Sokal em Portugal

Mendo Castro Henriques

Euronotícias, 7 de julho de 2000

netmendo@mail.telepac.pt

O leitor desprevenido poderá achar que o título sabe a cerveja, ou algo insípido do género empresarial. Mas não é disso que se trata. O leitor bem informado saberá que Alan Sokal iniciou em 1996 uma polémica que tem vindo a crescer em tudo quanto é revistas, internet, colóquios, e suplementos culturais, porque toca a magna questão de saber onde está a verdade. Bem, o termo verdade é excessivo; é preferível falar de credibilidade intelectual.

A história é conhecida. Em Maio de 1996 Alan Sokal, professor de física na Universidade de New York, publica na ‘Social Text’, revista norte-americana de crítica cultural identificada com a ”esquerda pós-modernista”, um artigo cómico feito a sério no qual afirmava que a ”ciência pós-moderna” abole o “conceito de realidade objectiva” e, assim, sustenta intelectualmente o ”projecto político progressista”. O artigo era uma sanduíche de ciências exactas e sociais e vinha recheado de citações de pseudo-filósofos proeminentes, sobretudo franceses – Derrida, Lyotard, Lacan, Deleuze, e dúzias de outros, entre os quais os editores da revista.

Poucas semanas após a publicação do artigo na “Social Text”, a revista “Lingua Franca”, (edição de maio/junho de 1996) traz um escrito em que Sokal denuncia o seu próprio “texto” e explica os motivos intelectuais e políticos da paródia. O artigo alarmante “Uma Transgressão de Fronteiras: em Direcção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica” (Ufa !!!!!!) era uma experiência que visava “desmistificar a nebulosa pós-modernista” que impede a esquerda de ser verdadeiramente esquerda. Durante o governo sandinista, Sokal ensinou matemática na Universidade Nacional da Nicarágua.

As experiências culturais deste tipo são raras. E a de Sokal desencadeou uma compreensível catadupa de reacções em todo o mundo, por vezes absolutamente opostas. Nos Estados Unidos, os editores de Social Textjuntaram a estultícia ao rídículo ao tentarem justificar o injustificável, em nome do relativismo pós-modernista. Segundo Steven Weinberg, Prémio Nobel de Física, Sokal denunciou para sempre uma tendência fatal da ciência contemporânea (“New York Review of Books”, 8/8/96 e 3/10/96). O caso continua a crescer. No Brasil A Folha de S.Pauloacompanha a polémica fantástica com textos de Roberto Campos, Olavo de Carvalho, Bento Prado Jr. e do próprio Sokal, entre outros. Em França o Le Monde e o Libération não se calam. A internet está povoada de sites dedicados ao tema. E muito apropriadamente, na era da informação pela qual aspiram os nossos governantes, o leitor consulte, por todos, o site de Alan Sokal, em http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/index.html.

O crescendo de reacções e a permanência de materiais por utilizar levou o nosso físico a publicar o livro Les Impostures Scientifiques des Philosophes (Post-)Modernes, juntamente com Jean Bricmont, professor de física na Universidade Católica de Lovaina. Tratava-se uma vez mais de mostrar que intelectuais famosos de esquerda, como Lacan, Kristeva, Irigaray, Baudrillard e Deleuze, abusam da terminologia e de conceitos científicos, quer usando ideias científicas totalmente fora do seu contexto, quer lançando o jargão científico à cara dos leitores não cientistas, sem considerarem a relevância nem o sentido. Na sequência da edição deste livro em França, um observador muito arguto (Carlos Leone in Expresso, Cartaz, 8 de Dezembro, 1997) escreveu que, “para o que interessa aos Portugueses, o drama é que não se leia de todo: nem Sokal, nem os seus adversários, tão pouco os impostores e os seus seguidores“. Não concordo, e interessa ao bem comum dos portugueses explicar porquê.

Por exemplo, na Faculdade de Letras de Lisboa dos anos 70, Foucault, Baudrillard, Deleuze, Lyotard, Kristeva, Derrida, eram autores incontornáveis; revolucionários malditos antes do 25 de Abril, benditos absolvidores depois da revolução. (Fui ver o meu exemplar de Les Mots et les Choses: veio de Paris no Verão de 1973; a Logique du sens, de Deleuze, comprei-a em Lisboa, em Dezembro de 1976). Por outras palavras: Foucault, Baudrillard, Deleuze, Lyotard, Kristeva, Derrida são autores que estão nas mentes (ou nos bolsos tipo EPC) de inúmeros professores de todos os graus de ensino formados nas décadas de 70 e 80.

