Da dúvida crédula

Olavo de Carvalho

14 de dezembro de 1999

O que leva um homem a duvidar é ou a percepção de um problema sugerido pelos dados de uma realidade ao menos aparentemente contraditória, ou uma sugestão de sua própria imaginação excitada pelo medo, pela suspeita, pela incompreensão, pela simples má vontade. Tal é a diferença entre a dúvida filosófica e a dúvida ociosa.

A mente treinada não tem dificuldade em distinguir esses dois tipos de dúvidas e em rejeitar o segundo como indigno de atenção filosófica. Quatro séculos de cultura céptica, porém, fizeram da dúvida imaginária um hábito, um valor e um dogma do senso comum, tão difícil de desarraigar quanto as mais toscas superstições e crendices, e igualmente danoso para a inteligência.

Num meio social desguarnecido de valores culturais consolidados, a dúvida ociosa pode alastrar-se para todos os domínios da atividade pensante, paralisando as inteligências e tornando impossível o aprendizado. Não hesito em dizer que, entre os jovens estudantes brasileiros, esse fenômeno é o maior obstáculo à aquisição de uma cultura filosófica.

É da própria essência da dúvida filosófica articular-se racionalmente em vista de uma solução, ao passo que a dúvida ociosa é, por natureza, obsessiva e proliferante. Enquanto o questionador filosófico só rejeita uma afirmação quando os motivos de negá-la sejam patentemente mais razoáveis que os de aceitá-la, o espírito acometido de dúvida ociosa não hesita em proceder como se simples hipóteses inventadas, pelo simples fato de serem destrutivas, devessem ser mais confiáveis do que as crenças do senso comum ou os dados dos sentidos. Ao velho prestígio romântico do negativo e do macabro acrescenta-se a moda mais recente: a apologia geral da “independência” e da “rebeldia” faz com que cada um se sinta um grande homem quando em nome de hipóteses artificiosas nega aquilo que vê ou sente, sem notar que, ao fazê-lo, sacrifica suas percepções autênticas e pessoais no altar de um cacoete coletivo, e que sua afetação de independência crítica não passa, assim, do mais puro servilismo e espírito de rebanho.

Duas influências filosóficas remotas que, por estar incorporadas em correntes de opinião coletivas, exercem facilmente sobre a mente dos principiantes uma autoridade tendente a legitimar o ceticismo ocioso, são a filosofia analíticae o marxismo. A primeira oferece ao estudante a possibilidade de viver imerso num mar de dúvidas paralisantes, das quais se sente ao mesmo tempo solidamente abrigado sempre que foge para o recinto estreito do “método científico”, como se este não fosse apenas um conjunto de procedimentos coletivos de verificação e prova que subentende, na mente individual que o pratica, a capacidade para uma infinidade de certezas diretas que transcendem, em muito, os dois critérios admitidos nesse mesmo método, isto é, os dados atomísticos dos sentidos e as leis da lógica indutiva. Quanto ao segundo, oferecendo para as dúvidas filosóficas a falsa solução de absorvê-las na praxisrevolucionária, o que no fim das contas não é senão mudar de assunto, permite que na mente do estudante coexistam, sem choque aparente, a dúvida mais corrosiva ante os valores e crenças do adversário e a mais sonsa credulidade ante as pretensões da sua própria ideologia. Que ambas essas filosofias acabem sempre se fechando nas suas “tradições” próprias, incapazes de dialogar com o que quer que não consinta em obedecer às regras de seus respectivos “universos de discurso”, e que cada uma delas esteja inseparavelmente associada a um esquema de poder – capitalista e comunista –, já deveria ser suficiente para mostrar que a mente que se pretenda livre e independente não deve, desde logo, aceitar as premissas de uma ou de outra. Mas a dúvida ociosa, sendo por natureza irracional e sentimental, não busca verdadeiro conhecimento, e sim apenas o apoio prestigioso de uma coletividade que a estimule a duvidar seletivamente daquilo que odeia e crer não menos seletivamente naquilo que adora. Por isto mesmo ela sente uma atração irresistível por uma dessas ideologias, quando não pelas duas ao mesmo tempo, dizendo ante Wittgenstein e Marx: Entre les deux, mon coeur balance.

A dúvida crítica é apenas uma dentre as muitas operações da inteligência discursiva, e seu exercício fecundo subentende a inteligência íntegra, informada e culta, armada daquele senso das proporções que só uma longa educação pode dar. Mas, precisamente, a dúvida prematuramente estimulada, seja pela moda, seja por interesses políticos maldosos, faz com que o exercício dessa operação em particular se antecipe e se substitua ao todo da inteligência, bloqueando qualquer aprendizado possível.

Enquanto não libertarmos desse círculo vicioso a mente do estudante brasileiro, não haverá autêntica filosofia entre nós.

O Anti-Gramsci ~ 2

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

Introdução à Filosofia pelo Método Crítico-Dialético

13 de dezembro de 1999

 

  • 4. A resposta infalível a uma pergunta postiça

Logo a seguir, Gramsci afirma:

Nota IV. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta, por parte de um “gênio filosófico”, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais1.

“Ideologia” é um tipo de discurso que, em defesa de valores arbitrários e no mais das vezes implícitos e não declarados, enfatiza determinados aspectos da realidade que sirvam de suporte retórico para esses valores, ocultando ou minimizando os aspectos contrários, por mais evidentes ou importantes que sejam e por mais improvável que seja escaparem à atenção de qualquer observador isento. Ideologia é seletividade deformante da realidade conhecida, em vista de um interesse político.

