Moral postiça

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 23 de dezembro de 1999

Os banqueiros e industriais que alegremente subsidiam a “revolução cultural” esquerdista não percebem estar ajudando a doutrinar o povo segundo os cânones de uma ética na qual o maior dos crimes é ser rico. Não excluo a hipótese de que colaborem nesse empreendimento movidos por um fundo de consciência culpada: cada um deles sente que sua riqueza não foi obtida por meios totalmente lícitos, e imagina que ajudando a falar mal da sua própria classe está, de algum modo, purgando seus pecados.

Acontece, porém, que ninguém pode livrar-se de suas culpas pessoais jogando-as sobre as costas da entidade coletiva a que pertence, na qual se misturam indistintamente os bons e os maus. Esse tipo de ablução fingida não se inspira numa sã moralidade, mas numa ética bárbara, doente e perversa.

Para piorar ainda mais as coisas, a destruição do capitalismo, a que essa conduta concorre da maneira mais ostensiva, não trará nunca a justa punição dos capitalistas desonestos, mas, como acontece em toda precipitação anárquica de uma onda revolucionária, distribuirá os efeitos da violência a esmo entre culpados e inocentes, despejando a mais pesada cota de sofrimentos precisamente sobre aqueles que não têm meios de defesa: os pobres. Entre os 100 milhões de vítimas do comunismo, chegava a 10 milhões o número de capitalistas, de ricos, de grandes proprietários? Talvez nem tanto. Não havia tantos ricos na Rússia, na China, em Cuba (se houvesse, o próprio número deles seria um fator de estabilidade conservadora capaz de deter a revolução). Noventa por cento ou mais das vítimas do comunismo não tinham onde cair mortas e por isto mesmo caíram no sepulcro dos pobres: a vala comum. O capitalista que financia comunistas não alivia em nada suas culpas pessoais, acumuladas ao longo de mil e uma concessões à força das circunstâncias: apenas acrescenta, à infinidade de seus “pecados úteis”, um crime inútil e sem sentido.

Mas não são só os capitalistas que se acumpliciam com esse crime. Um fenômeno desconcertante que, em circunstâncias intelectuais normais, deveria ter chamado a atenção dos sociólogos, mas que no momento lhes passa totalmente despercebido, é que no Brasil o apoio às esquerdas cresce justamente nas alas mais prósperas da alta classe média, e cresce, por incrível que pareça, na razão mesma dessa prosperidade. Em parte alguma isso é mais visível do que nos bairros bem arborizados de São Paulo onde se concentram os eleitores do dr. José Gregori.

Não há nenhum meio de explicar isso senão pela insegurança do homem que prospera no meio de uma multidão de concorrentes menos felizes e, por isto mesmo, forçosamente mais invejosos. A inveja tem o poder de acionar, no cérebro das vítimas, um conjunto de reações automáticas destinadas a exorcizá-la, que constituem todo um complexo ritual de camuflagem: o homem próspero de classe média resguarda-se do olhar perfurante do invejoso desviando-o para alvos genéricos – “o capitalismo”, “a sociedade de consumo”, etc. – e o neutraliza aliando-se com ele no ataque comum a um bode expiatório que, tendo ademais a reconfortante vantagem de estar distante demais para poder ser atingido, garante que toda a operação não passará dos efeitos verbais. O invejoso, se é por sua vez invejado por outro menos próspero ainda, pode passar adiante o mesmo jogo de impressões, e assim ad infinitum .

Ninguém parece se dar conta de quanto essa eterna vigilância contra a inveja mútua alimenta a própria inveja na medida em que a consagra como mola mestra das ações e reações humanas. Esse estado de coisas reduz a vida da nossa classe média alta a um permanente jogo de simulações que termina por corromper todos os sentimentos humanos e rebaixar as consciências ao nível da insensibilidade mais pétrea. Que um personagem tão manifestamente postiço como o cardeal Arns passe nesses meios como um emblema das virtudes já mostra o quanto, aí, o autêntico e o falso se tornaram absolutamente indiscerníveis.

Também não é de estranhar que, tanto nesses meios quanto nas camadas mais populares que deles copiam seus padrões de conduta, a virulência do discurso moralista cresça na razão direta da geral dessensibilização moral. Os símbolos convencionais de moralidade e bom-mocismo ganham prestígio na mesma proporção em que desaparece a capacidade espontânea para o julgamento moral direto.

Alain Peyrefitte: Prólogo e Introdução de A Sociedade de Confiança

Olavo de Carvalho

21 de dezembro de 1999

Após mil e um adiamentos, causados por motivos contrários à minha vontade, vai finalmente sair pela Topbooks, com patrocínio do Instituto Liberal do Rio de Janeiro, a obra-prima de Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança, estudo sobre as condições culturais do desenvolvimento econômico, cuja importância só se compara à de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber, do qual constitui, de certo modo, um prolongamento e uma resposta. 

Peyrefitte, que animadamente se dispunha a vir ao Brasil para o lançamento desta tradução feita por sua amiga Cylene Bittencourt, já não poderá estar presente: faleceu em 27 de novembro, aos 74 anos, vítima de um câncer. Dois dias antes ainda fôra pessoalmente entregar ao editor os últimos capítulos do livro em que vinha trabalhando, a parte final do vasto depoimento C´Était de Gaulle, obra indispensável à compreensão da história da França neste século, que Cylene já está traduzindo. Diretor do Figaro, membro da Académie Française, amigo, confidente e várias vezes ministro de Charles de Gaulle, celebrado pelo Institut de France e reconhecido como um dos maiores cientistas sociais do nosso tempo por críticos tão diferentes quanto Alain Touraine e Pierre Chaunu, Peyrefitte escondia por baixo de uma encantadora modéstia a tremenda força de sua autoridade intelectual e política. Não hesito em dizer que foi o último grande homem político do século XX. Não veremos outro como ele tão cedo.

Agradeço, nesta oportunidade, a todos os que me ajudaram na edição de A Sociedade de Confiança: ao embaixador José Osvaldo de Meira Penna, que me apresentou este livro e seu autor; à tradutora Cylene Bittencourt; a Carlos Nougué, incansável e meticuloso revisor; a José Mário Pereira, editor; e sobretudo ao Instituto Liberal do Rio de Janeiro e a seu presidente, Arthur Chagas Diniz, que tanto confiaram neste empreendimento. — O. de C.

A Sociedade de Confiança

Ensaio sobre as origens e a natureza do desenvolvimento

PRÓLOGO: Sobre a menção “A ser editado”

Há vinte anos todos os meus livros vêm anunciando esta obra aos leitores. Pelo menos aos leitores mais atentos, aqueles que notavam, no final “Do mesmo autor”, a menção “A ser editado”: A Sociedade de Confiança.

Isso significa que carreguei esse rebento durante muito tempo. Muito mais tempo mesmo do que parecia, já que o concebera bem antes — ao deixar a rua d’Ulm e a ENA, quando ainda esperava conjugar esses dois aprendizados e continuar pesquisas, enquanto me iniciava na diplomacia. Minha teses para tirar o diploma de estudos superiores fizera com que eu explorasse o “sentimento de confiança”. Em 1948, apresentei na Sorbonne um, ou melhor dois temas de tese (principal e complementar: Fenomenologia da confiança; Fé religiosa e confiança). Em Le Mal français, a conselho de meus professores René Le Senne e André Siegfried, expus a experiência de um ano mergulhado numa “sociedade de desconfiança”, tal como era a Córsega profunda. Desde então acumulei leituras sem cessar, e mais ainda observações, no decorrer de viagens através dos cinco continentes, de experiências vividas como político eleito — regional, nacional e europeu — ou como ministro e, acima de tudo, talvez, de incontáveis encontros com esses homens que os pensadores da economia negligenciaram e que me pareciam personagens-chave: os “empreendedores”.

