Skidmore: Faça o que eu digo e não o que eu faço

17 de abril de 2000

Carta de um observador inteligente

Prezado Professor Olavo de Carvalho,

A revista Veja desta semana publicou uma entrevista com o brasilianista Thomas Skidmore, que pretendeu nos alertar para o fato de a nossa elite intelectual aplicar, equivocadamente, soluções estrangeiras aos problemas brasileiros. Essa constatação soou, para os jornalistas de Veja, como uma grande novidade, merecedora de destaque – tanto que o título da entrevista é “Chega de Receitas”. Primeiramente, constato que o alerta do americano só pode ser tido e vendido como novidade por quem nunca tenha lido Olavo de Carvalho, ou tenha se esquecido de que o leu. Razão pela qual cabe acrescentar às palavras de Skidmore que, além de não termos uma classe intelectual que capte a nossa realidade, ainda nos damos ao luxo de ignorar solenemente os poucos espíritos que conseguem, heroicamente, produzir algo totalmente diferente do discurso da nossa delirante classe acadêmica que, quanto mais desvinculada da realidade se torna, mais convicta fica de que seu problema é a falta de recursos para a produção de estudos que justifiquem suas teses, numa espécie masturbação incessante que, quanto mais insiste em negar os fatos, mais fantasias possibilita. Mas o pior de tudo é que o homem que nos critica por não termos “cabeças tentando formular políticas alternativas”, por não termos “uma receita própria”, por seguirmos “a política que vem de Washington” em vez de procurarmos “uma solução brasileira”, nos elogia porque o Presidente Fernando Henrique tem “enfatizado a necessidade de reconhecer os direitos das minorias”. O Sr. Thomas, embora salientando os “problemas” da política de cotas de vagas para negros, cita-a como um sinal de avanço na discussão da discriminação racial. Assim, o sujeito que nos acusa de importar soluções alienígenas acha maravilhoso que adotemos aqui os problemas existentes no estrangeiro. Teremos avançado na discussão da questão racial quando os nossos negros, seguindo o exemplo de seus irmãos americanos, se revoltarem contra a exploração de que são vítimas e os brancos brasileiros tomarem consciência dos males que causaram. Para o Sr. Thomas, seguir o receituário do FMI é um sinal do vácuo da intelectualidade brasileira. Já a intenção de adotarmos a política americana em relação aos negros não é tão grave assim; chega a ser uma prova da nossa evolução, cuja prova insofismável, para o Sr. Skidmore, é O FATO DE COLOCARMOS A QUESTÃO NOS MESMOS TERMOS QUE OS AMERICANOS. Ou seja, a cópia servil de fórmulas é execrável em matéria econômica, mas em outras áreas é coisa bastante aceitável. Se seguimos as orientações de Bill Clinton, estamos importando soluções que não nos servem. Já se um negro brasileiro supõe ser tão discriminado quanto um negro americano, está avançando, e não importando um problema, porque os dramas dos nossos negros são, por certo, bastante semelhantes aos dos “afro-americanos”.

Note ainda, por favor, que o Sr. Thomas utiliza a expressão “direito das minorias” para se referir à questão racial no Brasil. Basta isso para nos dar, primeiro, a noção de sua capacidade para pensar os problemas sem adotar as “fórmulas” que ele critica e, segundo, nos indicar quem alimenta os nossos intelectuais com soluções que contrariam os fatos, a lógica e a razão. Nossa classe pensante, que o Sr. Skidmore repudia, tem com as idéias defendidas pelo historiador americano um parentesco maior do que ele gostaria de reconhecer.

Amilcar Nadu

paulofrancis@hotmail.com

Resposta de Olavo de Carvalho

Você viu as coisas como são. O homem nos vende sua receita no instante mesmo em que nos aconselha fugir de todas as receitas. E nos vende logo a mais inadequada, a mais alienada. Finge-se de amigo do Brasil para nos impingir a politica clintoniana do “dividir para reinar”. Será que um dia nossos nacionalistas perceberão que essas fórmulas de democracia prêt-à-porter são mais perigosas para a unidade nacional do que todas as privatizações? Uma empresa vendida ao estrangeiro pode ser recomprada ou, em caso extremo, encampada. A unidade cultural, uma vez fragmentada em comunidades étnicas mutuamente hostis, não se recupera nunca. Por isso os mesmos poderes estrangeiros a quem interessam certas privatizações dão dinheiro a rodo à militância esquerdista para fomentar a criação artificial de conflitos raciais. Por isso o discurso da nossa esquerda é suicida e auto-neutralizante: ele fortalece aquilo que sonha destruir.