Nesse sentido, o discurso ideológico não é nunca “dialético”, por mais que se pavoneie de sê-lo, pois foge ao confronto dos contrários. O confronto faria automaticamente vir à luz os pressupostos implícitos no discurso, atenuando, relativizando ou eventualmente impugnando aquilo que ele deseja afirmar. Por isto mesmo é evitado. Para evitá-lo, recorre-se à argumentação por topoi ou lugares-comuns, que, dando uma aparência de obviedade imediata a um determinado juízo de valor, subtrai à atenção do ouvinte as bases da pergunta a que essa afirmação responde e portanto sonega-lhe a possibilidade de questionar a formulação mesma dessa pergunta, sua adequação ao problema de que se trata, sua relevância maior ou menor em comparação com outras abordagens possíveis do mesmo tema, etc. Tudo isto, como que por milagre, desaparece do horizonte de consciência do ouvinte ou leitor, sobrando somente a imagem hipnótica da pergunta isolada e da resposta infalível.2

O parágrafo que acabo de citar é um exemplo perfeito de discurso ideológico, marcado pela ênfase unilateral que escamoteia à atenção do leitor as mais óbvias comparações sugeridas pela apresentação mesma do assunto.

Esse parágrafo coloca-nos diante de uma oposição entre a verdade conhecida solitariamente por um pensador isolado e a verdade colocada a serviço da ação coletiva, e afirma, resolutamente, que esta é melhor e mais importante. À primeira vista, é uma afirmação óbvia de simples senso comum. O remédio para uma doença grave, por exemplo, vale menos quando só um homem o conhece do que quando posto a serviço de muitos. É um topos ou lugar-comum: o bem de muitos é melhor que o bem de poucos ou de um só.

Assim, colocada a pergunta: “Que é que vale mais – a descoberta individual ou sua difusão entre muitos?”, a mente entorpecida opta automaticamente por esta última, sem questionar se a pergunta mesma faz sentido.3 No caso, o questionamento, que na mente filosoficamente treinada emergiria de maneira quase espontânea à simples leitura desse parágrafo, poderia assumir a seguinte forma: Que sentido faz equacionar o problema sob a forma dessa oposição, se nunca ou quase nunca um descobridor tende a guardar sua descoberta para si, mas quase que necessariamente o impulso da descoberta vem junto com o impulso da difusão? A oposição colocada é natural, necessária, sugerida pela natureza mesma dos fatos ou, ao contrário, é uma abordagem postiça, arbitrária e puramente inventada com o propósito de impingir um certo juízo de valor mediante o truque de apresentá-lo como resposta a uma pergunta postiça especialmente planejada para esse fim?

A resposta a este questionamento indicará se estamos diante de um exame filosófico sério ou de um joguinho retórico.

Mas o questionamento pode ir um pouco mais fundo e perguntar: Que razões filosoficamente válidas haveria para montar uma oposição entre a verdade solitariamente conhecida e a ação coletiva, se esta última não tem conexão lógica com a veracidade ou falsidade das idéias que a inspiram, e se em suma, como o demonstra abundantemente a História, considerados enquanto meios de “conduzir uma multidão de homens a pensar coerentemente e de maneira unitária“, a mentira ou o erro funcionam tão bem quanto a verdade?

Basta fazer esse breve questionamento para perceber que a oposição entre a verdade solitária e a verdade que beneficia as massas não é de maneira alguma um problema sério sugerido pela experiência histórica, mas, bem ao contrário, é apenas uma hipótese abstrata e arbitrária cuja discussão, se pode servir para exercícios de retórica escolar, em nada nos fará avançar no conhecimento da realidade.

Em terceiro lugar, para qualquer cérebro treinado em lógica, não há nenhum sentido em fazer uma comparação de valorentre uma coisa e aquilo que é condição de possibilidade dessa coisa. A descoberta individual – de uma verdade, de um remédio, de um equipamento – é condição de possibilidade prévia à difusão dessa descoberta, assim como ter nascido é condição de possibilidade para que um sujeito continue vivo aos trinta anos. A pergunta subentendida na abordagem de Gramsci é pueril, artificial e fingida como o seria uma redação escolar com o tema: “O que é melhor: ter nascido ou chegar vivo aos trinta anos de idade?”

Em nenhum momento de sua extensa obra4 Antonio Gramsci sobe acima desse nível ginasiano de abordagem dos problemas.

 

  • 5. Ordem intelectual e religião

 

“A filosofia é uma ordem intelectual,
coisa que nem a religião
nem o senso comum podem ser.”
5

Esta sentença já mostra o quanto Gramsci está disposto a falar da religião sem ter dela o menor conhecimento. Toda religião é necessariamente uma ordem intelectual – embora não seja somente isso -, e é a capacidade de ser elaborada progressivamente nos amplos sistemas racionais da teologia dedutiva que diferencia, precisamente, uma religião de uma pseudo-religião6.

Mais ainda: somente dentro do corpo das religiões pode surgir e desenvolver-se a vida intelectual em sentido eminente, que supõe o predomínio do pneuma sobre a psyche e a bios, inalcançável – exceto por milagre — sem o suporte ritual e simbólico das práticas religiosas.

Pela própria incapacidade de perceber a independência eidética do plano espiritual em relação ao psíquico e mesmo ao biológico – pois só a um psychicos bem prisioneiro de seus estados subjetivos ocorreria a idéia de fazer uma comparação de valor, no mesmo plano, entre uma verdade teorética e sua aplicação prática –, Gramsci não poderia jamais conceber o que é uma religião. Por isto mesmo, limita-se a considerá-la somente enquanto “elemento do senso comum desagregado7, sem notar que não está falando de uma religião e sim do resíduo sociológico de uma religião extinta que se tornou metafórica.