A maioria dos meus livros não passaram de bastardos nascidos do encontro dessa idéia com diversas ocasiões. O primeiro foi Le Mythe de Pénélope (1949), réplica pretensiosa do Mythe de Sisyphe de Camus, cujo estoicismo no coração do absurdo parecia-me estéril. Faut-il partager l’Algérie? (1961 mostrava a impossibilidade de manter, no mesmo solo, na proporção de dez para um, sem um reagrupamento prévio, uma sociedade subdesenvolvida tomada pelo espírito de rebelião, e uma sociedade moderna crispada em seus privilégios. Quand la Chine s’eveillera (1973) descrevia uma população arcaica, arfante — uma “sociedade de desconfiança” dopada pelo entusiasmo revolucionário. Meus outros livros sobre a China prolongaram essa exploração. Assim, através da narrativa detalhada de uma embaixada britânica junto ao imperador da China, apresentei um “choque de culturas” entre uma nação em rápido desenvolvimento e O Império imóvel (1989).

Le Mal français (1976) tinha-se aproximado mais do objeto desejado. Esbocei os traços essenciais desse objeto: o papel decisivo do fator mental no desenvolvimento econômico, a diferença de êxito entre sociedades protestantes e sociedades católicas, ou melhor, entre “sociedades de confiança” e “sociedades de desconfiança”. Coloquei nesse livro muito da minha experiência pessoal para mostrar concretamente a extensão dos nosso bloqueios mentais, e uma pouco de história para mostrar que vêm de muito longe. Mas o essencial limitava-se ao caso francês.

O ano de 1981 mostrou que o acolhimento que se dá a uma obra é apenas uma minúscula ondulação nas águas profundas de uma cultura; a ilusão estatal seduziu os franceses e provocou as devastações previsíveis. A reflexão tronou-se um combate. Participei dele três vezes: Quand la rose se fanera (1982), Encore un effort, Monsieur le Président (1985), La France en désarroi (1992). Foram capítulos acrescentados ao Mal français.

Nesse meio tempo, o marxismo desmoronava na Europa e recuava tanto na América quanto na África; o comunismo chinês, por uma reviravolta ideológica, adotava a economia de mercado. Enquanto isso, uma longa crise econômica levou os ocidentais a se interrogarem sobre a irreversibilidade do progresso material. Paradoxalmente, a sociedade liberal, com a qual sonhavam tantos habitantes dos países socialistas, começava a duvidar dela mesma.

Era hora de voltar às fontes do desenvolvimento, de discutir as diversas concepções que dele foram feitas, de determinar o que é permanência e o que é circunstancial. Coloquei-me em campo aberto em 1948, na forma de uma tese que defendi na Sorbonne em fevereiro de 1994.

Durante esses quarenta e seis anos nunca parei de estudar esse assunto, ou pelo menos de refletir sobre ele, e de reunir material a respeito. Retomando-o quando a alternância democrática deu-me alguns momentos de folga, preferi esperar mais ainda para abortar sua defesa, até ter passado dos 65 anos, isto é, até estar impedido de assumir uma cadeira na Universidade. Esse ato gratuito simplesmente visava — dentro do respeito pelas regras da Universidade, aceitando estritamente o jogo — “defender uma tese” no sentido exato da expressão: submeter minhas pesquisas a especialistas internacionalmente reconhecidos nas disciplinas nas quais me havia aventurado, para que emitissem um julgamento sobre sua validade (ou sua invalidade), isto é, sobre um conjunto de idéias, de pesquisas, de métodos, de instrumentos de análises, que formam a convicção de uma vida.

Que convicção? A de que o elo social mais forte e mais fecundo é aquele que tem por base a confiança recíproca — entre um homem e uma mulher, entre os pais e seus filhos, entre o chefe os homens que ele conduz, entre cidadãos de uma mesma pátria, entre o doente e seu médico, entre os alunos e o professor, entre um prestamista e um prestatário, entre o indivíduo empreendedor e seus comanditários — enquanto que, inversamente, a desconfiança esteriliza.

Decerto é temerário propor uma chave para a interpretação de fenômenos tão universais e essenciais como o desenvolvimento e o subdesenvolvimento; e mais temerário ainda arriscar-se multiplicando as abordagens que as diversas disciplinas oferecem, forçando mesmo suas fronteiras.

Foi o conhecimento do Terceiro Mundo que me convenceu de que o Capital e o Trabalho — considerados pelos teóricos do liberalismo tradicional, assim como pelos teóricos do socialismo, como os fatores do desenvolvimento econômico — eram na realidade fatores secundários; e que o fator principal, que com um sinal de mais ou com um sinal de menos afetava esses dois fatores clássicos, era um terceiro fator, que há vinte anos chamei de “terceiro fator imaterial“, em outras palavras, o fator cultural.

Aquilo que eu havia explorado, adorando o estilo do ensaio, em meus diversos livros sobre a França ou a China e em inúmeros artigos, gostaria, como se costuma dizer, de aqui “teorizar”. Mas como provar a existência desse terceiro fator imaterial?

Um terreno pareceu-me fecundo nesse sentido, o da história econômica do Ocidente no decorrer destes quatro últimos séculos. É um terreno firme, sobre o qual hoje dispomos de grande número de informações incontestáveis. Foi de fato nesse período, e em nenhum outro, em algumas sociedades da Europa, e não em outras, que nasceu o desenvolvimento.

Qual foi o fator de desencadeamento, o primum movens, que fez passarem — na Holanda, depois na Inglaterra, depois na Europa do Norte, depois em toda a Europa ocidental — sociedade tradicionais, sempre ameaçadas pelas epidemias, pela fome e por choque sangrentos, ao estado de sociedades desenvolvidas?

Quanto mais se estuda as origens da Revolução econômica, mais se duvida de que trata-se de uma ruptura brusca, resultante de uma causa única e que pode ser datada com precisão. E os historiadores estão sempre recuando o aparecimento do fenômeno. Sem dúvida é nos três ou quatro últimos século que é preciso procurar a prova de toda “teorização” do desenvolvimento.

Examinando a cristandade ocidental no século XVI, somos levados a concluir que havia uma quase-igualdade de chances, com um evidente avanço no Sul. Nada poderia induzir a prever, na época, o impulso das nações que aderirão a uma das Reformas protestantes, nem o declínio relativo, ou até absoluto, das nações que permanecerão “romanas”.

Ora, a partir do final do século XVI, a cristandade ocidental torna-se o teatro de uma distorção econômica. A Europa nórdica substituir a Europa latina como foco de inovação e de modernidade.

Contudo, é redutivo demais, para não dizer simplista demais, afirmar que a Reforma protestante seria como uma galinha dos ovos de ouro, e que deteria em si mesma o segredo do desenvolvimento econômico, social, político e cultural. A divisão entre uma Europa “romana”, que entra em declínio econômico, e uma Europa das Reformas protestantes que toma impulso, reflete menos uma determinação do econômico pelo religioso — ou do religioso pelo econômico — do que a expressão de uma “afinidade eletiva” entre um comportamento socio-econômico espontâneo e uma escolha religiosa. Pelo menos é essa a minha conclusão.

A sociedade de desconfiança é uma sociedade temerosa, ganha-perde: uma sociedade na qual a vida em comum é um jogo cujo resultado é nulo, ou até negativo (“se tu ganhas eu perco”); sociedade propícia à luta de classes, ao mal-viver nacional e internacional, à inveja social, ao fechamento, à agressividade da vigilância mútua. A sociedade de confiança é uma sociedade em expansão, ganha-ganha (“se tu ganhas, eu ganho”); sociedade de solidariedade, de projeto comum, de abertura, de intercâmbio, de comunicação. Naturalmente, nenhuma sociedade é 100% de confiança ou de desconfiança. Do mesmo modo que uma mulher nunca é 100% feminina, nem um homem 100% masculino: este comporta sempre uma parte de feminilidade, aquela sempre um pouco de virilidade. O que dá o tom, é o elemento dominante.

Quando se terminará de explorar esse enigmático e gigantes fenômeno de civilização? Um estudo das proezas econômicas que balizaram a história serviu de tema para um curso que dei como professor convidado (Du “miracle” en éconimie, Leçons au Collége de France, 1995).

Trata-se de ilustrações (centradas nos “milagres” holandês, inglês, americano e japonês) das pesquisas apresentadas na tese — aqui reescrita visando o público culto.

