Vocações e equívocos

Olavo de Carvalho

Bravo!, fevereiro de 2000

Se você escreve, ou pinta, ou faz sermões na igreja, ou toca música, ou monta a cavalo, ou tira fotos, ou faz qualquer outra coisa que pareça interessante, já deve ter ouvido mil vezes a pergunta: “Você faz isso por dinheiro ou por prazer?” Tão infinitamente repetível é essa fórmula, que ela deve revelar algum traço profundo e permanente do modo brasileiro de ver as coisas – um lugar-comum ou topos da nossa retórica diária.

Ora, todo lugar-comum é um recorte que enfatiza certos aspectos da realidade para momentaneamente dar a impressão de que os outros não existem. Logo, para compreendê-lo é preciso perguntar, antes de tudo, o que é que ele omite.

O que está omitido na pergunta acima é a possibilidade de que alguém se dedique de todo o coração a alguma coisa sem ser por necessidade econômica nem por prazer – ou, pior ainda, que continue se dedicando a ela como se fosse a coisa mais importante do mundo mesmo quando ela só dá prejuízo e dor de cabeça. O que está omitido nessa pergunta — e no modo brasileiro de ver as coisas — é aquilo que se chama vocação.

Vocação vem do verbo latino vocovocare, que quer dizer “chamar”. Quem faz algo por vocação sente que é chamado a isso pela voz de uma entidade superior — Deus, a humanidade, a História, ou, como diria Viktor Frankl, o sentido da vida.

Considerações de lucro ou prazer ficam fora ou só entram como elementos subordinados, que por si não determinam decisões nem fundamentam avaliações.

No mundo protestante, germânico, há toda uma cultura e uma mística da vocação, e a busca da vocação autêntica é mesmo o tema do principal romance alemão, o Wilhelm Meister de Goethe. Nos países católicos a importância religiosa da vocação, consolidada na ética escolástica do “dever de estado” (por exemplo, o dever dos pais de família, dos comerciantes, dos militares etc.), foi perdendo relevo depois do Renascimento, cavando-se um abismo cada vez mais fundo entre o sacerdócio e as atividades “mundanas”, esvaziadas de sentido na medida em que só o primeiro é considerado vocacional em sentido eminente. No Brasil, para agravar as coisas, a população foi constituída sobretudo de três espécies de pessoas: portugueses que vinham na esperança de enriquecer e não conseguiam voltar, negros apanhados à força e índios que não tinham nada a ver com a história e de repente se viam mal integrados numa sociedade que não compreendiam. É fácil perceber daí o imediatismo materialista dos primeiros (o qual, quando frustrado, se transforma em inveja e azedume que tudo deprecia, e que com tanta facilidade se disfarça em indignação moralista contra a corrupção e as “injustiças sociais”), e mais ainda a total desorientação vocacional do segundo e do terceiro grupos, brutalmente amputados do sentido da vida e por isto mesmo facilmente inclinados a sentir-se marginalizados mesmo quando já não o são mais.

Um pouco da ética da vocação existe ainda entre nós graças à influência dos imigrantes, especialmente alemães, árabes e judeus, mas existe de modo tácito, implícito, jamais consagrado como valor consciente da nossa cultura e muito menos valorizado pelas escolas e pelos governos.

A realização superior do homem na vocação é então substituída pela mera busca do emprego, visto apenas como meio de subsistência e sem nenhuma importância própria no que diz respeito ao conteúdo. A adaptação conformista a um emprego medíocre e sem futuro é considerado o máximo do realismo, a perfeição da maturidade humana. Tudo o mais é depreciado (e por isto mesmo hipervalorizado e ansiosamente desejado) como “diversão”. Assim, entre o trabalho forçado e a diversão obsessiva (da qual o Carnaval é a amostra mais significativa), acumula-se na alma do brasileiro a inveja e uma surda revolta contra todos os que levem uma vida grande, brilhante e significativa, sobre os quais, mesmo quando são pobres, paira a suspeita de serem usurpadores e ladrões, pelo menos ladrões da sorte. Daí a famosa observação de Tom Jobim: “No Brasil, o sucesso é um insulto pessoal.” Sim, nesse meio não se compreende outra lealdade senão o companheirismo dos fracassados, em torno de uma mesa de bar, despejando cerveja na goela e maledicência no mundo. Este é um país de gente que está no caminho errado, fazendo o que não quer, buscando alívio em entrenenimentos pueris e desprezíveis, quando não francamente deprimentes.