Quem não cresceu intelectualmente continuará, 20 ou 30 anos depois, a formatar com dejectos culturais as mentes e os corações dos jovens que povoam o sistema educativo. Os telhados de vidro do relativismo cultural. A carapaça de esquerda como desculpa para a indigência mental. (E já agora, a carapaça de direita, também). A arrogância de que tudo é uma questão de linguagem. A promiscuidade entre ex-marxismo e liberalismo actual. A falácia de que a exigência de disciplina impede o cultivo da liberdade… A lista de horrores culturais no sistema educativo poderia continuar. On aurait tout vu. Não há formação que resista. Os pais só pedem que os filhos transitem. Os professores esforçam-se por evitar a retenção. Os miúdos falam com os pés e 40% abandonam antes do 9º ano. Voilà.

Por tudo isto, o caso Sokal é muito relevante para nós, como se apercebeu a editora Gradiva que lançou as Imposturas Intelectuais em 1999. O livro contém capítulos dedicados aos malditos autores pós-modernos – mas também contra Popper – e dois intermezzos, um sobre o «relativismo cognitivo na filosofia das ciências», o outro sobre «a teoria do caos e a ciência pós-moderna». Formalmente, é um pouco como Fukuyama: as teses reflectem uma verdade convencional aceitável dentro de certos limites; ficam cada vez mais inaceitáveis quando se lhes pretende dar um valor superior. Como bem escreveu Carlos Leone, (http://www.uc.pt/ciberkiosk/arquivo/ciberkiosk5/opiniao/sokal.htm) “a argumentação de Imposturas Intelectuais é correcta porque não se exime a uma avaliação das fraquezas próprias de cada participante na discussão“.

Cada um que extraia as suas conclusões. Uma conclusão sóbria e reconfortante para os espíritos mais timoratos é de que Sokal retoma o eterno conflito entre as “duas culturas”, descrito por Edgar Snow. Num país onde o Ministério da Cultura não trata da ciência e onde o Ministério da Ciência e Tecnologia se esforça por ter uma cultura, nunca é de mais lembrar ao cidadão que a literacia tanto consiste em saber ler o orçamento de Estado como um poema de Álvaro de Campos. Lá diz o poeta: “Há é pouca gente para dar por isso

Uma segunda conclusão, politicamente correcta, para o caldo cultural norte-americano, é a do próprio Sokal ( e que semi-seguidores nacionais como J.C. Espada gostariam de transliterar para português). Segundo ele, o escândalo parece ter efeito no mundo académico, nas humanidades e nas ciências sociais, afinal o alvo da experimentação. No debate voltam a ser escutados os velhos argumentos racionalistas contra o pós-modernismo. Neste sentido, Sokal, que se assume de esquerda, faz trabalho semelhante a Stanley Rosen e Allan Bloom, (o da Cultura Inculta) confessadamente discípulos do conservador Leo Strauss.

Outra conclusão de todo este ataque generalizado ao pós-modernismo é extraída pelos opinion-makers de serviço ao culturalmente correcto. Apresentadas as credenciais de esquerda num país cujo debate público intelectual está retardado, pode-se dar recados moralistas de direita, ou recados anti-globalistas, ou pró-federalistas, muitas vezes encomendados pelos ausentes-presentes da vida política, como demonstrou José Adelino Maltez no anterior artigo desta série.

Mas quem se esquece que Marx se ergueu sobre os escombros do socialismo utópico? Que Gramsci criticou Lenine? Que de uma santa capela para a outra, como lembrou Raymond Aron, cada nova geração do esquerdismo nasceu da proclamação do descrédito da anterior? Como escreveu Olavo de Carvalho, “de cada nova série de vexames, horrores e fracassos, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal“. Neste sentido Sokal executa de novo o velho ritual cíclico em que a esquerda se alimenta da sua própria negação. O seu tiro ao alvo acaba também por o atingir. E o que ressalta mais é a imagem de falsa respeitabilidade da esquerda intelectual como um todo. Contra hipócritas, só há uma arma: a busca da verdade.