Terá este longo percurso de reflexão encontrado aqui seu ponto final? Desejaria que me fosse dado tempo para levar mais longe minhas investigações nesta disciplina ainda balbuciante que é a etologia humana comparada, ciência dos comportamentos, costumes, mentalidades dos diferentes grupos humanos.

Em todo caso, que essa “sociedade de confiança” possa um dia estender-se a todas as sociedades e lhes trazer, na diversidade das suas personificações, na unidade da sua inspiração, os benefícios morais e materiais por ela prodigados aos raríssimos povos que souberam realizar essa revolução cultural, a maior da história! Quando a estes, possam eles não se mostrarem nem filhos ingratos nem filhos pródigos, e compreender melhor o porquê do seu sucesso, não para reservar para si o privilégio, mas para dele guardar viva a força exemplar…

INTRODUÇÃO

Um único e mesmo enigma

Os países “subdesenvolvidos” representam uma esmagadora maioria geográfica e demográfica. De nada adianta chamá-los pudicamente de “países do Sul”, “países em vias de desenvolvimento”, “países de crescimento lento”, é inútil. Não se muda uma sociedade por meio de palavras. Às vezes se diz que esses países são destinados a ter uma grande futuro; mas correm o risco de conservá-lo durante muito tempo à sua frente, segundo as palavras cruéis de Paul Valéry, enquanto a encantação verbal fizer o papel de medicina, e as piedosas mentiras ideológicas o de esconder a miséria.

O “subdesenvolvimento” é freqüente ainda hoje; e raro o “desenvolvimento”. Considerados separadamente, esses dois fenômenos são enigmas. Ou melhor, um único e mesmo enigma: obviamente procedem de uma origem comum, como as saídas postas de um mesmo labirinto.

De bom grado esquecemos que o subdesenvolvimento — desnutrição, doença, violência endêmicas — constitui, desde que a humanidade surgiu na terra, seu lote comum, seu regime usual. O desenvolvimento é sempre a exceção. E ainda essa exceção é precária, veja-se os bolsões de miséria e exclusão que ressurgem no próprio seio das sociedades ditas “adiantadas”.

Reconheçamos que o subdesenvolvimento e o desenvolvimento não formam o passado e o futuro de uma sociedade, como os dois estágios sucessivos de uma maturação irreversível; mas um bifurcação, diante da qual os grupos humanos hesitam, sem que apareçam claramente os aceleradores do seu impulso ou os motivos da sua resignação.

Podemos descrever diferentes roteiros, definir mecanismos, fixar critérios do desenvolvimento, momentos iniciais de crescimento: não compreenderemos o que acontece enquanto não entendermos por que uma sociedade avança, por que outra permanece imóvel, ou se imobiliza. Não são os mesmos homens, e freqüentemente as mesmas condições geofísicas, que sofrem — ou provocam — destinos opostos? A história do homem é semeada de acidentes, acasos, encontros. Mas é a ele que cabe enfrentar ou não a fatalidade. Ascensão e declínio só são irresistíveis se ele não resistir a uma ou ao outro.

Quando aparece o “desenvolvimento”

No alvorecer dos tempos modernos aparece o “desenvolvimento”, cercado de ameaças, emergindo penosamente num mundo amaldiçoado desde tempos imemoriais pela fome, pelas endemias, por confrontos sangrentos. Algumas sociedades “decolam“, enquanto que a maioria continua a se arrastar rente à terra, quando não retrocedem.

Entre a descoberta da América em 1492 e a divisão da África por volta de 1892, a condição humana nos países mais favorecidos mudou mais em quatro séculos do que nos três ou quatro milhões de anos precedentes. Nenhuma evolução tão radical tinha ocorrido em tão pouco tempo. A “revolução neolítica” havia transformado nômades habituados à predação da flora e da fauna naturais em lavradores sedentários. Mas ela estendeu-se por vários milênios; no século XVI, quando apareceram os primeiros pródromos da revolução do desenvolvimento, as populações da metade das terras emersas não tinham ainda realizado a sua revolução neolítica. Nos séculos seguintes, essas duas revoluções colidiram violentamente.

Os últimos cem anos forçaram ainda mais a velocidade. Um homem que hoje festeja seu centenário viu precipitar-se — fosse através de crises e guerras — um fenômeno designado por nomes variados: “o progresso”, “a decolagem”, “o crescimento”, “a expansão”, “a aceleração da história”, “a modernidade”, “a era pós-industrial”, “a globalização”.

Esses fenômenos de modernização rápida nasceram na Europa ocidental, acentuaram-se em sua parte setentrional, estendendo-se depois pela América do Norte; mas só se difundiram bem mais tarde, e muito lentamente, na Europa do Sul, na América Latina e nos outros continentes; enquanto que o Japão, no final no século XIX, depois os “pequenos” dragões — Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong, Macau, Singapura — no final do século XX juntavam-se a passos largos aos Estados que haviam monopolizado a “modernidade”. Hoje, começam a surgir o “grande dragão” chinês, a Indonésia, a Malásia, a Tailândia. Os países do desenvolvimento permaneceram durante muito tempo num estrito isolamento; e ainda estão circunscritos.

Como um sismógrafo, nossa visão do mundo registra — não sem atraso — essas perturbações econômicas. Cada tremor acarreta transformações da nossa psicologia — de nossas mentalidades, de nossos comportamentos individuais, de nossos costumes, de nossas crenças, de nossos preconceitos, da nossa cultura.

Mas não seria o caso de admitir a idéias de que essas mudanças econômicas devem elas mesmas alguma coisa, talvez até o essencial, a esses fatores psíquicos antes de transformá-los por sua vez?

Explicações que se invertem

A Inglaterra industrializou-se antes da França, e mais do que ela. Por que? O carvão é o responsável pela diferença, respondem os manuais. Mas então, o impulso manufatureiro e comercial holandês, um século antes da Inglaterra, a que fator devemos imputá-lo? Os pôlders não substituem as minas de carvão? Resposta: mas justamente foi a pobreza de recursos naturais que forçou os holandeses a comerciar e produzir.

A explicação pelo argumento dos recursos naturais inverte-se como uma luva. Quando são abundantes, o impulso vem sozinho. Quando faltam, sua própria carência é invocada como fator de desenvolvimento: na teoria da desvantagem inicial, a insuficiência de recursos voa em socorro das insuficiências da explicação pelos recursos. Essas teorias ainda vigoram nos mais recentes estudos de histórica econômica. Nós tentamos refutá-las em Du “miracle” en économie.

O materialismo histórico consagra essa visão do mundo, caracterizada pela primazia das condições geofísicas e das infra-estruturas. O homem não é levado em conta; nem sua engenhosidade, nem sua iniciativa — fugazes “superestruturas”, semelhantes a “fogos fátuos numa lagoa”.

Já o realismo histórico não pode ignorar o homem. As políticas econômicas, quer sejam liberais ou dirigistas, “científicas” ou coercivas, sempre encontraram o homem no seu caminho: ora como motor, ora como obstáculo. É preciso compor com ele. O sésamo do desenvolvimento não é ele próprio?

Como é possível, indagam-se com freqüência os dirigentes africanos, conduzir ao desenvolvimento econômico operários indígenas que param de trabalhar logo que seu salário permite que comprem o guarda-chuva ou a bicicleta cobiçados? Como a Índia poderá prosperar enquanto seus habitantes deixaram-se morrer de fome ao lado de uma vaca sagrada? E como a democracia representativa à maneira ocidental funcionária sem choques em sociedades estratificadas em castas e em clãs? Os hábitos seculares têm aqui um peso evidente. Um antigo reflexo etnocentrista não hesitava em colocar o subdesenvolvimento por conta da raça ou da etnia.