Nossa ciência social, atada com cabresto maxista e cega às realidades psicológicas mais óbvias da nossa vida diária, jamais se deu conta da imensa tragédia vocacional brasileira que condena milhões de pessoas a viver presas como animaizinhos, entre a dor inevitável e o prazer impossível.

É que a explosiva acumulação de paixões infames, inevitável nessa situação, é o caldo de cultura ideal para a germinação dos ressentimentos políticos. E uma ciência social rebaixada a instrumento auxiliar da demagogia não há de querer lançar luz justamente sobre aquela treva confusa da qual a demagogia se alimenta.

Inteligentes e burros

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 3 de fevereiro de 2000

Há quatro décadas o chamado “debate nacional” consiste exclusivamente no confronto de privatistas e estatistas. Quem os ouve tem a impressão de que todo o problema do Brasil é escolher entre esses dois partidos. Isso mostra apenas incapacidade de aprender com a experiência: privatismo e estatismo já se revezaram no poder mil vezes, e nenhum deles jamais conseguiu qualquer resultado positivo exceto à custa de oportunas concessões ao outro. Quando se apegam às respectivas ortodoxias, só conseguem é meter os pés pelas mãos: entre a política de reserva de mercado que atrasou em dez anos a informática brasileira e as privatizações desastradas do governo FHC, o diabo até hoje hesita em dizer de qual gostou mais.

Quem é que não percebe que, dessas duas políticas, às vezes a razão está com uma, às vezes com a outra, conforme as circunstâncias do momento, e que portanto não há entre elas verdadeiro confronto ou debate, apenas uma simulação de hostilidade, sempre pronta – felizmente – a fazer o contrário do que prega?

Sufocado pelo Estado no tempo do Império, o capitalismo brasileiro floresceu sob a proteção do mesmo Estado, na década de 30. Depois, quem ajudou mais os capitalistas do que o governo JK, eleito por uma aliança de estatistas históricos? E quem ampliou mais a economia estatal do que o regime militar criado, em teoria, para defender a iniciativa privada?

Todo mundo sabe que, uma vez no poder, o governante brasileiro não faz o que sua teoria manda, mas o que as circunstâncias permitem – e, quando chega aonde quer, é pelo caminho que não quis. Esse pragmatismo começou com d. João VI e pode parecer escandaloso aos estrangeiros, mas tem a seu favor dois argumentos definitivos: ele existe e funciona, enquanto as teorias ortodoxas só existem como hipóteses que seus próprios defensores são os primeiros a abandonar quando trocam a cátedra universitária por uma pasta ministerial.

Mas, se é assim, por que prosseguimos numa discussão que é puro teatro? O espantoso não é que os brasileiros combinem pragmaticamente estatismo e privatismo. Isso é apenas sabedoria instintiva. O espantoso é que continuem a raciocinar, em teoria, como se aqueles dois elementos cuja mistura tem dado certo na prática fossem coisas heterogêneas e imescláveis por natureza.

O que isso mostra é que temos mais inteligência prática do que teórica. Sabemos resolver os problemas quando se apresentam, mas, quando nos metemos a explicar o que fizemos ou o que vamos fazer, fazemos a maior meleca mental, apelamos a estereótipos abstratos que não têm nada a ver com a realidade e, no fim, de tanto discutir bobagem, acabamos por inibir e paralisar a própria inteligência prática que vinha funcionando tão bem!

Essa disparidade está aliás imbricada na própria constituição psíquica da Nação brasileira. Poucos povos do mundo podem competir com o nosso em agilidade, em destreza para superar, pelo improviso, os obstáculos econômicos mais temíveis. Por opressiva que se torne a situação, o povo, como ele próprio diz, sempre “se vira”. Notem a sutileza da expressão: virar-se é mudar de caminho, é tentar, é experimentar outra coisa, é esquecer as idéias fixas e deixar-se conduzir pelo senso de oportunidade. Em comparação com isso, a nossa classe intelectual, com seu discurso rígido e estereotípico, parece um bando de velhotas reumáticas, amedrontadas e mesquinhas, imobilizadas em suas cadeiras de rodas e amaldiçoando em linguagem pedante um mundo que não compreendem. Quem diria que pessoas sem instrução pudessem ser tão inteligentes e pessoas instruídas pudessem ser tão burras?