O “multiculturalismo”, com toda a legislação paternalista correspondente, serve precisamente para nações onde as comunidades étnicas não querem viver juntas, mesclar-se, esquecer suas diferenças e unir-se na celebração da unidade do espírito, mas apenas coexistir intactas, justapostas e mutuamente estranhas, tendo o Estado por mediador. O multiculturalismo é a paz racial das nações racistas.

O Brasil tem coisa melhor a oferecer ao mundo.

O modelo brasileiro de integração racial é o melhor que existe, só comparável ao modelo islâmico (28 nações sem conflito racial), mas livre, ademais, dos problemas de hostilidade religiosa que neste subsistem.

O que temos de fazer é aprofundar nossa compreensão desse modelo, aperfeiçoá-lo (pois ainda há enclaves racistas, grupos mal integrados no tronco maior da nossa cultura), elaborá-lo intelectualmente e fazer dele uma política autoconsciente que possa ser ensinada, como terapêutica, às nações ainda enfermas de loucura racista.

Um abração do

Olavo de Carvalho

Debates e provas

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

Tema para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

Raciocinar sem pressupostos é impossível, mas reduzi-los ao mínimo é, para o filósofo, uma obrigação. E mesmo esse mínimo, em algum ponto da viagem, terá de se tornar objeto de exame, retroativamente, para que daí saiam glorificados como princípios ou rebaixados à condição de hipóteses provisórias que, tendo uma vez servido de motor de arranque, podem ser desligadas quando o barco já está em movimento.

De tal modo a redução dos pressupostos é atividade essencial e característica da filosofia, que o alto coeficiente de espírito filosófico presente numa discussão pode ser medido pela míngua de postulados admitidos em comum pelas partes em disputa, e o baixo pela abundância deles. Enquanto numa discussão vulgar os contendores apelam de improviso a mil e um postulados colhidos do senso comum, das opiniões do auditório ou de seus respectivos campos especializados de estudo, dois filósofos em confronto não admitirão discutir – se o fizerem filosoficamente – senão com base nuns poucos postulados admitidos explicitamente desde o início, à luz dos quais tudo o mais que o debatedor vulgar poderia dar por pressuposto se torne passível de exame e arbitragem. A redução significa, pois, esclarecimento. Não pode haver clareza, nem portanto argumentação racionalmente probante, onde as bases da prova se encontrem dispersas numa multiplicidade difusa de fontes e autoridades, aguardando que a destreza do orador ou um feliz acaso vão buscá-las no calor do debate para extrair delas algum efeito surpreendente para confundir o adversário.

Do voto de pobreza em matéria de pressupostos decorre outra característica essencial do debate filosófico: sua soberania ante os saberes particulares. Enquanto no debate vulgar a superior dotação de conhecimentos especializados confere ao debatedor uma indiscutível vantagem sobre seu concorrente, no confronto filosófico essa superioridade é de pouca valia, porque esses conhecimentos, a não ser na hipótese de serem de antemão postulados como válidos por ambas as partes (o que supõe que ambas os dominem por igual), só terão força probante se puderem ser dedutivamente legitimados desde os princípios admitidos em comum e, em vista disso, não estão numa posição mais privilegiada que a de qualquer outra alegação possível.

Do mesmo modo, as opiniões e sentimentos habituais do auditório, tão úteis para o debatedor cuja vitória dependa de aprovação do público, de nada servem em filosofia exceto se, à luz dos princípios admitidos, puderem se demonstrar válidos.

O estreitamento da base de pressupostos é condição sine qua non da validade da prova obtida – donde se conclui que perante as exigências superiores da filosofia, quase todos os debates intelectuais, seja nas questões públicas, seja no campo das ciências especializadas, não são senão exercicios de virtuosismo persuasório mais ou menos levianos e de resultados bastante duvidosos, a não ser no caso de se curvarem a essas exigências e se tornarem autênticos debates filosóficos.

Dito de outro modo, para o filósofo, só o debate filosófico em sentido estrito tem valor probante, e o tem justamente em razão da redução e explicitação dos pressupostos. Todos os demais debates não provam nada, por mais honestos que pareçam desde o ponto de vista das platéias ou por mais científicos que os julgue a opinião especializada.