Uma preciosa experiência de laboratório

Todos os países desenvolvidos são — ou eram, até a modernização do Japão no final do século XIX — de raça branca e de cultura greco-judáico-cristã. Nenhum povo homogêneo dessa categoria figura na lista dos países subdesenvolvidos. Devido a um velho reflexo eurocentrista, poder-se-ia ficar tentado a falar de “inaptidão natural para o progresso”, de “alergia congênita à sociedade industrial”, de “etnias retardadas”, ou ainda, como se fazia correntemente no século XIX, de “raças inferiores”. O desenvolvimento e o subdesenvolvimento estariam inscritos em nosso genes. A biologia deteria a chave do problema.

A distorção que é o objeto da presente obra coloca-nos ao abrigo dessa tentação. Ela opõe na Europa ocidental, a partir do Renascimento e da Reforma, países latinos e nações protestantes. Tanto uns quanto as outras pertenciam até o século XVI à mesma cristandade do Ocidente: mesma raça, mesma cultura, mesmo enquadramento pela igreja, mesma malha feudal temperada pela mesma eclosão de franquias municipais. A circulação das pessoas, dos bens e das idéias fluía com facilidade. Não se percebia entre uma monarquia e outra nenhuma heterogeneidade, a não ser avanço persistente do Sul com relação ao Norte.

Em algumas décadas essa paisagem é alterada. A Holanda depois a Inglaterra, tomam um rápido impulso; são seguidas pelos outros países protestantes, enquanto que Portugal, a Espanha, os principados ou repúblicas da Itália entram em decadência, e a França, cujo caso é intermediário, se arrasta. Unidade de ação, de lugar, de tempo: o que ocorre durante um curto período, nesse campo restrito, oferece uma preciosa experiência de laboratório, apropriada para isolar os elementos constitutivos do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, livres de todo preconceito racial ou étnico — etologia sem etnologia.

Dizemos “o desenvolvimento” como dizemos “a evolução”. Mas assim como não se viu os animais paleontológicos tornarem-se os animais que conhecemos, ninguém pode observar o mecanismo do desenvolvimento. Seleção cega? Triagem mecânica? Avanço consciente? Busca de uma meta inconsciente? A espessura da história encobriu o processo.

Assim como a evolução, o desenvolvimento é um conceito que procura explicar uma diferença num espaço de tempo. Divergência, atraso, distorção, esses termos surgirão com freqüência nas páginas que se seguem. Eles permitem que se descreva a história do desenvolvimento econômico, político e social da cristandade ocidental como um desenvolvimento “a duas velocidades”. Tentaremos descrevê-lo com exatidão, em bases agora bem estabelecidas, e em seguida explicá-lo.

O imaterial comanda

Colocar essas questões em pauta é tentar realizar uma verdadeira revolução copernicana no estudo do desenvolvimento. Os dados da história econômica — recursos em matérias primas, capitais, mão-de-obra, relações de produção, investimentos, trocas, distribuição, índices de crescimento — foram postos até agora no centro das explicações do desenvolvimento. Os traços mais imateriais de uma civilização — religião, preconceitos, superstições, reflexos históricos, atitudes perante a autoridade, tabus, motores da atividade, comportamentos no tocante à mudança, moral do indivíduo e do grupo, valores, educação — eram relegados ao nível de satélites insignificantes, gravitando penosamente em torno da estrutura central. Ernest Labrousse, após tantos outros, afirmava que “o mental atrasa o social”, e “o social, o econômico”. Propomos inverter os papéis. De subfator secundário, de longínqua e negligenciável conseqüência, as mensalidades tornar-se-íam o centro em torno do qual tudo gravita: motor essencial do desenvolvimento, ou obstáculo intransponível.

Propomos em suam lançar as bases de uma etologia comparada do desenvolvimento econômico, social, cultural, político. Etologia, isto é, estudos dos comportamentos e mentalidades respectivas das diversas comunidades humanas, na medida em que fornecem fatores de ativação ou de inibição, em matéria de intercâmbio, de mobilidade intelectual e geográfica, de inovação. Etologia — pois não podemos nos contentar aqui nem com os esquemas descritivos, mais redutores, da etnologia, nem com as recomendações convencionais, mas sem efeito, da ética.

A mola da confiança

Em quarenta anos de observações, a atitude de confiança na pessoa ou de desconfiança — apareceu-nos, sob formas bem diferentes, como a quinta-essência das condutas culturais, religiosas, sociais e políticas que exercem uma influência decisiva sobre o desenvolvimento.

Nossa hipótese é de que a mola do desenvolvimento reside em definitivo na confiança depositada na iniciativa pessoal, na liberdade exploradora e criativa — em uma liberdade que conhece suas contrapartidas, seus deveres, seus limites, em suma sua responsabilidade, isto é, sua capacidade de responder por si mesma. Mas como uma liberdade dessa ordem ainda é muito pouco praticada no mundo, é lícito temer-se que a escassez, a doença e a violência ainda rondem por nosso planeta durante muito tempo.

Poderão até voltar com intensidade em zonas de onde se retiraram há algumas dezenas de lustros. O progresso perpétuo não existe; os agentes dinâmicos da nossa sociedade podem sufocar-se ou esgotar-se seja pelo peso de um Estado invasor, de um igualitarismo excessivo, de uma reivindicação do “sempre mais” como um direito adquirido; pelo esquecimento dos deveres que são o indispensável reverso dos direitos; ou pela concorrência insustentável de povos atrasados que, para escapar da miséria, usam sua recentíssima capacidade de produzir muito mais barato, em muito maior quantidade e igualmente bem.

A questão do começo

Eis aí nossa hipótese. E eis aqui o modo pelo qual tentaremos fundamentá-la.

É necessário colocar no começo a questão do começo. Os historiadores da economia muito se interrogaram e discutiram a respeito da data que poderia ser atribuída à “revolução” do desenvolvimento, ou mesmo sobre a possibilidade de lhe atribuir uma data mais ou menos precisa. Ouvindo seus argumentos e suas propostas teremos a medida da complexidade do assunto. Será nossa Primeira Parte.

Por que o desenvolvimento não começou mais cedo, uma vez que a Europa do final da Idade Média já domina as técnicas do comércio e das finanças, que o comerciante prospera em toda parte, que o livro impresso libera de mil pressões a difusão do conhecimento ou das idéias, que a própria Igreja se moderniza, tanto na sua tolerância com relação ao dinheiro, quanto, sob o signo de Erasmo, na aceitação do humanismo?

Por que o movimento não se iniciou nessas grandes cidades mercantis italianas onde se concentravam tantas riquezas, de conhecimento, de curiosidade intelectual, de apetite de dominar? O que faltou a esses homens que dispunham de tantas chaves que abririam, cada uma delas, a porta de um compartimento do desenvolvimento, para encontrar a chave-mestra que abriria todas ao mesmo tempo? É fascinante examinar essa Europa dinâmica, impaciente, mas que gira em círculos no liminar do seu futuro.

O futuro nascerá no final do século XVI na Holanda, onde ninguém o esperava, nem mesmo os holandeses. E de imediato essa “decolagem” aparece como uma distorção. Um fosso se cava; o desenvolvimento nasce sob esse signo. Empreguemos uma palavra que usaremos freqüentemente: “divergência“, nas suas duas acepções. Uma sociedade diverge como faz uma pulha atômica quando é acionado em seu interior um ciclo de reações em cadeia — é o processo interno. No mesmo tempo seu destino também diverge pelo contraste com as outras sociedades; a prosperidade nela adquire muito rapidamente um ritmo e sinais desconhecidos para seus vizinhos.

A divergência religiosa

Ora, essa distorção parece coincidir com a fratura religiosa. A Holanda que se afirma, refúgio dos calvinistas, é inimiga de Felipe II. A divergência do desenvolvimento não pode separar-se da divergência de credo, que rompe a unidade milenar da cristandade do Ocidente. Ocorre que o desenvolvimento surge no campo protestante: primeiro a Holanda, breve a Inglaterra.