Querem um exemplo? O florescimento da “economia informal”, que na década de 80 chegou a responder por metade do nosso PNB, foi um prodígio de inventividade popular – talvez o mais pujante surto de puro capitalismo liberal que já se viu neste mundo. Diante desse fenômeno, os teóricos liberais permanecem alheios e indiferentes: só têm olhos para a Malásia, a Indonésia, a Cochinchina do capitalismo utópico. E os esquerdistas, então! Já se viu coisa mais alienada do que oferecer uma perspectiva socialista a um povo que acaba de descobrir que tem o gênio dos negócios? Nossos intelectuais estão sempre com a cabeça no mundo da lua, raciocinando por esquemas aprendidos por incapacidade de fazer abstrações a partir da experiência real. E ainda querem que o povo leia seus livros, porca miséria!

A sabedoria perene

por Wagner Carellli

República, seção “Palavra do Diretor”, fevereiro de 2000.

NB – A entrevista a que Wagner Carelli se refere está no número de fevereiro da República. Uma transcrição integral será reproduzida nesta homepage dentro de algumas semanas. – O. de C.

Olavo de Carvalho é o mais importante pensador brasileiro hoje, o mais — talvez o único — original, o mais estimulante, o mais elaborado e ao mesmo tempo mais acessível. Ler sua entrevista ao redator-chefe Reinaldo Azevedo e aos editores Fábio Santos e Michel Laub, nas págs. 60-66, é desfrutar à larga o prazer que se extrai do argumento do espírito, princípio ativo da cultura — o prazer supremo, segundo Aristóteles. Não por acaso, Olavo é o filósofo brasileiro mais profundamente ligado ao e versado no pensamento de Aristóteles, na interpretação do qual sua obra — dele, Olavo — estabelece um ponto de mutação: o entendimento do pensar aristotélico tem um antes e um depois em seu livro Uma Filosofia Aristotélica da Cultura — Introdução à teoria dos quatro discursos.

Fosse Olavo um homem de liderar movimentos (“Não tenho nenhuma pretensão a orientar a política”), de produzir ideologias (“Se o Brasil quiser um ideólogo, que procure outro”), sua entrevista serviria de convocatória ao levante de um pensamento particularmente não-conformista. Particularmente, porque nada do que Olavo propõe é lateral a um determinado pensamento ou deflagra aí uma “problemática”, mas emerge como a perfeita acepção do que é pensado e estabelece patamares confiáveis e sucessivos para sua evolução; o que até então se tinha como a corrente central de um certo pensar é que, sob tal extraordinária luz, passa a parecer de uma lateralidade espinhosa.

Olavo é um professor, porém, e sua entrevista é uma cartilha. Todo intelectual, nos muito freqüentes e desesperados momentos em que bate a tentação de seus inversos — o dinheiro, a fama, outro poder que não o de pensar –, deveria levá-la sob o braço e recorrer a sua sábia e irredutível orientação. Olavo abomina o dedo que seus pares mantêm em riste contra tudo e todos ao redor, a assumida vitimização que o intelectual exibe como medalha em que lhe vale o ingresso nos salões dos supostos e constrangidos culpados. Ele diz que faz o que gosta, que ninguém é responsável por suas opções e que, se quisesse ser rico, iria fazer outra coisa: é um pensador que não se ressente de exclusão, de perda de posição, poder ou glória para o universo fulgurante que criou a aliança do dinheiro e da tecnologia. Não se porta como um exilado da prosperidade; nem, amuado, finge esquecer que seu argumento conforma o mundo e precede a ação dos homens — seria irresponsabilidade e imodéstia, duas atitudes antagônicas à clareza do espírito.

Olavo sabe do caráter divino, demiúrgico, do argumento do pensador; sabe que enunciá-lo é dar a conhecer o parecer de Deus. No reconhecimento dessa condição não vai o pecado da soberba — só aceitação, e humilde, até; pecado, aí, é negar-se o dom atribuído, não se imaginar um instrumento da criação, julgar-se uma entidade social fortuita e cosmicamente desconectada. Pecado é subestimar-se, descumprir sua missão, fugir à tarefa de pensar em um país arredio, suscetível, temeroso ao pensamento. E se assim deve ser, Olavo, a quem todos os equívocos são imputados, é o intelectual sem pecado: generoso com a verdade, feroz com a redundância do erro e luminoso, brilhante, no indicar os caminhos da correção e da grandeza. Em sua hierarquia de valores, ele diz nesta memorável entrevista, o que vem primeiro é o destino eterno do homem: é só o que interessa. Só podemos aspirar à eternidade, ele quer dizer: nada há de menor, de mesquinho, de finito em nossas vidas — só o que inventamos para escapar à perenidade de nossa essência. Somos eternos. “O resto é conversa mole”, diz Olavo, na paradoxalmente dura e confortadora sabedoria de sua extraordinária conversa. Se não formos por ele, não seremos sequer por nós.