O caso Sokal continuará a lançar luz sobre os costumes de uma casta de fazedores de opinião que usam o culturalmente correcto para substituir a busca da verdade. Ajuda a perceber que nem vale a pena criticar os produtos terminais da cultura – como sejam as séries, filmes e novelas de televisão – quando não se fez o trabalho de casa de criticar a indigesta mistura de epistemologia liberal com moralismo acaciano. A arrogância dos relativistas de rua tem contribuído fortemente para o estado de deliquescência em que se encontra a opinião pública. É do bem comum dos portugueses impedir que as milícias moralistas de salão os venham substituir.

A imitação da filosofia

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, São Paulo, 6 de julho de 2000

Já comentei, no Jornal da Tarde de 13 de maio de 1999, a declaração de d. Marilena Chauí, de que se dedicara a estudar as obras de Spinoza porque, tendo procurado durante a adolescência uma garantia de poder “viver sem culpas”, acabara descobrindo, numa conferência de Bento Prado Jr., uma filosofia que segundo o orador lhe prometia exatamente isso. Mostrei ali a identidade estrita entre a recusa do sentimento de culpa e a abdicação de toda consciência moral.

Porém existe nessa confissão algo ainda mais interessante: a continuidade, tranqüila e sem problemas, que une uma opção de adolescente ao “opus magnum” da catedrática aposentada que a endossa retroativamente.

É assim que se decidem no Brasil as vocações filosóficas: primeiro a mocinha ou mocinho escolhe a opinião que lhe agrada e, quando encontra uma filosofia que a confirme, se dedica pelo resto da vida a demonstrar que se trata de uma filosofia realmente formidável.

Em contraste com a precocidade doutrinária tupiniquim, a vida de quase todo autêntico filósofo que a História registra é marcada por uma passagem crítica, em plena maturidade: virando do avesso aquilo em que acreditara alegremente na juventude, a alma sincera descobre uma face mais real das coisas. A decepção gera a perplexidade e coloca a inteligência na pista das questões decisivas, elididas pelo entusiasmo da fé juvenil. Assim foi na crise antiplatônica de Aristóteles, na descoberta, por Leibniz, da insuficiência do seu ponto de partida cartesiano, na reviravolta antifichteana de Schelling, na autocrítica devastadora com que Edmund Husserl refutou ponto por ponto o psicologismo de sua tese de doutorado.

Separados pelo abismo da crise, os pensamentos do filósofo maduro diferem das opiniões juvenis exatamente como, “mutatis mutandis”, Dom Casmurro difere de A Mão e a Luva. Tudo é uma questão de descer aos infernos, nel mezzo del cammin di nostra vita… Sem essa passagem, não há como discernir entre a filosofia e sua imitação escolar. Sem a autoconsciência conquistada na dor e na perplexidade do autodesmascaramento, uma carreira bem-sucedida de filósofo acadêmico corresponde àquela “vida não examinada” que, segundo Sócrates, é indigna de ser vivida.

Dona Marilena, chegando à culminação de uma longa adolescência intelectual, durante a qual conservou intacta sua virgindade filosófica a ponto de não lhe ocorrer nem mesmo a elementar obrigação de problematizar sua afoitíssima opção de “viver sem culpas”, tem por fim a oportunidade de abandonar as ilusões, precisamente porque, tendo bebido até à saciedade o néctar de uma glória equivocada e falaz, está livre para tentar fazer o que até agora apenas fingiu fazer.

Em raras pessoas, como nela, um genuíno talento cresceu entrelaçado à erva má de uma tão completa leviandade intelectual. Se o talento produziu na mixórdia insensata de “A Nervura do Real” alguns “morceaux de bravoure” – como por exemplo a especulação em torno da arte óptica como modelo inicial do mundo spinoziano –, a leviandade põe tudo a perder quando usa de Spinoza como pretexto legitimador de opções políticas e morais (ou amorais) compradas prontas na juventude e mantidas a salvo de qualquer exame de consciência.

É também a leviandade que a faz, quando acuada pelo crítico que assinala o caráter mistificatório de alguns de seus escritos, fugir do problema e buscar abrigo por trás de insinuações malévolas, imputando a esse crítico uma agenda política secreta e ligações grupais que ele não tem nem poderia ter, como o atestará quem quer que o conheça de perto.

