fixo na distância como quem divisasse no horizonte uma verdade longamente buscada. Tudo isso para soltar esta jóia: “Devemos ser tolerantes — mas não com os nossos inimigos”. Mesmo ouvida com a maior boa vontade, essa frase nada mais significa senão que devemos chamar a intolerância de tolerância.

O que mais impressiona nesse fenômeno é a precisão, a arte, mesmo, com que no Brasil quem não tem nada a dizer sabe imitar, na entonação das frases e no suporte gestual, o estilo dos sábios e profetas.

Um sintoma característico é o modo nacional de ler poesia. O teste decisivo do valor poético é a paráfrase em prosa, a explicitação do sentido (ou sentidos) do verso. Um só verso deve conter muitas sentenças em prosa, compactadas na unidade indissolúvel de música e significado. “Life is but a walking shadow” ou “Transforma-se o amador na coisa amada” contêm filosofias inteiras. Um público universitário não poderia prosternar-se de adoração devota ante um verso como “Amor morto motor da saudade”, se notasse que significa apenas que o poeta sente falta de sua ex-namorada — e, pior ainda, se percebesse que um sentimento banal não se torna mais valioso por vir empacotado na aliteração tô-tô-mô-mô. Portanto ele evita notar isto. Contorna a questão do valor poético recusando-se a fazer a paráfrase desmistificadora e, para sustentar a ilusão, atribui à poesia o estatuto de um mistério excelso que não deve ser profanado pelo exame racional — sendo a palavra “racional”, aí, pronunciada em tom de infinito desprezo. O puro jogo sonoro, a coceirinha nos ouvidos, torna-se o emblema de uma ciência secreta, inacessível ao comum dos mortais. A mistificação nada pode sem a ajuda da automistificação.

Diante de semelhante fenômeno, um observador severo e isento diagnosticaria na classe letrada nacional um caso de psitacismo endêmico. Erraria, no entanto. A habilidade dos psitacídeos esgota-se no mimetismo sonoro, ao passo que o fato aqui mencionado comporta igualmente uma essencial componente muscular e gestual, sobretudo no que concerne à reprodução das expressões mais finas do rosto humano. Isto não há papagaio que faça. Para chegar a tanto, é preciso acrescentar às potências vocais dessa ave a desenvoltura cênica e malabarística do outro animal emblemático da fauna mental brasileira: o macaco. Sim, a arte nacional da imitação é tão rica, que não pode ser simbolizada por um animal só, mas exige um bicho composto, macaco e papagaio ao mesmo tempo: o papaco ou macagaio, também chamado papamaco, pacagaio ou mapapaco. O nome pode variar tanto quanto as manifestações onímodas da criatura mesma. Deixo-o aos cuidados dos cultores de combinações sonoras não substancialmente mais lindas que tô-tô-mô-mô, e resumo meu argumento declarando que, qualquer que seja o caso, o sentido da maior parte dos ditos e escritos em circulação no país só pode ser apreendido mediante um conceito que sintetize, num termo único, macaquice e papagaiada.

8 de setembro de 1999