Não que ele ignore, por completo, que há alguma diferença entre a religião e sua expressão sociológica ou, como ele diz, política. Mais adiante ele nos dará um sinal de que sabe que essa diferença existe – e a prova inequívoca de que radicalmente não sabe em que ela consiste.

Por enquanto, limitemo-nos a observar o seguinte. Ele diz que a filosofia é uma ordem intelectual precisamente em contradistinção à religião, que não o é. Mas a verdade é precisamente o contrário. A religião, para existir, tem de ser não apenas uma ordem intelectual completa e racionalmente coerente em todos os seus pontos – e a simples existência de um direito canônico já o demonstra desde logo –, mas também essa ordem tem de ser indefinidamente abrangente, isto é, capaz de ampliar-se num número ilimitado de desenvolvimentos lógicos que em nada desmintam os seus princípios ou dogmas fundamentais. A religião é não apenas uma ordem intelectual, mas uma ordem sistêmica, e esta ordem sistêmica deve abranger – ou pelo menos não contradizer – todas as experiências e conhecimentos possíveis em todas as direções, motivo pelo qual o trabalho de tirar conseqüências lógicas do dogma e de coerenciar com ele as novas descobertas e experiências humanas é, em todas as religiões, um trabalho contínuo e sem fim. Mais ainda, essa ordem, na medida em que se expande logicamente em todas as direções sem contradição com os dogmas centrais, pode-se dizer que já está dada sinteticamente nesses dogmas, os quais contêm a semente de todos os seus desenvolvimentos possíveis. A menor ruptura ou incoerência nesse sistema constituirá, precisamente, o que se chama um cisma.

Em contraposição com isso, nenhuma filosofia pode se gabar de possuir a priori, como a religião, um conjunto de princípios tão abrangentes e tão universalmente válidos que deles tudo se possa deduzir ou tudo se possa harmonizar logicamente com eles indefinidamente até o fim dos tempos. Na medida mesma em que o conhecimento filosófico é de natureza crítica, ele não pode ter a pretensão de constituir um sistema ao mesmo tempo fechado e passível de desenvolvimentos infinitos. Por isto mesmo, os filósofos têm dedicado os seus esforços mais a descobrir e equacionar problemas do que a encontrar soluções definitivas. E, com mais forte razão ainda, aí se impõe a conclusão de que, se a religião é necessariamente uma ordem intelectual e uma ordem completa ou ao menos idealmente completa, toda filosofia é apenas um esforço crítico em direção a uma ordem possível que não se atinge e não se completa nunca.

A insistência obsessiva de Gramsci no caráter organizado, sistêmico e unitário das filosofias não prova outra coisa senão a sua pouca prática nos estudos filosóficos, pois, na maior parte das filosofias a unidade sistêmica não passa de um vago ideal orientador jamais realizado (e às vezes abandonado por completo, como no caso das filosofias ditas, como a de Nietzsche, “problemáticas” por oposição a “sistêmicas”), sem que elas deixem de ser filosofias por isto. Mais ainda, como o demonstrou Vladimir Soloviev, todas as filosofias contêm necessariamente em si alguns pontos de incoerência, dos quais nasce precisamente a possibilidade de que sejam contestadas, corrigidas ou modificadas pelas filosofias subseqüentes. Uma filosofia não se torna menos valiosa por conter incoerências internas, e é mesmo um dever do próprio filósofo, quando as percebe, assinalar sua presença, como o fez por exemplo Aristóteles, ao dar sinal de que notava, sem poder resolvê-la, uma incoerência básica do seu próprio sistema (no entanto um dos mais coerentes já surgidos) ao proclamar que só existe conhecimento científico do geral e que só o singular é real, sem consentir em tirar disto a conclusão de que o conhecimento é falso ou inadequado.

Já uma religião, se lhe aparecesse no corpo, à vista de todos, um rombo desse tamanho, já não seria uma religião e sim duasreligiões, ou, melhor ainda, uma guerra de religiões.

A idéia de que a coerência unitária é uma característica essencial da filosofia, bem como a de que uma religião não é e não pode ser uma ordem intelectual reflete apenas a imaginação pueril de um palpiteiro inculto que, por falta de informação histórica válida, toma como certezas científicas os lugares-comuns do meio em que vive.

 

NOTAS

  1. A Concepção Dialética da História, pp. 13-14.
  2. Em comparação com isto, o exame filosófico caracteriza-se precisamente por explicitar ou por deixar subentendidas ao alcance do bom entendedor outras abordagens possíveis, respondendo a todas elas ao mesmo tempo, seja de maneira explícita e analítica, seja implícita e sintética.
  3. Em contraposição a isto, a primeira preocupação do autêntico filósofo na exposição de suas idéias é a de provar que as perguntas que formula são fundamentais, que seu modo de abordar o assunto é melhor do que outros modos já tentados, etc. Ele pode fazer isto de maneira explícita ou implícita, mas, qualquer que seja o caso, a parte mais significativa do esforço filosófico é sempre a de equacionar corretamente as perguntas, nunca a de sair respondendo, de cara, a perguntas que não foram, elas mesmas, objeto de qualquer exame crítico.
  4. Refiro-me somente aos livros que li: a Concepção Dialética da HistóriaMaquiavel, a Política e o Estado ModernoLiteratura e Vida NacionalOs Intelectuais e a Organização da Cultura; e Cartas do Cárcere – todos publicados pela Civilização Brasileira sob a orientação de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Na época em que li essas porcarias, as edições originais italianas eram muito caras e privei-me da sua leitura confiado na afirmação dos próprios editores de que esses cinco eram os livros principais – não sendo portanto de prever que pudesse encontrar nos outros alguma revelação assombrosa capaz de mudar de alto a baixo a compreensão do pensamento de Gramsci que por eles se podia obter. Se a edição completa trouxer surpresa nesse sentido, seus editores, sendo os mesmos da velha, terão a obrigação de declarar que, ao posar pela primeira vez perante os leitores como especialistas em Gramsci, não tinham sequer aprendido a discernir, na massa dos seus textos, o importante e o desimportante. Para a felicidade deles, não creio que isso possa acontecer, pois tão extensos são os livros mencionados, que dificilmente, no que sobra por editar em português, seu conteúdo essencial poderá vir a ser desmentido.
  5. P. 14.
  6. Não será demais observar que praticamente todos os instrumentos de análise lógica existentes, fora os inventados por Aristóteles e os acrescentados 2.400 anos depois dele pela moderna lógica matemática, foram desenvolvidos por religiosos para fins de exposição e discussão doutrinal. As contribuições infinitamente ricas das lógicas hindu, taoista, budista, islâmica, judaica e escolástica ao desenvolvimento da teoria da prova e da argumentação seriam uma imensa gratuidade histórica absolutamente inexplicável se a religião não fosse uma “ordem intelectual”.
  7. Id.

