Mendo Castro Henriques
Euronotícias, 7 de julho de 2000
O leitor desprevenido poderá achar que o título sabe a cerveja, ou algo insípido do género empresarial. Mas não é disso que se trata. O leitor bem informado saberá que Alan Sokal iniciou em 1996 uma polémica que tem vindo a crescer em tudo quanto é revistas, internet, colóquios, e suplementos culturais, porque toca a magna questão de saber onde está a verdade. Bem, o termo verdade é excessivo; é preferível falar de credibilidade intelectual.
A história é conhecida. Em Maio de 1996 Alan Sokal, professor de física na Universidade de New York, publica na ‘Social Text’, revista norte-americana de crítica cultural identificada com a ”esquerda pós-modernista”, um artigo cómico feito a sério no qual afirmava que a ”ciência pós-moderna” abole o “conceito de realidade objectiva” e, assim, sustenta intelectualmente o ”projecto político progressista”. O artigo era uma sanduíche de ciências exactas e sociais e vinha recheado de citações de pseudo-filósofos proeminentes, sobretudo franceses – Derrida, Lyotard, Lacan, Deleuze, e dúzias de outros, entre os quais os editores da revista.
Poucas semanas após a publicação do artigo na “Social Text”, a revista “Lingua Franca”, (edição de maio/junho de 1996) traz um escrito em que Sokal denuncia o seu próprio “texto” e explica os motivos intelectuais e políticos da paródia. O artigo alarmante “Uma Transgressão de Fronteiras: em Direcção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica” (Ufa !!!!!!) era uma experiência que visava “desmistificar a nebulosa pós-modernista” que impede a esquerda de ser verdadeiramente esquerda. Durante o governo sandinista, Sokal ensinou matemática na Universidade Nacional da Nicarágua.
As experiências culturais deste tipo são raras. E a de Sokal desencadeou uma compreensível catadupa de reacções em todo o mundo, por vezes absolutamente opostas. Nos Estados Unidos, os editores de Social Textjuntaram a estultícia ao rídículo ao tentarem justificar o injustificável, em nome do relativismo pós-modernista. Segundo Steven Weinberg, Prémio Nobel de Física, Sokal denunciou para sempre uma tendência fatal da ciência contemporânea (“New York Review of Books”, 8/8/96 e 3/10/96). O caso continua a crescer. No Brasil A Folha de S.Pauloacompanha a polémica fantástica com textos de Roberto Campos, Olavo de Carvalho, Bento Prado Jr. e do próprio Sokal, entre outros. Em França o Le Monde e o Libération não se calam. A internet está povoada de sites dedicados ao tema. E muito apropriadamente, na era da informação pela qual aspiram os nossos governantes, o leitor consulte, por todos, o site de Alan Sokal, em http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/index.html.
O crescendo de reacções e a permanência de materiais por utilizar levou o nosso físico a publicar o livro Les Impostures Scientifiques des Philosophes (Post-)Modernes, juntamente com Jean Bricmont, professor de física na Universidade Católica de Lovaina. Tratava-se uma vez mais de mostrar que intelectuais famosos de esquerda, como Lacan, Kristeva, Irigaray, Baudrillard e Deleuze, abusam da terminologia e de conceitos científicos, quer usando ideias científicas totalmente fora do seu contexto, quer lançando o jargão científico à cara dos leitores não cientistas, sem considerarem a relevância nem o sentido. Na sequência da edição deste livro em França, um observador muito arguto (Carlos Leone in Expresso, Cartaz, 8 de Dezembro, 1997) escreveu que, “para o que interessa aos Portugueses, o drama é que não se leia de todo: nem Sokal, nem os seus adversários, tão pouco os impostores e os seus seguidores“. Não concordo, e interessa ao bem comum dos portugueses explicar porquê.
Por exemplo, na Faculdade de Letras de Lisboa dos anos 70, Foucault, Baudrillard, Deleuze, Lyotard, Kristeva, Derrida, eram autores incontornáveis; revolucionários malditos antes do 25 de Abril, benditos absolvidores depois da revolução. (Fui ver o meu exemplar de Les Mots et les Choses: veio de Paris no Verão de 1973; a Logique du sens, de Deleuze, comprei-a em Lisboa, em Dezembro de 1976). Por outras palavras: Foucault, Baudrillard, Deleuze, Lyotard, Kristeva, Derrida são autores que estão nas mentes (ou nos bolsos tipo EPC) de inúmeros professores de todos os graus de ensino formados nas décadas de 70 e 80.