Tudo o que a pretensão juvenil poderia desejar, d. Marilena já conquistou. A suprema satisfação da fatuidade vem com a consagração midiática de um livro que ninguém lê, com a louvação fingida de críticos que, sabendo-se incapazes de julgá-lo por dentro, mas desejando enaltecer-lhe a autora “per fas et per nefas”, se apegam às qualidades que nele enxergam: o tamanho e o tempo requerido para produzi-lo. Quando d. Marilena afirma que o pensamento de hoje toma como realidade primordial a “mercadoria”, isto é falso como generalização, mas estritamente verdadeiro como descrição das reações da crítica nacional ao seu próprio livro. Nunca uma obra foi tão louvada pelo simples fato de sua presença no mercado, sem o mínimo exame do seu conteúdo.

O sacrifício da consciência no altar das aparências alcança aí o seu ponto culminante. Mais não se poderia desejar. Satisfeito o seu apetite de futilidades, d. Marilena pode finalmente dar a seus dons um melhor emprego.

Talvez até comece a filosofar.

Filosofia e literatura: O risco do solilóquio

José Maria e Silva

Opção, Goiânia, 2 de julho de 2000

Literatura e filosofia têm, provavelmente, a idade do homem. Não a tenra idade moderna, datada no homem por Foucault, mas a idade do homem real, descoberto pela antropologia. É pouco provável que o homem de Altamira, exímio demiurgo de bisões rupestres, não fosse também capaz de poetizar o mundo e inquiri-lo. Por isso, quando a Universidade Católica de Goiás propôs-se a realizar o I Colóquio de Filosofia e Literatura, no Auditório do Básico, na Praça Universitária, pareceu que as onze horas de discussão previstas seriam quase nada perto do muito que filósofos, críticos, professores e escritores teriam a dizer sobre esses dois saberes que confluem desde tempos imemoriais. E era de se esperar que a platéia permanecesse atenta até o último minuto de cada conferência, saboreando palavra por palavra, refletindo conceito por conceito. Afinal, discutia-se não só a literatura, mas a filosofia, que, segundo a pensadora uspiana Marilena Chauí, “é o mais útil de todos os saberes”. Em Convite à Filosofia, um best-seller com dezenas de edições, ela afirma que “o primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem é o útil?”. Nada mais justo, portanto, do que aplicar sua máxima a um colóquio que associa a literatura ao “mais útil de todos os saberes”, a filosofia.

Obviamente, não se trata de perguntar se um colóquio do gênero é útil, porque, a se crer em Marilena Chauí, a utilidade é a essência mesma do pensamento filosófico. Trata-se apenas de saber para quem ele foi útil. Mas, à luz do chauísmo, a resposta soa como um paradoxo ” o colóquio não serviu a ninguém. Foi inútil. Ao menos é a impressão que se tem, ante uma platéia que não aplaudia os conferencistas ” agradecia, educadamente, o final das conferências. E as intervenções do público, especialmente no primeiro dia do colóquio, corroboraram ainda mais essa impressão. Quase todos os que pediram a palavra denotaram distanciamento dos assuntos tratados. Uma aluna, que disse ter sonhado com o seminário, tal a sua ansiedade em debater o encontro da literatura com a filosofia, chegou a conceituar ao microfone: “Literatura é amor! Filosofia é amor!” Essa fala tão afetiva pareceu deslocada num colóquio tão douto, mas o deslocamento verdadeiro não foi dela e, sim, dos conferencistas ” fisicamente no Básico da Católica, mas mentalmente no Collège de France.*

Aberto na manhã de 20 de junho, com a palestra do doutor em filosofia José Ternes, da UCG, o evento reuniu professores de várias universidades, entre eles o filósofo Roberto Machado, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de importantes obras sobre Foucault, Nietzsche e Deleuze, Roberto Machado acaba de lançar Foucault, a Filosofia e a Literatura (Jorge Zahar, 2000, 188 páginas). Já Maria Teresinha Martins, autora de Luz e Sombra em Lúcio Cardoso (Editoras da UCG e UFG), sua tese de doutorado, aproximou o escritor mineiro de Deleuze e Blanchot. Deleuze foi retomado por Orlando Bezerra, doutor em filosofia pela UFRJ, enquanto a conferência sobre Jacques Derrida coube ao baiano Evando Batista Nascimento, professor visitante na Universidade Federal do Espírito Santo e autor de Derrida e a Literatura (Editora da UFF, 1999, 364 páginas). Mestrando em filosofia política na UFG, Fábio Ferreira de Almeida falou sobre Bachelard. Luiz Fernando Medeiros, professor na Universidade Federal Fluminense, discorreu sobre a poesia de Armando Freitas Filho. Exceção à francofilia foi a conferência de Maria Aparecida Rodrigues, doutoranda na Umesp, que fez um paralelo entre o existencialismo do alemão Martin Heidegger e as obras de Graciliano Ramos e Clarice Lispector.