 

O Anti-Gramsci ~ 1

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

Introdução à Filosofia pelo Método Crítico-Dialético

10 de dezembro de 1999

 

Nota Prévia

No Jornal da Tarde de 8 de dezembro de 1999, prometi aos leitores fazer um comentário extensivo dos escritos de Antônio Gramsci, publicando-o à medida que fossem saindo os volumes da edição nova e completa anunciada pela Record.

Como, porém, o organizador da coleção é o mesmo da velha (publicada pela Civilização Brasileira a partir de 1967) e no tocante aos livros que já saíram nesta última não é provável que se façam grandes alterações nos textos, não há necessidade de esperar que saia o primeiro volume para iniciar a redação dos comentários, que posso muito bem ir fazendo com base na edição antiga, pronto a corrigir algum detalhe se mais tarde se revelar que o texto da Record traz novidades.

O método a seguir será o comentário linear, tão meticuloso quanto possível, recapitulado, de tempos em tempos, sob a forma de sínteses parciais, até o amargo fim.

Como ninguém duvida de que, do ponto de vista das bases gnoseológicas do seu sistema, o escrito mais decisivo de Antonio Gramsci é Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, e como este foi aliás o primeiro deles a ser publicado no Brasil (sob o título Concepção Dialética da História, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio, Civilização Brasileira, 1967, várias reedições)1, é por aí mesmo que vou começar.

Como estes comentários irão sendo divulgados pela internet à medida que se componham, e como é provável que os leitores lhes interponham de tempos em tempos perguntas e objeções, vou-me permitir interromper quando necessário o curso da exposição central para fornecer as respostas cabíveis – o que dará a este escrito o estilo movimentado de uma exposição em classe.

Já que muitos leitores vinham me pedindo algo como um curso de filosofia online, eis aqui a oportunidade de atender à sua demanda, e de fazê-lo de uma forma que será praticamente idêntica à de meus cursos “ao vivo”, nos quais, exatamente como aqui, prefiro, à exposição tratadística e sistemática, para a qual não tenho o menor talento, a abordagem dialética e crítica ao fio dos comentários a algum texto amado ou execrado. (Amado ou execrado, sim, porque, quando não resulta de um preconceito e sim das conclusões de um longo exame, a firme adesão ou repulsa moral, longe de obscurecer a visão objetiva das coisas, é a condição mesma da confiabilidade do conhecimento, se por conhecimento se entende não a simples visão, mas a visão com forma, medida e senso das proporções.)

Ademais, a discussão de Gramsci nos dará, de passagem, a ocasião de tocar em todos ou quase todos os pontos essenciais da problemática filosófica, de modo que estas lições perfarão, no fim das contas, um curso de introdução à filosofia com todas – ou quase todas – as exigências de praxe.

Olavo de Carvalho

10/12/99

 

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Parte I. ~ Comentários a
Il Materialismo Storico e la Filosofia
di Benedetto Croce

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Lição 1. – Introdução. – De como a filosofia parece fácil aos olhos de quem não sabe (ou finge não saber) o que ela é.

 

  • 1. Minha atitude pessoal perante o objeto destas lições

 

“Gramsci inspira respeito até mesmo aos seus mais encarniçados adversários”, afirmam Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder na nota introdutória à sua edição de Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce (A Concepção Dialética da História, Rio, Civilização Brasileira, 6ª ed., 1986), a primeira obra de Gramsci publicada no Brasil.

Há de fato um certo tipo de liberal progressista que tem, pelos intelectuais comunistas bem falantes, até mais que respeito: tem uma atração mórbida bastante masoquista. Dostoiévski retratou definitivamente o tipo em Os Demônios no personagem de Verkhovenski Sênior, o devoto da liberdade, da fraternidade e da igualdade, fazendo dele, simbolicamente, o pai carnal do cruel revolucionário que, para fomentar a revolta popular, não hesita em atear fogo a um bairro pobre da cidade. Mas Verkhovenski, no final do romance, percebendo na desgraça do povo a conseqüência lógica da aplicação de seus lindos ideais abstratos, tem ao menos a dignidade de ficar louco, e na sua loucura, como um novo Lear, admitir por fim a verdade longamente escamoteada.

Como à maioria dos idealistas falta completamente a lucidez que in extremis assume a responsabilidade pelas conseqüências imprevistas de suas palavras, não é de estranhar que mesmo entre seus adversários Gramsci “inspire respeito”.