Um filósofo não deve, pois, levar muito a sério esses debates. Se deles participar, estará obrigado, seja a admitir o caráter pessoal e até certo ponto arbitrário das opiniões que defenda, seja a buscar para elas um fundamento filosóficamente válido, o qual, porém, nas condições concretas do debate vulgar, deverá ser conservado num discreto segundo plano ou reservado para exposição sistemática em outra ocasião, cedendo o lugar, no calor da hora, a outro tipo de argumentos, mais ou menos improvisados e de menor validade filosófica. O que importa nessas horas para a preservação da integridade filosófica é que ele os apresente de modo a que permitam a qualquer momento sua conversão, mediante simples descompactação analítica, em provas filosoficamente válidas.

Digo “descompactação” por um motivo muito simples: é necessário que na conversão do discurso retórico para o dialético e deste para o analítico o conteúdo dos argumentos permaneça substancialmente o mesmo.

Nas discussões correntes, mesmo entre intelectuais, em geral não é possível ir além da argumentação retórica, ou prova por verossimilhança. Essa limitação provém seja da falta de espaço, nos jornais e revistas, seja da pouca disposição do público para acompanhar até o fim alguma demonstração mais “técnica” do que quer que seja. Para o debatedor que possui o conhecimento da prova cabal, é extremamente constrangedor ter de limitar-se a umas indicações gerais dela, as quais podem não soar mais convincentes do que qualquer improviso retórico leviano que o adversário lhes oponha. Mas essas indicações gerais, se forem realmente um resumo de demonstrações rigorosas, deixam ao menos ao debatedor a boa consciência de que essas demonstrações podem ser oferecidas noutra ocasião, tão logo o adversário, caso seja honesto, consinta em passar do mero confronto momentâneo ao teste aprofundado da verdade e do erro.

É nessa passagem que se verifica a diferença crucial entre dois tipos de argumentação retórica: aquela que é retórica apenas em função das limitações externas do debate, e aquela que é retórica por essência e fatalidade, por não poder ser outra coisa e por não poder valer senão retoricamente, isto é, como aparência persuasiva para um auditório determinado. A diferença vem da ambigüidade mesma do verossímil. Verossímil é parecer verdade. Mas há um parecer que é um aparecer e um parecer que é simular: há uma verossimilhança que é face externa da verdade profunda e uma verossimilhança que se finge de verdade, que usurpa o lugar da verdade e recebe as honras devidas à verdade.

Essa diferença aparece justamente na descompactação dos argumentos. O argumento retórico por excelência é o entimema, o silogismo com premissa não declarada. O entimema abrevia o discurso e lhe confere a pungência das afirmações breves, o fulgor das frases de efeito. Quando desdobramos analiticamente os entimemas, descobrimos suas premissas e as premissas destas premissas. Aí alguns entimemas revelam ser apenas a compactação de longas cadeias de provas perfeitamente razoáveis ou mesmo absolutamente inatacáveis, ao passo que outros se denunciam como puras maquiagens destinadas a disfarçar a falta de provas ou mesmo a completa falsidade das alegações. Retoricamente, ambos valiam o mesmo, pareciam igualmente persuasivos. Descompactados, um é alguma coisa, o outro não é coisa nenhuma. Ao analisar-se, submeteram-se à prova dialética, isto é, ao confronto interno de seus contrários. Um saiu ileso, reforçado mesmo. O outro desmembrou-se em fragmentos inconexos e já não pode ser remendado.

Há, pois, dois tipos de argumentação retórica: a retórica dialetizável e a não dialetizável. A primeira resiste à exposição de seus mecanismos internos, a segunda não. Muitas vezes a diferença aparece nitidamente já na simples exposição retórica, quando a compactação dos silogismos em entimemas é feita de tal modo que o leitor avisado apreenda instantaneamente a demonstração subentendida. Quando essa operação é bem sucedida, a argumentação obtém o máximo de força probante enxertado no máximo de compactação persuasória.

O filósofo que entre numa discussão corrente deve tomar o cuidado de não empregar argumentos retóricos pela sua pura força retórica, mas de usar somente daqueles que levem dentro de si, ocultas e compactadas, as mais rigorosas provas analíticas, resistentes a duros testes dialéticos. Se assim ele não vencer a discussão logo na primeira oportunidade, terá ao menos a certeza de poder levar a discussão mais adiante, subindo a níveis mais complexos e exigentes de demonstração, enquanto seu adversário, tão logo o combate saia do terreno do mero confronto de aparências, não terá remédio senão calar-se e desistir.