Mas a principal ênfase do I Colóquio de Filosofia e Literatura recaiu sobre Michel Foucault. Além das abordagens diretas de Roberto Machado e do mestrando em ciência política na UFG, Dênis Borges Diniz, a obra de Foucault suscitou mais debates, permeando todo o seminário. Sem dúvida, devido ao estranhamento causado por suas idéias a respeito de literatura. Foucault prega a morte do sujeito e, conseqüentemente, a do autor, fazendo com que a relação entre a literatura e a filosofia saia do costumeiro terreno das indagações existenciais para situar-se no arcabouço de um discurso autofundante. Essa a causa primeira da impossibilidade do diálogo entre a especializada plêiade de professores da mesa e a difusa massa de leigos da platéia, pontuada por um e outro professor, mesmo assim, dificilmente capazes de penetrarem tão profundamente ” como o seminário exigia ” na obra de um Foucault, de um Deleuze, de um Derrida. Apenas Foucault, um autor fecundo e desconcertante, por ser diferente até de si mesmo, já bastaria para desnortear o público. Em 1970, ao se candidatar a uma cátedra no legendário Collège de France, Foucault custou a ser compreendido até pelo relator de sua candidatura, Jules Vuillemin. Conta Didier Eribon, em Michel Foucault (Companhia das Letras, 1990), que Foucault saiu batendo a porta do apartamento de Vuillemin, porque Vuillemin continuava achando obscura a noção de enunciados em Arqueologia do Saber, mesmo depois de várias explicações, de viva voz, da parte do próprio Foucault.

O escritor Osman Lins (1924-1978), que antecipou muitas das percucientes críticas do filósofo Olavo de Carvalho às academias, ainda que no seu ambiente específico, as letras, demonstrou, de modo incontestável, o absurdo que é a transposição da última novidade acadêmica européia ou norte-americana para cursos de graduação brasileiros, em que os alunos padecem de um precária formação básica. Ainda que os mestres e doutores que participaram do I Colóquio de Filosofia e Literatura tenham o direito (e até o dever) de comunicar os resultados de suas pesquisas específicas sobre um ou outro autor, o ideal é que adubassem o solo da filosofia geral, antes de plantar a semente de um Derrida ou um Foucault. Isso, provavelmente, evitaria o explícito descompasso entre conferências e intervenções e, sobretudo, entre as conferências e a quase indiferença da maioria do público. Maria Teresinha Martins, observando que os alunos quase nada sabem sobre Lúcio Cardoso, foi a exceção, situando o escritor no contexto geral da literatura brasileira, inclusive com alguns dados biográficos. E Maria Aparecida Rodrigues, pelo próprio tema que abordou, as relações entre Clarice Lispector, Graciliano Ramos e Heidegger, também esteve mais próxima do universo dos alunos. Já Roberto Machado, conciliando profundidade e clareza, a mesma que se encontra em Foucault, a Filosofia e a Literatura, soube ajustar, na medida do possível, o Auditório do Básico ao Collège de France.

Entretanto, não se pode medir a importância de um seminário filosófico com base em sua receptividade junto ao público. Seria levar a sério demais o panfletarismo de Marilena Chauí e transformar a melhor filosofia (geralmente difícil) no pior jornalismo (o de maior audiência). Ao contrário do que pensa a autora de A Nervura do Real (possível mãe de uma nova corrente filosófica, o confusionismo), a filosofia não pode ser “o mais útil de todos os saberes”, pela simples razão de que ela só começa onde outros saberes acabam. A dona de casa sofrida que abraça a teologia carismática tem nela um conhecimento mais utilitário do que todas as filosofias juntas, de Sócrates a Heidegger. Em sua vida de escassas alternativas, o abandono do dogma em favor do conceito haveria de levá-la ao desespero, ao deslindar as causas de seu sofrimento e ver que elas não se assentam no céu mas na terra e que, mesmo assim, é impossível mudá-las. Por isso, o I Colóquio de Filosofia e Literatura foi útil mesmo não estabelecendo uma relação mais profícua com o seu público. Toda vez que departamentos distintos das universidades se abrem ao diálogo interdisciplinar, como propuseram José Ternes, Albertina Vicentini e Goiamérico Felício, os organizadores do colóquio, tanto alunos quanto a própria sociedade beneficiam-se da iniciativa, que contribui para enfraquecer as muralhas quase intransponíveis da especialização.