Quanto a mim, digo o seguinte: se há algo que Gramsci não me inspira de maneira alguma, é respeito. Pode me inspirar espanto, repugnância, piedade, até mesmo hilaridade, embora seja pecado rir da desgraça alheia. Respeito, não. A falsidade da doutrina gramsciana não nasce de simples erros ou preconceitos parciais sobre um fundo de autêntico espírito filosófico e amor à verdade. Ela decorre de um desvio fatal do espírito, de uma opção tenaz pelo engano, que vicia todo o conjunto do seu pensamento. Enquanto a maioria dos filósofos vislumbra alguma verdade essencial e depois tira dela algumas conseqüências inaceitáveis, Gramsci se compromete desde o início com um erro essencial que contamina e deforma com uma perspectiva falsa até mesmo as inúmeras verdades de detalhe que ele apreende sobre mil e um assuntos. Em psicopatologia, esse fenômeno chama-se delírio de interpretação: por mais informações verdadeiras que entrem no quadro, a falsidade da perspectiva as deforma de tal modo que, no fim, nada se salva. Se Gramsci fosse louco – e às vezes, cum grano salis, digo que é -, sua doença se deixaria facilmente identificar como delírio de interpretação, mais ou menos como no caso de Rousseau, mentiroso patológico que tinha o dom de se persuadir das próprias mentiras até torná-las verossímeis aos olhos do leitor. Mas Gramsci não era um doente da alma, como o pauvre Jean-Jacques. Era simplesmente um homem hostil à verdade onde quer que ela aparecesse e sob qualquer forma que se apresentasse. Era um espírito comprometido de maneira essencial e visceral com a paixão – talvez a mais violenta e arrebatadora de quantas existem – de trocar o verdadeiro pelo verossímil, de preferir ao autêntico o simulacro, até o ponto de fazer da simulação e da pantomima o princípio mesmo da História e do mundo. Por isto as explicações psicopatológicas falham, irremediavelmente, no seu caso. É preciso subir às alturas da teologia para dar conta de fenômeno tão espantoso. Jesus dizia: “Vós sois deuses”, enquanto a serpente, no Paraíso, prometia: “Sereis comodeuses.” A doutrina de Antonio Gramsci advoga a universal e irrecorrível substituição da verdade por algo como a verdade. Essa conduta assinala precisamente aquilo que, na teologia cristã como na islâmica, é o pecado contra o Espírito Santo, o obstinado e consciente desprezo da verdade – o único pecado que a Graça não pode perdoar, nem neste mundo nem no outro. Tamanho delito não se pode imputar nem mesmo a Karl Marx ou a Lênin, talvez nem sequer a Josef Stálin. No Juízo Final, Jesus terá um olhar de misericórdia mesmo para os tiranos e genocidas. Mas àqueles que conscientemente desprezaram a verdade, Ele dirá apenas: “Não vos conheço.”

“Respeito” vem de re-spicere, que sugere a idéia de olhar o mesmo objeto duas vezes e reconhecê-lo. Aquele a quem nem o próprio Deus reconhece não pode, por definição, ser objeto de respeito, exceto se por “respeito” se entende o impulso servil que leva as almas débeis, como a de Verkhovenski, a se prosternar ante os que mentem com força. É algo como a “síndrome de Estocolmo” ou a atração ex post facto da estuprada pelo estuprador.

Nada atesta com mais evidência a fragilidade da maior parte dos ideólogos democráticos do que o fato de que tantos deles, mesmo abominando a doutrina de Gramsci, cedam à tentação de “respeitar” o seu autor.

Que, ao longo dos comentários que vou tecer sobre a doutrina de Gramsci, Deus me preserve desse pecado.

 

  • 2. Filósofos e filósofos

 

Começo pelo começo. O começo, o primeiro parágrafo de Gramsci que apareceu em português, é tão significativo que a edição hagiográfica do suplemento Mais! da Folha de São Paulo dedicado a Antonio Gramsci (21 de novembro de 1999) o escolheu, muito bem, como amostra característica do pensamento do fundador do Partido Comunista Italiano.

Esse parágrafo contém, a um tempo, a concepção gramsciana da filosofia, a noção essencial de “senso comum” e a declaração de objetivos de todo o esforço intelectual de Antonio Gramsci.

Analisando-o entramos portanto, desde logo, no centro do problema ou, melhor dizendo, na toca do dragão:

“É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”.

Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente – já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo -, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?” 2

Nesse trecho célebre, Gramsci dá uma exibição de incultura filosófica, incompreensão do assunto e solipsismo adolescente ansioso de fazer das suas próprias limitações pessoais a medida máxima do universo filosófico.

Ele aí busca persuadir-nos de que a prática da filosofia é coisa fácil porque, entre a filosofia espontânea do homem comum e a filosofia dos filósofos não há diferença essencial e qualitativa, mas apenas acidental e quantitativa: a filosofia dos filósofos é o mesmo sistema de crenças dos homens comuns, apenas dotado de mais coerência, mais homogeneidade, mais lógica.

Gramsci não concebe aí senão dois tipos de “filósofos”: o profissional especializado e o “homem comum” – aquele que filosofa ex officio e aquele que filosofa sem saber que o faz.

Para perceber o quanto essa distinção é periférica e postiça, basta notar que o príncipe mesmo dos filósofos, Sócrates, não se enquadra em nenhuma dessas categorias, como também aí não cabem Tales e Heráclito, Epicteto e Agostinho e uma infinidade de outros. Não são profissionais especializados nem filosofantes inconscientes.

A quem quer que examine uma amostragem significativa dos filósofos de todas as épocas, uma coisa que salta aos olhos é a absoluta impossibilidade de localizá-los numa categoria social determinada. A filosofia parece ser compatível com todas as posições de classe, com todas as condições profissionais e econômicas. Sócrates era um empreiteiro aposentado, Platão um aristocrata, Aristóteles um filho de funcionário público, Epicteto um escravo. Descartes era militar, Bacon juiz de direito, Espinosa técnico em fabricação de lentes, Leibniz diplomata, Vico mestre-escola, Marx jornalista e, last not least, Gramsci operário e depois agitador profissional. Filósofos profissionais universitários só predominam em curtos períodos, como na escolástica, no idealismo alemão e, em geral, na Europa moderna depois da reforma do ensino por Victor Cousin.