Direto do inferno

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 13 de abril de 2000

O clamor obsessivo dos intelectuais, dos políticos e da mídia pela “supressão das desigualdades” e por uma “sociedade mais justa” pode não produzir, mesmo no longo prazo, nenhum desses dois resultados ou qualquer coisa que se pareça com eles. Mas, de imediato, produz ao menos um resultado infalível: faz as pessoas acreditarem que o predomínio da justiça e do bem depende da sociedade, do Estado, das leis, e não delas próprias. Quanto mais nos indignamos com a “sociedade injusta”, mais os nossos pecados pessoais parecem se dissolver na geral iniqüidade e perder toda importância própria.

Que é uma mentira isolada, uma traição casual, uma deslealdade singular no quadro de universal safadeza que os jornais nos descrevem e a cólera dos demagogos verbera em palavras de fogo do alto dos palanques? É uma gota d’água no oceano, um grão de areia no deserto, uma partícula errante entre as galáxias, um infinitesimal ante o infinito. Ninguém vai ver. Pequemos, pois, com a consciência tranqüila, e discursemos contra o mal do mundo.

Eliminemos do nosso coração todo sentimento de culpa, expelindo-o sobre as instituições, as leis, a injusta distribuição da renda, a alta taxa de juros e as hediondas privatizações.

Só há um problema: se todo mundo pensa assim, o mal se multiplica pelo número de palavras que o condenam. E, quanto mais maldoso cada um se torna, mais se inflama no coração de todos a indignação contra o mal genérico e sem autor do qual todos se sentem vítimas.

É preciso ser um cego, um idiota ou completo alienado da realidade para não notar que, na história dos últimos séculos, e sobretudo das últimas décadas, a expansão dos ideais sociais e da revolta contra a “sociedade injusta” vem junto com o rebaixamento do padrão moral dos indivíduos e com a conseqüente multiplicação do número de seus crimes. E é preciso ter uma mentalidade monstruosamente preconceituosa para recusar-se a ver o nexo causal que liga a demissão moral dos indivíduos a uma ética que os convida a aliviar-se de suas culpas lançando-as sobre as costas de um universal abstrato, “a sociedade”.

Se uma conexão tão óbvia escapa aos examinadores e estes se perdem na conjeturação evasiva de mil e uma outras causas possíveis, é por um motivo muito simples: a classe que promove a ética da irresponsabilidade pessoal e da inculpação de generalidades é a mesma classe incumbida de examinar a sociedade e dizer o que se passa. O inquérito está a cargo do criminoso. São os intelectuais que, primeiro, dissolvem o senso dos valores morais, jogam os filhos contra os pais, lisonjeiam a maldade individual e fazem de cada delinqüente uma vítima habilitada a receber indenizações da sociedade má, e, depois, contemplando o panorama da delinqüência geral resultante da assimilação dos novos valores, se recusam a assumir a responsabilidade pelos efeitos de suas palavras. Então têm de recorrer a subterfúgios cada vez mais artificiosos para conservar uma pose de autoridades isentas e cientificamente confiáveis.

Os cientistas sociais, os psicólogos, os jornalistas, os escritores, as “classes falantes”, como as chama Pierre Bourdieu, não são as testemunhas neutras e distantes que gostam de parecer em público (mesmo quando em família se confessam reformadores sociais ou revolucionários). São forças agentes da transformação social, as mais poderosas e eficazes, as únicas que têm uma ação direta sobre a imaginação, os sentimentos e a conduta das massas. O que quer que se degrade e apodreça na vida social pode ter centenas de outras causas concorrentes, predisponentes, associadas, remotas e indiretas; mas sua causa imediata e decisiva é a influência avassaladora e onipresente das classes falantes.

Debilitar a consciência moral dos indivíduos a pretexto de reformar a sociedade é tornar-se autor intelectual de todos os crimes – e depois, com redobrado cinismo, apagar todas as pistas. A culpa dos intelectuais ativistas na degradação da vida social, na desumanização das relações pessoais, na produção da criminalidade desenfreada é, no seu efeito conjunto, ilimitada e incalculável. É talvez por eles terem se sujado tanto que suas palavras de acusação contra a sociedade têm aquela ressonância profunda e atemorizante que ante a platéia ingênua lhes confere uma aparência de credibilidade. Ninguém fala com mais força e propriedade contra o pecador do que o demônio que o induziu ao pecado. O discurso dos intelectuais ativistas contra a sociedade vem direto do último círculo do inferno.