Pena que a dificuldade do diálogo não se deu apenas entre conferencistas e público. Desacostumada ao debate, a universidade brasileira costuma limitar-se à leitura de autores estrangeiros, posteriormente expostos como quadros estanques de um salão. Em determinados momentos, o I Colóquio de Filosofia e Literatura assemelhou-se a um mural, em que cada conferencista anunciou um quartinho de fundos da filosofia na esperança de dividi-lo com outros sem-tetos do saber. Não que faltasse profundidade aos expositores, mas é que o saber concentrado em ilhas tende a fazer de cada membro da audiência uma garrafa de náufrago num oceano de conhecimentos. Em cada exposição, cápsulas de autores viajavam em universos paralelos, a ponto de não se ter resposta sequer para o próprio tema do seminário ” a confluência entre literatura e filosofia. Ante a pergunta de um dos presentes, que queria saber qual o solo comum entre os dois saberes, o filósofo José Ternes ” que em seu livro Michel Foucault e a Idade do Homem demonstra um medo bíblico de acrescentar qualquer palavra às escrituras sagradas de Foucault ” escapuliu: “Estabelecer regras de encontro é muito perigoso”. Para que, então, realizar-se um colóquio sobre filosofia e literatura senão para tentar dar uma resposta a essa questão? Quando um filósofo recusa a verdade pronta, pode estar abrindo um caminho, mas quando se acomoda na sua negação apriorística, caiu no abismo da ignorância letrada ” a pior forma de perplexidade.

É daí que nasce o solilóquio das especializações, por sinal um paradoxo ” o especialista nega a verdade de sua própria tese para melhor livrá-la do questionamento alheio e poder impô-la como um dogma. É o que faz o especialista em Sartre ouvir o especialista em Foucault falando da morte do sujeito e ficar indiferente (ou o contrário). Numa das tentativas de aproximação entre literatura e filosofia, Maria Teresinha Martins disse que considerava Fernando Pessoa um poeta filosófico. Ora, por que Fernando Pessoa seria um poeta mais filosófico do que outros senão pelos temas que aborda, entre eles a angústia do ser, de significação crucial para o sujeito? Dita entre foucaultianos, a frase de Teresinha Martins deveria soar como uma heresia. Entretanto, José Ternes e Dênis Borges Diniz permaneceram indiferentes a ela, mesmo sendo defensores da visão de Foucault de que a literatura não deve ser pensada sob o prisma de nenhuma teoria da significação. Apenas o escritor Goiamérico Felício, doutor em literatura, foi um pouco mais ousado na tentativa de provocar o debate, primeiro instigando Dênis Diniz a discorrer sobre a inevitável angústia do autor ante a tese que decreta sua morte e, depois (ante a insistência de Diniz em apenas repetir Foucault, afirmando que autor e sujeito morreram), lembrando-lhe que Maurice Blanchot tratara da questão.

Por outro lado, quem assistiu à unção terniana com que Dênis Borges Diniz abordou a literatura em Foucault, deve ter-se espantado ao ouvir de Roberto Machado que, num dado momento, a partir de 1966, Michel Foucault desinteressou-se completamente pela literatura, ainda que ela se mantenha como instrumento importante para a compreensão de sua filosofia, como o próprio Machado procura demonstrar em seu último livro. Por mais que Foucault pense ter matado o sujeito e seus discípulos queiram deificar apenas o seu discurso, é difícil não cobrar do filósofo de carne e osso a responsabilidade ética sobre o que disse em tinta e papel. Como observa Olavo de Carvalho, “a vida do filósofo está para sua filosofia como a jurisprudência está para os códigos”. Aliás, quanto mais se aferram ao discurso de Foucault, negando outros referenciais, mais os foucaultianos caem em contradição. Ao negar o sujeito e sua interação com as coisas, concentrando-se unicamente no discurso, apartados dos homens e do mundo, eles são capazes de falar horas inteiras ou escrever maçudas teses sem recorrer a nenhum outro mortal, senão a Michel Foucault. Com isso, pensam estar sendo fiéis ao mestre e matando o autor, quando na verdade estão criando um Deus ” o sujeito onipresente que nasce do discurso único.

José Maria e Silva

silvajm@uol.com.br