Os filósofos ex professo não são, em suma, uma categoria identificável sociologicamente.

A idéia de que os filósofos sejam uma categoria profissional à parte é apenas uma crença popular moderna e bem artificial. Gramsci acredita, porém, que, contestando-a, eliminará toda distinção essencial entre filosofia e crença popular.

Ora, essa distinção existia e era bem conhecida muito antes que a mencionada crença aparecesse e se tornasse “senso comum” no século XIX, após a reforma de Victor Cousin que fez da filosofia a profissão universitária que hoje conhecemos. Há um perfeito non sequitur, que Gramsci nem de longe percebe, entre a contestação da crença e a negação da distinção essencial. Ele crê ingenuamente poder deduzir uma coisa da outra (porque imagina que, discutindo com o senso comum do seu tempo, está discutindo com toda a tradição filosófica3).

Mas, se os filósofos não se distinguem dos não-filósofos sociologicamente, que é que os distingue então? É manifestamente uma diferença de atitude subjetiva: é, precisamente, o fato de que filosofam de maneira consciente e voluntária, pouco importando que o façam no quadro de uma atividade profissional ou nos lazeres de uma vida de “cidadãos comuns”.

Se no entender de Gramsci todos os homens filosofam inconscientemente, e alguns conscientemente, o fato de que ele designe os primeiros como “filósofos”, entre eloqüentes aspas, significa que ele próprio reconhece que só são filósofos secundum quid, isto é, sob certo aspecto, e não filósofos em toda a extensão do termo. Eles só filosofam de maneira passiva, imitativa e mecânica, “participando de uma concepção do mundo ‘imposta’ pelo ambiente exterior“. Ora, a filosofia é precisamente a atividade que reage criticamente a essa concepção e, por um esforço voluntário de giro da atenção, problematiza justamente aquilo que a concepção ‘imposta’ toma implicitamente, ou mesmo inconscientemente, por líquido e certo.

Chamar “filosofia” a essas duas atitudes é, propositadamente, confundir filosofia e cosmovisão. Cosmovisão é precisamente o sistema – por mais anárquico e incoerente – de crenças, hábitos e reações embutido, como frisa o próprio Gramsci, na linguagem, no “senso comum”4 e na “religião popular”. Uma cosmovisão, ainda que implícita e inconsciente, todo mundo tem. A filosofia começa quando o homem reflete criticamente sobre sua própria cosmovisão, coisa que seria impossível fazer de maneira inconsciente.

Que a passagem de crença passiva à de reflexão crítica seja coisa fácil, eis o que é desmentido, desde logo, pela escassez de filósofos na massa dos homens comuns, e, enfim, pela própria índole da atitude filosófica, que uma vez adotada isola um homem de seus semelhantes ao ponto de fazer dele um tipo estranho e muitas vezes socialmente inassimilável.

A atitude filosófica e a do “senso comum” diferem sob vários aspectos, mesmo quando têm diante do foco da consciência os mesmíssimos assuntos.

A tradição filosófica sempre enxergou a essência da filosofia precisamente na sua distinção da simples cosmovisão, distinção que corresponde, mutatis mutandis, à do individual e do coletivo5, à da contemplação e da ação6, à da atitude “natural” e da “reflexiva”7, etc. São tantas as diferenças que, ao longo dos tempos, os filósofos se exercitaram em destacar ora uma, ora outra, sem que entre essas várias abordagens exista contradição, senão complementaridade. O próprio Karl Marx, ao afirmar que “os filósofos, até agora, se limitaram a interpretar o mundo, mas o que interessa é transformá-lo”, estabeleceu uma linha demarcatória que coincide com a da tradição, apenas fazendo um apelo a que seus leitores ultrapassassem o círculo da filosofia para entrar no território mais vasto da ação histórica. Gramsci, ao contrário, enfatiza a continuidade e identidade de filosofia e cosmovisão, dissolvendo nesta a especificidade da atitude filosófica. Ele chega mesmo a afirmar, mais adiante, que, “entre os filósofos profissionais ou ‘técnicos’ e os outros homens não existe diferença ‘qualitativa’, mas apenas ‘quantitativa’“. E, embora admita que “neste caso, ‘quantidade’ tem um significado bastante particular, que não pode ser confundido com soma aritmética, porque indica maior ou menor ‘homogeneidade’, ‘coerência’, ‘logicidade’, etc., isto é, quantidade de elementos qualitativos8, de pouco vale esta ressalva, na medida em que os elementos qualitativos citados se reduzem às qualidades puramente formais – e até matematizáveis – do raciocínio filosófico: homogeneidade, coerência, logicidade, etc.

A filosofia reduz-se, enfim, à mera formalização lógica da cosmovisão recebida. E também de nada adianta a ressalva de que o filósofo não exerce essa atividade formalizadora somente sobre a sua própria cosmovisão e sim sobre “toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular9. Pois, na medida mesma em que estas estratificações estão consolidadas, elas constituem parte integrante da cosmovisão pessoal e são formalizadas, portanto, junto com ela. Que a “filosofia” assim compreendida nada tenha de difícil, que possa ser praticada por qualquer um e mesmo por um computador, é coisa que se pode facilmente admitir.