Essa coincidência estabelece um difícil problema de causalidade histórica. Portanto, é preciso explorar previamente essa divergência religiosa, pelo menos nos aspectos que podem ter uma relação com a questão do desenvolvimento: as atitudes perante o dinheiro, as “ações”, a atividade profissional. É preciso acompanhar as evoluções, entre tolerância e tabu, da Igreja católica, a de antes da Reforma e a da Contra-Reforma. É preciso afrontar o paradoxo do protestantismo, movimento religioso que de certa forma entrega o homem sem defesa à escolha e ao julgamento de Deus, mas que no entanto concede um novo lugar e dá um novo sentido à atividade “mundana”. De que modo o dogma da “salvação unicamente através da fé” pode ocupar o centro religioso de sociedades vigorosamente orientadas para o êxito material, para a criação coletiva de riquezas? E de que modo uma religião da “salvação através das ações” suscitou, justamente, muito menos riquezas? Todas essas questões são objeto da Segunda Parte.

A divergência do desenvolvimento

Uma vez preparado o terreno, pode-se descrever e analisar as primeiras etapas da “divergência do desenvolvimento” (IIIa PARTE). Inúmeros campos — a aventura colonial, a inovação, o “mercantilismo”, as evoluções políticas — permitem a comparação, entre países protestantes e países católicos, dos desempenhos contrastantes. Eles destacam o papel de um pequeno número de atitudes mentais — responsabilidade, disponibilidade, tolerância, confiança na descoberta científica, na invenção técnica e na difusão cultural; e também o papel de fenômenos sociais como as migrações, grandes fornecedoras de homens liberados e empreendedores. A mobilidade geográfica não basta para explicar o desenvolvimento, mas nunca houve desenvolvimento sem mobilidade dos homens. É preciso sair da sua aldeia, não se limitar a ver a hora no relógio da igreja, ir “tentar a sorte”.

No essencial, paramos esta descrição histórica no século XVII porque justamente não queremos fazer história, mas sim dela tirar lições. Ora, essas lições são mais claras no momento em que os mecanismos mentais e comportamentais do desenvolvimento se instalam. Então, o desenvolvimento estaria longe de ter produzido seus efeitos mais espetaculares, positivos ou negativos: a prodigiosa aceleração da criatividade técnica e da produção de bens de consumo, mas também a proletarização brutal da mão-de-obra industrial. Contudo, o movimento está lançado; ele se alimenta de si mesmo.

Procurando as características do motor inicial, encontramos algo mais: uma coisa surpreendente, que foi muito pouco analisada e mesmo muito pouco sentida. É que os países que não entram no movimento não são neutros. Servem-se de freios. Assim como há uma Contra-Reforma, existe um Contra-Desenvolvimento. A primeira e o segundo funcionam com força máxima em Portugal, na Espanha e na Itália. A França, em ambos os planos, ocupa um lugar à parte. É católica, mas galicana: não aceita o Concílio de Trento. É hierárquica, mas gaulesa, colbertista, mas rebelde. Enquanto que à sua volta aperfeiçoam-se os melhores motores ou os melhores freios, ela se serve de ambos ao mesmo tempo, apoiando alternativamente sobre os dois pedais, e mesmo simultaneamente, arriscando-se a capotar…

Em suma, não existem, simplesmente, desenvolvimento e não-desenvolvimento. Há mecanismos mentais, liberadores ou inibidores do desenvolvimento, desigualmente presentes em cada sociedade dessa época.

Olhar contemporâneo

Já que se trata de mecanismos mentais, estes deveriam deixar traços por escrito. De fato, eles não faltam. São também muito mal conhecidos; o leitor fará conosco descobertas curiosas nesse “olhar contemporâneo sobre a divergência” (Quarta Parte). O fenômeno da divergência era tão novo, tão perturbador, que provocou inúmeras reações, descrições, reflexões.

Devemos acreditar piamente nesses testemunhos? Claro que não, e teremos ocasião de observar diferenças sensíveis, até na maneira como são emitidos. As testemunhas são reveladoras sobre elas mesmas. O olhar de um comerciante inglês sobre a Holanda ensina-nos mais a respeito das causas profundas do êxito holandês e, mais tarde, do êxito britânico — pois ele se interroga sobre os desempenhos econômicos — do que o de um intelectual francês, seja ele Voltaire ou Diderot. Porquanto estes revelam suas próprias obsessões na sua maneira de admirar mais aquilo que se relaciona com a política ou a religião — liberdade, tolerância — do que o que diz respeito à economia e à sociedade. Seria decoroso admirar um povo de ricos burgueses? Até os franceses que celebram a Holanda evidenciam suas inibições antieconômicas.

Ao nos familiarizamos com o olhar contemporâneo, ficamos surpresos diante da lucidez com a qual os personagens do desenvolvimento, sobretudo os comerciantes, descrevem os valores que fazem essa verdadeira revolução, através da qual o “ato de comerciar” é colocado no coração dinâmico da sociedade. Em compensação, com que vigor é expresso o tabu do “rebaixamento” que bloqueia, na França e em seus vizinhos meridionais, os enormes recursos da elite aristocrática! Mas quer se trate de uma atitude favorável ou desfavorável, é espírito humano que está em jogo, e não os mecanismos econômicos. Todos esses contemporâneos têm uma visão humanista do tipo de sociedade que eles querem. Seus valores incarnam-se ou no comerciante, ou no nobre; no homem criador de atividades e riquezas, ou no homem livre de coações e cultivando sua humanidade superior como um privilégio de casta.

Do lado do desenvolvimento, o valor central é a liberdade. Na prática, ele se afirma primeiro no domínio religioso, aquele onde justamente a idéia da Verdade poderia impor sua ditadura. É extraordinário que a Holanda, primeiro Estado nascido a partir de um fundamento religioso — a revolta dos calvinistas dos Países Baixos — tenha quase concomitantemente inventado a tolerância. Os textos mais interessantes para nossa para nossa exploração são os que ligam essa idéia de tolerância a um conjunto de valores políticos, sociais e econômicos, que são os de uma sociedade de desenvolvimento. Pois o desenvolvimento é alérgico ao dogmatismo.

Impasse das teorias do desenvolvimento

Os personagens do desenvolvimento vivem da liberdade, sem procurar defini-la. Os filósofos, por seu lado, têm dificuldade para elaborar uma teoria a respeito. Não surpreende no caso de Spinoza, seu espírito sendo tão totalizante. Surpreende mais em Locke, que se considera um filósofo da liberdade, mas que constrói logo um sistema, sem pesquisar as raízes antropológicas. Algumas páginas de Bacon sobre a inovação ou a usura Vão mais fundo, mas sem parecer tocar no ponto.

Ora, essa dificuldade de teorizar aquilo que faz o desenvolvimento persistirá. Até aqui, ficamos no quadro dos seus dois primeiros séculos — aproximadamente de 1580 a 1780 — tal como foi vivido e tal como foi pensado. A Quinta Parte nos leva a abordar uma época na qual o fenômeno adquiriu toda a sua amplitude, na qual a revolução técnico-industrial o impõe a todos os olhares e a todas as reflexões.

Deixando de lado a história dos fatos econômicos e passando à história das idéias, vamos nos aproximar de alguns daqueles que se consideram os teóricos do desenvolvimento. Com eles, chegaremos a alguns impasses.

O impasse de Adam Smith, tão preocupado em recusar a clássica abordagem do bem comum, mas incapaz de dela desligar-se, que estabelece como um axioma que o livre jogo de todas as liberdades individuais aí desemboca necessariamente. Esse postulado, porém, é indemosntrável. E não se obtém o esperado, ficando a impressão de um imenso maquinismo onde se perde o sentido real da liberdade.

O impasse de Karl Marx, cuja fantástica coerência — rejeitando ao mesmo tempo a troca, o mercado, a liberdade, a sociabilidade, a confiança — tem o mérito de sugerir a contrario a força do elo que une esses valores.

O impasse do próprio Max Weber: sua pesquisa pioneira sobre correlações entre protestantismo e capitalismo deixou-se apanhar na armadilha de um sistema de causalidades unívocas, cujas dificuldades ele só percebeu para cair nos paradoxos que provocam incerteza, antes de cair num determinismo biológico.

O impasse de Fernand Braudel, brilhante e avisado pintor do desenvolvimento, mas que, sentindo os limites das suas ferramentas de leitura marxistas, ficou reduzido a demonstrar a divergência, o “aqui e não em outro lugar”, apenas através de uma história de batalhas econômicas — uma nova espécie de narração histórica dos acontecimentos.