Quem não cresceu intelectualmente continuará, 20 ou 30 anos depois, a formatar com dejectos culturais as mentes e os corações dos jovens que povoam o sistema educativo. Os telhados de vidro do relativismo cultural. A carapaça de esquerda como desculpa para a indigência mental. (E já agora, a carapaça de direita, também). A arrogância de que tudo é uma questão de linguagem. A promiscuidade entre ex-marxismo e liberalismo actual. A falácia de que a exigência de disciplina impede o cultivo da liberdade… A lista de horrores culturais no sistema educativo poderia continuar. On aurait tout vu. Não há formação que resista. Os pais só pedem que os filhos transitem. Os professores esforçam-se por evitar a retenção. Os miúdos falam com os pés e 40% abandonam antes do 9º ano. Voilà.
Por tudo isto, o caso Sokal é muito relevante para nós, como se apercebeu a editora Gradiva que lançou as Imposturas Intelectuais em 1999. O livro contém capítulos dedicados aos malditos autores pós-modernos – mas também contra Popper – e dois intermezzos, um sobre o «relativismo cognitivo na filosofia das ciências», o outro sobre «a teoria do caos e a ciência pós-moderna». Formalmente, é um pouco como Fukuyama: as teses reflectem uma verdade convencional aceitável dentro de certos limites; ficam cada vez mais inaceitáveis quando se lhes pretende dar um valor superior. Como bem escreveu Carlos Leone, (http://www.uc.pt/ciberkiosk/arquivo/ciberkiosk5/opiniao/sokal.htm) “a argumentação de Imposturas Intelectuais é correcta porque não se exime a uma avaliação das fraquezas próprias de cada participante na discussão“.
Cada um que extraia as suas conclusões. Uma conclusão sóbria e reconfortante para os espíritos mais timoratos é de que Sokal retoma o eterno conflito entre as “duas culturas”, descrito por Edgar Snow. Num país onde o Ministério da Cultura não trata da ciência e onde o Ministério da Ciência e Tecnologia se esforça por ter uma cultura, nunca é de mais lembrar ao cidadão que a literacia tanto consiste em saber ler o orçamento de Estado como um poema de Álvaro de Campos. Lá diz o poeta: “Há é pouca gente para dar por isso“
Uma segunda conclusão, politicamente correcta, para o caldo cultural norte-americano, é a do próprio Sokal ( e que semi-seguidores nacionais como J.C. Espada gostariam de transliterar para português). Segundo ele, o escândalo parece ter efeito no mundo académico, nas humanidades e nas ciências sociais, afinal o alvo da experimentação. No debate voltam a ser escutados os velhos argumentos racionalistas contra o pós-modernismo. Neste sentido, Sokal, que se assume de esquerda, faz trabalho semelhante a Stanley Rosen e Allan Bloom, (o da Cultura Inculta) confessadamente discípulos do conservador Leo Strauss.
Outra conclusão de todo este ataque generalizado ao pós-modernismo é extraída pelos opinion-makers de serviço ao culturalmente correcto. Apresentadas as credenciais de esquerda num país cujo debate público intelectual está retardado, pode-se dar recados moralistas de direita, ou recados anti-globalistas, ou pró-federalistas, muitas vezes encomendados pelos ausentes-presentes da vida política, como demonstrou José Adelino Maltez no anterior artigo desta série.
Mas quem se esquece que Marx se ergueu sobre os escombros do socialismo utópico? Que Gramsci criticou Lenine? Que de uma santa capela para a outra, como lembrou Raymond Aron, cada nova geração do esquerdismo nasceu da proclamação do descrédito da anterior? Como escreveu Olavo de Carvalho, “de cada nova série de vexames, horrores e fracassos, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal“. Neste sentido Sokal executa de novo o velho ritual cíclico em que a esquerda se alimenta da sua própria negação. O seu tiro ao alvo acaba também por o atingir. E o que ressalta mais é a imagem de falsa respeitabilidade da esquerda intelectual como um todo. Contra hipócritas, só há uma arma: a busca da verdade.
O caso Sokal continuará a lançar luz sobre os costumes de uma casta de fazedores de opinião que usam o culturalmente correcto para substituir a busca da verdade. Ajuda a perceber que nem vale a pena criticar os produtos terminais da cultura – como sejam as séries, filmes e novelas de televisão – quando não se fez o trabalho de casa de criticar a indigesta mistura de epistemologia liberal com moralismo acaciano. A arrogância dos relativistas de rua tem contribuído fortemente para o estado de deliquescência em que se encontra a opinião pública. É do bem comum dos portugueses impedir que as milícias moralistas de salão os venham substituir.