Mas essa concepção, se em si mesma é simplória e pueril, reduzindo o filósofo a um técnico em formalizar as opiniões recebidas, por outro lado não tem a mínima correspondência com os fatos conhecidos da história da filosofia, ao longo da qual nenhum, absolutamente nenhum filósofo – exceto o próprio Gramsci, que só é filósofo num sentido metafórico e elástico do termo – jamais se limitou a uma brincadeira mecânica e estúpida de formalizar a vox populi. Bem ao contrário, a maioria deles se notabilizou por rejeitar criticamente a massa de opiniões recebidas e por especular em novas direções, não raro chegando a conclusões que, por inauditas e heterodoxas, mal chegavam a ser compreendidas pelos seus contemporâneos, e que, se acaso vieram a tornar-se depois voz corrente e integrar-se no “senso comum”, só o fizeram num prazo bem longo e após enfrentar as mais prodigiosas resistências. O exemplo talvez mais característico é Aristóteles, cujo pensamento, notoriamente incompreendido até pelos seus discípulos mais próximos, sobreviveu apenas em forma fragmentária, até ser completamente obscurecido, só vindo a ressurgir, para então sim tornar-se voz corrente (e isto somente na classe letrada), uma vez decorridos treze ou catorze séculos da morte de seu criador. Longe de “formalizar o senso comum do seu tempo”, Aristóteles é expelido do discurso dominante da sua época e antecipa o senso comum de uma época futura, da qual não podia ter a menor idéia no instante em que criava a sua filosofia.

Não por coincidência, no sistema aristotélico a formalização e coerenciação das crenças correntes10, longe de constituir a essência da atividade filosófica, é apenas a condição prévia da verdadeira investigação: uma vez bem arranjado o conjunto das opiniões vigentes, o exame crítico delas deverá operar o salto qualitativo que, da discussão de doutrinas, passará à intuição da essência do objeto mesmo. Este momento fundamental da passagem das palavras às coisas é totalmente ignorado por Gramsci, e é precisamente ela que assinala, em Aristóteles, a diferença entre a filosofia, investigação rigorosa, e o mero confronto de opiniões.11

Outro exemplo de como a atividade do filósofo transcende infinitamente a coerenciação do senso comum nos é dado por Leibniz, que em plena época de mecanicismo hegemônico cria as bases de uma física indeterminista que passou totalmente despercebida aos seus contemporâneos e se tornou “senso comum” entre os cientistas dois séculos depois. Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente. Nada, absolutamente nada, nem um único fato ou exemplo na história da filosofia confirma a definição gramsciana de filosofia, a qual no entanto ele não apresenta como proposta pessoal e inédita mas como expressão da realidade histórica da ocupação dos filósofos – o que evidencia, de um lado, uma prodigiosa incultura filosófica e, de outro, como seqüela dessa deficiência, uma afoiteza provinciana ou adolescente de fazer de si próprio, projetivamente, o paradigma de toda interpretação global da história da filosofia.

Com isto, já percebemos, desde a entrada, o tipo de terreno de pensamento em que nos movemos: estamos em pleno terreno da projeção ampliada e paranóica de uma idiossincrasia pessoal sobre o conjunto de uma história antes imaginada que conhecida.

Qualquer leitor que, somente por essa constatação, já não perceba estar lidando com o pensamento canhestro e informe de um parvenu estranho a toda reflexão filosófica, dá sinal de estar, ele próprio, bem mal equipado para a filosofia. Que um pensamento desse nível chegue a ser levado a sério e mesmo glorificado por uma boa fatia do mundo universitário, eis um fenômeno que assinala um alarmante obscurecimento coletivo da inteligência humana, um fenômeno que, se vier a se generalizar para além da quota de estupidez média admissível entre as massas de estudantes e bacharéis, não será excessivo qualificar de apocalíptico.

 

  • 3. A disputa filosófica entre o homem-massa e o homem-massa

 

Mas Gramsci vai um pouco mais longe no seu empenho de fazer da sua própria estatura de anão a medida máxima de aferição das intenções filosóficas alheias. Ele proclama que:

Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise.”12

Nada mais óbvio: se todos os homens são filósofos e os filósofos ex professo só se distinguem deles pelo grau maior de coerência e logicidade com que crêem exatamente nas mesmas coisas que eles, então entre o filósofo com aspas e o filósofo sem aspas não há outra diferença senão aquela que existe entre o conformista incoerente e o conformista coerente, entre o homem-massa espontâneo e confuso e o homem-massa assumido e formalizado.

Novamente, a idéia em si é estúpida e sem o mínimo respaldo histórico que se poderia exigir de uma generalização tão ambiciosa.

Se o homem não tem opção senão escolher entre um conformismo desagregado e ocasional e um conformismo consciente e sistemático, toda nova filosofia que apareça não pode ser senão a sistematização de um conformismo já dado, latente, em sua pureza, no seio dos conformismos confusos que perfazem o “senso comum” do seu ambiente.

Cada novo sistema filosófico, assim, em vez de se opor ao conformismo estabelecido, não faz senão aderir a um conformismo prévio, que ele apenas apresenta em forma mais depurada e límpida.

Isto resulta em afirmar que Sócrates não declarou nada que fosse formalmente contrário às crenças coletivas daqueles que o condenaram à morte, mas apenas deu coerência e homogeneidade àquilo em que todos já acreditavam. Seria positivamente uma lástima que um tão fiel sacerdote da crença estabelecida fosse condenado à morte por mero engano, só porque os juizes não tiveram a esperteza de notar que concordavam com tudo quanto ele dizia. Mais lamentável ainda foi que, tão hábeis em reconhecer o sentido unânime de suas próprias crenças consensuais quando se expressavam na algaravia coletiva sob forma multívoca, “ocasional e desagregada”, não soubessem reconhecê-las quando, pela boca de Sócrates, se apresentaram em linguagem mais lógica, mais coerente e mais homogênea. Nem Gramsci, nem o consenso mundial dos gramscistas reunidos poderá jamais nos explicar como um tal abismo de incompreensão pode se abrir entre um homem-massa que crê numa coisa e outro homem-massa que, além de acreditar piamente na mesmíssima coisa, ainda a explica ao primeiro em linguagem clara, didática e coerente.