Roma, da reação à evolução

Um outro pensador se impõe, o Papa — pensador coletivo, preocupado com sua própria continuidade, que garante a credibilidade do Magistério; mas também pensador evolutivo, marcado pela personalidade dos grandes pontífices. Consagramos a ele a Sexta Parte. Ninguém nem sonha em enclausurar a Santa Sé num anti-economismo primário; mas não haveria um certo conluio entre a ascendência espiritual que ela exerceu e a manutenção de uma mentalidade autoritária, hierarquizante, anti-individualista e hostil à inovação nas questões temporais? Pode-se considerar Roma culpada de resistência ao desenvolvimento e da regressão das nações “latinas”? Resta o fato de que as afinidades comportamentais e institucionais entre catolicidade e atraso econômico são inegáveis: dogmatismo, telecomando, resistência à inovação, desconfiança ante a difusão de uma cultura individual, obscurantismo, recusa da modernidade…

A Igreja dos séculos XIX e XX confrontou-se com o dinamismo, e principalmente com a universalização, fenômenos contra os quais preferira proteger-se no século XVI, e que acreditara poder acantonar nas sociedades reformadas. O perigo ainda se agravara devido ao fato de que as idéias “perigosas” eram menos religiosas do que seculares. Os filósofos das “Luzes”, o “josefismo” na Áustria, Pombal em Portugal, o grão-duque da Toscana, os Constituintes franceses: era nos países católicos que o Estado se posicionava como adversário da Igreja, arrancava-lhe a escola ou a caridade, fechava seus conventos, pretendia ditar-lhe sua organização. Com a exceção dos direitos naturais, aliás dissociados de qualquer referência divina, o pensamento político a caminho da democracia colocava a “vontade geral” como sendo a origem absoluta de todo direito, ou até de toda moral. Em suma, a Igreja tinha algumas razões para desconfiar: o século XIX será para ela um século de combate, cuja reduza está impressa nas encíclicas de Pio IX sobre, ou melhor, contra a liberdade.

No final do século XIX, porém, Roma, pela primeira vez, toma conhecimento de uma industrialização que, ao longo do tempo, chegou até a Itália e a Espanha, e que já concerne milhões de católicos. Em 1893, Leão XIII promulga Rerum Novarum, uma encíclica que abre uma série de notáveis textos pontificais — longa meditação a muitas vozes que após mais um século resultará, com Centesimus Annus de João Paulo II, na aceitação de uma economia fundada na liberdade dos princípios econômicos. Mas quanto tempo terá sido preciso, antes que a Igreja católica abandonasse o modelo de uma sociedade fundamentalmente agrária e patriarcal, para finalmente colocar a liberdade no centro da sua antropologia… Por tempo demais o ensino da Igreja ignorou a economia moderna, e manteve com seus adversários da laicidade militante um combate que desviou as sociedades católicas dos verdadeiros desafios da liberdade — aquela que suscita as riquezas.

Representava também seu papel de instituição-testemunha de um reino “que não é deste mundo”, contra as pompas de Satã e a idolatria de Mammon. À sua mãe inquieta, Jesus em meio aos doutores responde: “Devo ocupar-me dos assuntos do meu Pai”.

Milagres e santos, a Igreja é sempre lenta para reconhecê-los quando os reconhece. A fortiori, para ela que vive na escala dos milênios, uma adesão sem exame a um desenvolvimento anárquico, sem outra finalidade a não ser ele mesmo, não era concebível. As ameaças que pesam sobre o mundo desenvolvido, depois de dois,, três ou quatro séculos de progresso, são suficientes para nuançar a crítica de cegueira que espíritos sistematicamente anti-clericais ficariam tentados a lhe fazer. Ela precisava de tempo para separar o bom grão da liberdade que cria, do joio da liberdade que corrói.

Para uma abordagem etológica

Após esses numerosos impasses, é hora de voltar atrás para procurar, com a ajuda de alguns espíritos lúcidos, uma pista que nos leve mais longe. É o objeto da Sétima é última Parte.

As primeiras referências encontram-se em algumas observações de Montesquieu ou, mesmo que isso possa surpreender, de Hegel, observador da distorção entre a América do Norte e a do Sul. Mas o primeiro que realmente explorou os mecanismos mentais da mentalidade econômica moderna foi Bastiat. Ele merece ser lavado dos sarcasmos com que Marx o ataca, o que na verdade revela a pertinência das suas análises. Depois dele, com Schumpeter e Hayek, a reflexão finalmente se interessa pelo indivíduo. Por trás da abstração “capitalismo”, existem capitalistas. Por trás das empresas, ou melhor à sua frente, há os empresários. Por trás do mercado, há vendedores e compradores, negociantes e consumidores, divulgadores e transportadores.

Nenhuma história ocorre sem indivíduos. A história econômica menos do que qualquer outra, já que a característica particular da economia é mobilizar as energias através da competição e colocá-las em sinergia através do intercâmbio. A história imóvel do Egito ou da China pode se desenrolar com homens moldados para serem intercambiáveis. Os escribas, ou os mandarins, têm como missão conservar cuidadosamente a ordem estabelecida; como evitariam as sapatas do freio da novidade? A história do desenvolvimento assenta-se numa infinidade de histórias individuais, feitas de iniciativas, de riscos assumidos, de mobilidade intelectual, geográfica e social, dentro de um clima propício à mudança.

Podemos dispensar uma demonstração matemática, um modelo, um sistema? Inúmeros economistas tentaram reduzir o desenvolvimento a uma equação. Logo esbarraram numa incógnita radicalmente incognoscível. A expansão não podia ser medida por uma simples combinação do Capital e do Trabalho. Foi preciso admitir a intervenção de um fator residual, e resignar-se a nele englobar variáveis complexas, que só podiam ser resumidas numa única palavra: cultura.

Confiante nessa caução, pode-se definir aquilo que poderia ser uma antropologia do desenvolvimento. Dissemos acima que nas décadas das origens, podia-se observar um combate entre atitudes, comportamentos, valores, uns estimulantes, outros paralisantes. Os trabalhos de um Lorenz e de um Ruffié propõem uma abordagem fecunda: fornecem chaves de interpretação, capazes de nos dar acesso ao enigma do desenvolvimento.

Se o desenvolvimento, no seu nascimento, em suas formas mais ativas, aciona todo o potencial humano, e se, por essa razão, procura-se dar-lhe uma explicação antropológica, esta deve forçosamente inscrever-se na coerência de uma visão da humanidade. Não é um novo que nasce na Holanda por volta de 1580. Não assistimos a nenhuma mutação genética, ao aparecimento de um Homo Modernus. O homem de antes e o homem de depois do clique do desenvolvimento detêm o mesmo potencial; diferem somente nas suas motivações.

Cada homem carrega consigo comportamentos inibidores e comportamentos liberadores. A maior parte das sociedades só utilizaram uma pequena parte destes últimos. A segurança rotineira oferece o conforto dos caminhos conhecidos. A exploração de novas vias — não apenas geográficas — sempre comporta um risco. Tem um custo psicológico importante; até mesmo desencorajador para quem não tem confiança nos benefícios futuros, na sua própria capacidade para suscitá-los, na sociedade da qual é um membro. O desencadeamento se produz onde são deliberadamente favorecidos os comportamentos emancipadores, onde são superados os comportamentos entorpecedores, onde equilíbrio e estabilidade encontram-se revelam-se movimento.

Remanescências da divergência

Sem pretender tratar a fundo um assunto que poderia ocupar numerosos pesquisadores durante vários anos, podemos inventariar em alguns pontos a situação estranha da Europa: nos séculos XIX e XX — quando a presença social e mental das Igrejas, católica ou protestantes sem distinção, recua, os Estados secularizam-se, a “ciência” e o “progresso” conquistaram sua autonomia — esbarra-se no paradoxo de uma repartição geográfica do desenvolvimento que continua, de um modo geral, a reproduzir o mapa religioso do século XVI. A fratura que se produziu então entre a Europa da Reforma e a da Contra-Reforma continua a dividir as sociedades do continente — como também separa as sociedades de civilização européia transplantadas para o Novo Mundo. Limitar-nos-emos da dar, nos Anexos, alguns exemplos dessa surpreendente reminiscência, que atrapalha tanto nosso modernidade que geralmente preferimos ocultá-la. Aliás, são esses contrastes que me levaram, há quase cinqüenta anos, a me envolver com esta pesquisa sobre o desenvolvimento, sua matriz mental, sobre a confiança na liberdade.

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Alain Peyrefitte e a sociedade de confiança

por J. O. de Meira Penna

Alain Peyrefitte e a sociedade de confiança

J. O. DE MEIRA PENNA

O Estado de S. Paulo, domingo, 19 de dezembro de 1999

A morte de amigos e pessoas ilustres é uma fatalidade com a qual jamais nos reconciliamos. Por mais que saibamos ser parte inevitável da condição humana, o sentimento de revolta que nos atinge é tanto mais pronunciado quanto mais a essa pessoa estamos presos por laços de afeto e admiração. Foi assim que reagi à notícia do falecimento de Alain Peyrefitte, com o qual havia marcado um encontro, no início do mês passado, para comunicar-lhe os esforços do Instituto Liberal do Rio de Janeiro no sentido de publicar um de seus livros. Homem extremamente discreto, até o último momento Peyreffite escondeu a moléstia que o consumia. Disseram-me que na antevéspera de seu falecimento, ainda foi entregar ao editor as provas finais de sua última obra, o terceiro volume de C’Était De Gaulle.

Escritor, político ativo e teórico, membro do Institut e da Academia Francesa, senador, oito vezes ministro, maire da cidade medieval de Provins, Peyrefitte era uma combinação excepcional daquele ideal platônico, tão freqüentemente frustrado, de filósofo e governante ao mesmo tempo. Julgo que, como amiúde ocorre, acabou preferindo as letras ao exercício do poder. Em sua enormemente prolífica atividade como escritor, dedicou-se a três temas favoritos, com um quarto ocasional.

Foi em primeiro lugar o cronista de De Gaulle e alguns de seus contemporâneos o compararam a outros, como Commines, Saint Simon e Las Cases, os de Luís XI, Luís XIV e Napoleão. No terceiro volume, por falar nisso, esperemos que faça referência à viagem do general à América do Sul em 1966 em que, presumivelmente, encontraremos observações sobre nosso país. Como historiador de um dos períodos mais importantes da história moderna da França (e da Europa), Peyrefitte tem seu nome já consagrado como intérprete do renascimento de sua pátria após o colapso que a afetou na primeira metade do século. Inicialmente diplomata, formado na famosa ENA, a escola superior que prepara a elite da administração francesa, e havendo alcançado o grau de ministro plenipotenciário, serviu em Bonn, na Cracóvia e na Conferência de Bruxelas após o que, em 1958, entrou para a política, sendo sucessivamente reeleito deputado até tornar-se senador em 1995.

Como um dos mais fiéis gaullistas, foi ministro da Informação e ministro da Ciência e Tecnologia Atômica (1966/67), em cuja capacidade contribuiu para a entrada da França no clube fechado das potências nucleares. Como ministro da Educação, colocou-se no centro do chienlit estudantil de maio de 1968, que conseguiu conter sem violência.

Foi como ministro da Justiça (Garde des Sceaux) que Peyrefitte visitou o Brasil, em outubro de 1978, com o presidente Giscard d’Estaing, quando tive a honra de conhecê-lo, interessado como estava em um de seus primeiros e mais importantes livros, Le Mal Français, publicado dois anos antes. Traduzido para o inglês, e para o espanhol e italiano com o título O Mal Latino, tenho tentado em vão interessar editoras brasileiras na soberba análise crítica empreendida por Peyrefitte, já agora como sociólogo, dos fundamentos religiosos, culturais e morais dos males que têm prejudicado o desenvolvimento e a modernização de toda a área latina.

Tocqueville e Weber – Revela-se aí fiel discípulo de Tocqueville e Weber. Responsabiliza inclusive a contra-reforma, como fazemos nós, liberais brasileiros, e a tradição do autoritarismo absolutista pelas mazelas que embaraçam, senão impedem, nossa emergência como democracias liberais, abertas ao mercado e sobrepujando o ranço patrimonialista de nossa estrutura social. Creio que em nenhuma outra obra de sociologia as origens de nossos vícios coletivos foram tão objetiva e sabiamente perscrutados em suas profundas raízes culturais ou psicossociais. Talvez seja o vezo weberiano da crítica ao romanismo centralizador e interventor de nossa estrutura sócio-política o motivo das suspeitas de que alimentasse convicções huguenotes.

Peyrefitte, infelizmente, não estendeu suas pesquisas sociológicas à América Latina e, particularmente ao Brasil como eu esperava, após a segunda visita que realizou a nosso país, em 1987, a convite do Estado e da Associação Comercial de S. Paulo. Nessa ocasião lhe servi de intérprete, em conferência pronunciada na Avenida Paulista, e de cicerone no Rio e Brasília. Estava, na ocasião, acompanhado do filho mais moço, Benoit. Ao invés, o ilustre acadêmico preferiu desviar sua atenção para um outro tema que desde então o fascinou.

Paixão de aprender – Sofrendo, como notou o jornalista e autor liberal Guy Sorman, da “paixão de aprender”, Peyrefitte publicou uma série de obras sobre a China, que visitou mais de uma dúzia de vezes. Talvez tenha almejado realizar para os chineses o mesmo que Tocqueville com sua De la Démocratie en Amérique. Em 1973, parafraseando uma frase célebre de Napoleão publicou Quand la Chine s_Éveillera… le Monde Tremblera. Esse livro foi seguido de Chine Immuable, L_Empire Immobile (1989), La Tragédie Chinoise (após o episódio do massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial) e de um pequeno ensaio, com fotografias, terminando com La Chine s_Est Éveillée (1996), ocasião em que manteve uma longa entrevista com o atual presidente chinês Jian Zemin.

Em todos esses ensaios, julgo tenha o autor compensado seu deslumbramento com o Império do Meio (Djung Guó), graças a uma crítica objetiva da complexa problemática levantada pela necessidade da China se abrir ao mundo global, enquanto procura preservar sua identidade confuciana e a difícil unidade do povo de Han, de mais de 1 bilhão de pessoas.

Teimosia oriental – O Império Imóvel foi publicado em português em 1997 pela Casa Jorge Editorial do Rio. Acompanhado de mais três volumes complementares, relata a embaixada chefiada em 1792/94 por lorde Macartney, na primeira e frustrada tentativa dos ingleses de provocarem a abertura do imenso império, então governado por seu último grande imperador, Kien Long. A China obstinava-se na arrogância de ser a potência mundial hegemônica, postura estimulada pela desconfiança da classe dominante imperial mandchú. Os volumes anexos cobrem uma enorme documentação relativa às reações dos jesuítas de Pequim, dos ingleses e dos próprios chineses àquela missão diplomática sui-generis – que demorou dois anos e comportou o envio de uma esquadra e 2.000 homens de comitiva. Macartney não pôde contornar, contudo, a teimosa insistência dos mandarins no sentido de lhe exigir o humilhante kowtow, as nove prosternações diante do Filho do Céu, obrigatórias para os representantes dos vassalos.

Surpresa – Peyrefitte manifestou sua surpresa quando descobriu que eu conhecia a extrema pertinência desse episódio, no relacionamento entre o Ocidente e Ásia. Expliquei-lhe que minha carreira se iniciou na China (1940/42 e 1947/49) e que, durante anos, estudei sua história e cultura. O que destaca a tese central da obra é o contraste entre a inflexível imobilidade e introversão autárquica dos chins, postergando durante dois séculos a abertura do Império Central, até o esforço de modernização encetado por Deng Xiaoping – e a flexibilidade com que, em meados do século 19, os japoneses se adaptaram à inevitável globalização. Se o Japão é hoje a segunda potência econômica do mundo enquanto só agora “a China acorda para fazer tremer o mundo”, a origem do descompasso se coloca nas peripécias dessa missão diplomática.