Porém o mais lindo nessa história toda é que o senso comum, ao mesmo tempo que oferece resistência às inovações introduzidas pelo filósofo individual, desempenha também a função de sujeito ativo e criador que antecede as descobertas do filósofo. Mas se o senso comum é ao mesmo tempo o baluarte do conformismo e a mola-mestra da renovação filosófica, acumulando os dois papéis principais na trama do processo histórico, para que raios seria necessário um filósofo para depurá-lo se esta depuração será sempre subseqüente às mudanças fundamentais? Se o senso comum era um resíduopassivo precisamente por ser inconsciente, e se por isto necessitava do filósofo para trazê-lo à luz da consciência, como pode agora tornar-se por si próprio o fator ativo, quando só na consciência do filósofo ele adquire a forma e o sentido unitários necessários à passagem da passividade à atividade? A indistinção canhestra de inconsciente-passivo e consciente-ativo é aí manifesta, e ela basta para dar a este ponto da doutrina gramsciana aquela característico estofo de confusão impenetrável que só aos olhos do principiante ingênuo pode passar por sinal de pensamento profundo.

Que toda a doutrina gramsciana é uma bobagem grosseira, indigna de atenção filosófica séria, eis algo que, se já não se tornou evidente a algum leitor mediante este breve exame de um parágrafo fundamental de Antonio Gramsci, arrisca não se tornar claro nunca mais, porque nenhum acúmulo de provas poderá jamais dar inteligência filosófica a uma mente inepta.

Em todo caso, vale a pena prosseguir acumulando provas até o limite do intolerável, porque o culto gramsciano não nasce de uma privação de inteligência, e sim de uma perversidade da vontade – e, ao contrário da inteligência rombuda, à qual a própria força probante dos argumentos mais perturba que esclarece, impelindo-a cada vez mais para longe da verdade e para dentro da sua própria confusão, a vontade doentia, esta sim, quando coexiste com uma inteligência sã, não tem forças para negá-la indefinidamente e mais dia menos dia acaba cedendo ao peso das evidências, ainda que a contragosto.

 

NOTAS

  1. Todas as citações de Gramsci nesta parte, exceto indicação expressa em contrário, são extraídas desta obra e edição.
  2. A Concepção Dialética da História, pp. 11-12. A continuação imediata deste parágrafo, também reproduzida na Folha, será dada e comentada mais adiante.
  3. Ele é levado a esse erro grosseiro justamente por um preceito da sua própria doutrina, segundo o qual o “senso comum” contém um depósito de todas as filosofias de eras passadas. Ora, a experiência moderna mostra que o “senso comum” – no sentido específico que Gramsci dá a este termo – é bem mais vulnerável à ação consciente de propagandistas e manipuladores do que à influência residual das tradições. A própria eficácia publicitária do gramscismo é uma prova disso. Além do mais, os elementos da tradição, mesmo quando não sejam totalmente esquecidos (o que necessariamente acontece quando se rompe a cadeia de transmissão) podem sobreviver no senso comum sob forma desfigurada e caricatural.
  4. Discutirei este conceito mais adiante.
  5. Por exemplo, Vladimir Soloviev: “A filosofia, em sua qualidade de conhecimento reflexivo, é sempre obra da razão pessoal. Ao contrário, nas outras esferas da atividade humana geral, a razão individual, a pessoa isolada desempenham um papel antes passivo: é a espécieque age; uma atividade impessoal aí se manifesta, similar à do formigueiro ou da colméia. É indubitável, com efeito, que os elementos essenciais da vida do homem (línguamitologia, formas primitivas da sociedade) são, na sua formação, totalmente independentes da vontade consciente das pessoas isoladas. No ponto em que está a ciência atual, está fora de dúvida que a língua ou o Estado não foram inventados por pessoas isoladas, tanto quando a organização da colméia, por exemplo, não foi inventada por abelhas isoladas. Quanto à religião, no sentido próprio (não a mitologia), ela também não pode ser inventada: nela também a pessoa isolada desempenha, como tal, um papel antes passivo, em primeiro lugar na medida em que uma revelação exterior, independente do homem, é reconhecida como fonte objetiva da religião, e em seguida na medida em que o fundamento subjetivo da religião é a crença das massas populares, determinada pela tradição comum e não pelas investigações da razão pessoal.” (Crise de la Philosophie Occidentale [1874], trad. Maxime Herman, Paris, Aubier, 1947.)
  6. Aristóteles.
  7. Husserl.
  8. P. 34.
  9. P. 12.
  10. E mesmo assim não de toda a vox populi, e sim somente das opiniões dos sábios, isto é, daqueles que dedicaram ao assunto uma atenção consciente e que por isto já não expressam simplesmente a voz corrente e sim uma depuração dela.
  11. Veremos adiante que em Gramsci o objeto, a realidade investigada, desaparece completamente do horizonte de visão, transformando a filosofia num mero conflito de opiniões que se reduzem, por fim, a interesses de classes – não lhe interessando nem sequer demonstrar que esta redução, considerada enquanto conteúdo da sua doutrina, é por sua vez verdadeira e corresponde aos fatos; ao contrário, ele a toma por pressuposto e, em última análise, como decisão da vontade.
  12. P. 12. Na sentença final a ed. citada traz “esse inventário”, que o texto da Folhamudou, inexplicavalmente, para “essa análise”.

Parte 2