Criminalidade – O quarto tema que interessou o eminente escritor francês foi o problema da Justiça e da criminalidade no mundo moderno, fruto de sua experiência como ministro da Justiça. Les Chevaux du Lac Ladoga – la Justice entre les Extrêmes apareceu em 1982 e lhe custou caro: quase foi morto por uma bomba terrorista que explodiu na frente de sua residência, em Provins, sacrificando seu motorista. Peyrefitte defende uma legislação mais rigorosa contra bandidos, assassinos e terroristas – antecipando a idéia central que estamos emergindo da Idade das Guerras para entrar na Idade do Crime.

Mas retornemos agora ao tema principal das preocupações de Peyrefitte, expresso em escritos que vão desde 1947, Le Sentiment de Confiance, ao Du Miracle en Économie e, finalmente, a La Société de Confiance, de 1995. Com tradução patrocinada pelo Instituto Liberal, essa obra será brevemente publicada pela Editora Topbooks, sob o comando esclarecido e corajoso de José Mário Pereira e com tradução primorosa de Cylene Bittencourt.

Comentemos a questão levantada por Peyrefitte. Num artigo de 2 de março de 1997, Roberto Campos se pergunta por que, apesar das cerebrizações de economistas e sociólogos, o desenvolvimento econômico continua a ser essencialmente um mistério. Campos oferece como exemplos de problemas não esclarecidos o despertar da China de um sono de 500 anos, o “milagre brasileiro” da década dos 70 que desembocou na “década perdida” dos 80, e os “dominós” asiáticos que se tornaram “dínamos”.

A pergunta levantada é daquelas a que inúmeros pesquisadores têm tentado responder desde que, em 1776, Adam Smith pesquisou As Causas da Riqueza das Nações, ora salientando o ambiente cultural; ora favorecendo o tipo de estrutura institucional no mercado aberto; ora apontando para a iniciativa de governantes excepcionais que, convencidos dos méritos superiores da receita do livre câmbio sobre o planejamento socialista centralizador e uma pertinaz tradição patrimonialista, tomaram a iniciativa de atos concretos de sábia política, graças aos quais um surto de desenvolvimento milagrosamente se registou. Estou, neste caso, pensando especialmente em Pinochet, no Chile, e em Deng Xiaoping, na China. As duas nações registram índices inéditos de desenvolvimento acelerado, que a “crise” atual não parece haver senão temporariamente interrompido.

Um caso particular que desperta nossa curiosidade é o da França. Trata-se, afinal de contas, da quarta economia mundial (depois dos EUA, Japão e Alemanha). É também uma nação que, por não se decidir francamente nem por um lado, nem pelo outro, continua dividida, angustiada e sofrendo de uma espécie de incurável moléstia social. A pátria de Alain Peyrefitte não parece haver superado a fatídica cisão esquerda X direita que a dialética do jacobinismo revolucionário em 1793 engendrou, com seu contraponto no bonapartismo ditatorial; nem tampouco o absolutismo (“O Estado sou Eu”) herdado do Rei Sol, Luís XIV.

Para a integração profícua na comunidade regional e num mundo globalizado, deve todo cidadão convencer-se que a liberdade de iniciativa, a confiança na honestidade dos outros, o espírito inventivo e o estado de direito, forte e limitado, são definidos como as causas da riqueza coletiva – não havendo outras.

Ora, foi justamente Peyrefitte quem melhor procurou analisar o que chama le mal français. Ao vislumbrar as condições da sociedade de confiança que favorece o progresso, o grande ensaísta enfrentou um de seus maiores desafios. No esforço hercúleo de penetrar no “mistério” ou “milagre” do desenvolvimento (uma de suas obras prévias chama-se, justamente, Du Miracle en Économie), nosso amigo é o maior participante francês num debate ardente que data da publicação, em 1835/40, da Démocratie en Amérique e, em 1905, de um das obras fundamentais da sociologia moderna, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Falsidades perversas – A polêmica que esses livros provocaram muito longe ainda está de se esgotar – e confesso me haver dedicado, com furor, a promovê-la no Brasil. O propósito weberiano era escaparmos das perversas falsidades do determinismo materialista que fez a fortuna inidônea do marxismo. Peyrefitte elaborou extensamente o tema da preeminência dos fatores morais, desde a publicação daquele primeiro título há 20 anos, até seus mais recentes. E é esta obra fundamental precisamente, a Sociedade de Confiança, que foi precedida de um compte-rendu do colóquio internacional, realizado no Institut de France em setembro de 1995 – em que me surpreendendi com a identidade dos problemas levantados, na França e no Brasil, quanto às condições morais e culturais do desenvolvimento e às políticas adequadas a seu sucesso.

No livro, o pensador francês coroou seu trabalho monumental com um estudo histórico e sociológico exaustivo da ética de livre iniciativa e incentivos ao setor privado da economia, suscetíveis de assegurarem o progresso. Renovando com o inquérito que, pela primeira vez, Adam Smith empreendeu no sentido de descobrir, na liberdade e na simpatia, o segredo do progresso, ele acentua o paralelismo entre o que chama a “divergência” religiosa entre os latinos, autoritários, patrimonialistas e desconfiados – e os holandeses e anglo-saxões, mais liberais, mais tolerantes, mais racionais e livres, e nutrindo maior confiança nos méritos da troca e divisão do trabalho.

Questão de confiança – A divergência explicaria o ritmo diverso de crescimento e progresso das respectivas sociedades. Esse desenvolvimento tem sido sustentado, de um lado, pelos sentimentos de confiança dos cidadãos uns nos outros; e, do outro, pela capacidade do estado de direito de fazer cumprir o princípio pacta sunt servanda. Pois não devem os contratos e a propriedade ser respeitados, sendo a honestidade pressuposto de toda transação econômica?

O descompasso histórico no ritmo de desenvolvimento se foi acentuando. Peyrefitte compara, por exemplo, o take-off inglês a partir do século 18 com o declínio espanhol. Chegando a nossos dias, diagnostica a mentalidade desconfiada, com o pressuposto generalizado que, até prova em contrário, todo o mundo é desonesto e sem-vergonha, se não pertence a nosso círculo de amizades e família. Os governantes podem ser tacanhos, mas só a eles o povo acredita que cabe a tarefa altruísta de nos salvar do egoísmo entranhado de todo capitalista. E insiste no fato de que a resistência enfadonha a qualquer inovação e o conservadorismo inquisitorial da Igreja cooperam para erguer barreiras burocráticas e impasses legais a qualquer oportunidade de avanço nos países obedientes à ética tridentina sob a qual fomos educados e sofremos.

Introversão – Peyrefitte amplia e aprofunda estudos setoriais que, em The Moral Basis of a Backward Society, foram realizados pelo sociólogo americano Edward Banfield ao analisar o comportamento familista, desconfiado e introvertido numa aldeia do mezzogiorno italiano, dominada pela Máfia; e pelo nipo-americano Francis Fukuyama que, em seu livro Trust, tenta explicar o sucesso das sociedades da Ásia oriental por motivações oriundas da disciplina da moral confuciana.

Os dados elementares do desenvolvimento são a liberdade, a criatividade e a responsabilidade. Mas utilizar os recursos da liberdade com autonomia individual e explorar essas virtudes na fase educacional da vida fazem supor uma confiança muito forte no homem, trabalhando dentro das normas de uma sociedade livre. É esse o fator, por excelência, do desenvolvimento.

Querer o desenvolvimento, o progresso, o enriquecimento do país comporta, na conclusão do livro, a “confiança na confiança”. Peyrefitte é otimista. O tom hortativo do trabalho representa o esforço de um homem que, tendo ao morrer alcançado o topo da elite intelectual francesa, incentiva seus compatriotas à superação dos traços culturais viciosos que configuram o “mal francês”. Estamos em suma, em presença de um novo Tocqueville cujo valor e reputação tenderão, estou certo, a crescer e se estender fora do âmbito da língua e cultura francesas.