O debate na PUC

Olavo de Carvalho

14 de agosto de 2000

O debate promovido pelo Instituto Mário Alves no dia 11 de agosto na PUC de São Paulo foi um sucesso em toda a linha, malgrado algumas notas destoantes. Transcorrido num ambiente de notável cordialidade, deu aos participantes a oportunidade de confrontar três interpretações da obra de Gilberto Freyre, todas elas bem fundamentadas.

O dr. Jacob Gorender, um dos mais célebres líderes comunistas brasileiros, foi o primeiro a falar, apresentando um resumo das suas objeções à interpretação gilbertiana do Brasil, publicadas pela primeira vez em O Escravismo Colonial (São Paulo, Ática, 1980).

O Escravismo Colonial é uma das melhoras obras que alguém já escreveu sobre esse período histórico. Não hesito em considerá-la tão importante, mutatis mutandis, quanto Casa Grande & Senzala. Gorender aí discute com todos os intérpretes do Brasil-Colônia, diverge de todos e ganha a parada. Prova que a economia colonial não pode ser definida nem como feudal, nem como patriarcal, nem como capitalista, nem muito menos como simples “economia exportadora”, mas que foi um modo de produção original, o escravismo mercantil, baseado inteiramente na mão-de-obra escrava. No hemisfério Ocidental, o Brasil foi assim o país escravista por excelência.

No meu entender, essa tese está ali provada e bem provada. Discordei apenas das objeções que, dela, Gorender deduzia contra a descrição freyreana da sociedade colonial. Gorender alegava que a “instituição fundamental” desse período fora o escravismo, e não a família patriarcal. Objetei que: 1º a busca da “instituição fundamental” da qual se pudessem deduzir todas as outras é uma preocupação legítima dentro do marxismo, mas não tem sentido no método freyreano, essencialmente pluralista e pragmático, alheio a reduções causais. 2º Casa Grande & Senzala não é obra de história econômica e sim de “história das mentalidades”. Mesmo se o pano-de-fundo econômico da sociedade colonial fosse diferente daquele que Freyre imaginava, isso não impugnava e! m na da a descrição que ele fez da psicologia colonial, tão bem documentada e provada quanto a argumentação econômica de Gorender. 3º Se entre duas teses bem provadas parecia haver uma contradição, essa contradição, por um lado, não impugnava nenhuma das duas, porque as descrições eram feitas desde pontos de vista diferentes e não facilmente articuláveis. De outro lado, essa contradição nos colocava um problema histórico dos mais interessantes – como pôde se desenvolver a mentalidade patriarcal, descrita por Freyre, ao lado do escravismo mercantil diagnosticado por Gorender. Longe de fugir desse problema impugnando arbitrariamente uma das duas teses, deveríamos enfrentá-lo e tentar resolvê-lo, pois aí talvez residisse algo de muito importante para a compreensão da história brasileira. Por exemplo, se é fato que o regime dominante foi o escravismo mercantil, também é fato que houve mais miscigenação aqui do que nos outros países escravistas, e, se a miscigenação não pode ser explicada, obviamente, pelo próprio escravismo mercantil, então ela deve ter tido outras causas, que, atuando independentemente da base econômica e até contra ela, produziram o ambiente psicológico descrito em Casa Grande & Senzala. Que causas? Essa questão era um instigante desafio para os cientistas sociais brasileiros.

O deputado Aldo Rebelo falou por último, apresentando uma eloqüente defesa da obra freyreana e atacando com veemência as tentativas de trocar o modelo brasileiro de integração racial – que nessa obra encontra sua auto-expressão e se torna um valor autoconsciente – pelo modelo americano. Como concordo em gênero, número e grau com a posição do deputado, e como tenho argumentado em favor dela em artigos de jornais e revistas, não preciso resumi-la de novo aqui. Por uma feliz coincidência, eu acabava de enviar a Época mais um artigo sobre o assunto, que estava sendo impresso nas oficinas da Editora Globo enquanto conversávamos na PUC e foi para as bancas na manhã do dia 12.

Uma nota destoante foi dada pelo próprio deputado, quando, gratuitamente, afirmou que a Igreja católica negava que negros e índios tivessem alma – uma inverdade, um absurdo e uma impossibilidade pura e simples, pois a Igreja tinha santos negros canonizados desde dez séculos antes da descoberta do Brasil, e quanto aos índios seria cômico um esforço tão grande da parte da Igreja para catequizar criaturas desprovidas de alma, livres, portanto, da possibilidade das penas infernais.

Atruibuo à pura e simples desinformação essa tirada de mau-gosto, que em si não teve importância no contexto da discussão e que não modifica em nada a imagem positiva de Aldo Rebelo, um dos melhores políticos brasileiros, pelo qual tenho o maior respeito e admiração.

Outra nota desafinada veio de militantes negros enragés, um dos quais disse umas coisas sobre Auschwitz que não compreendi absolutamente, e outro que alegou ser a famosa “família brasileira” uma filha, não do casamento, mas do estupro das negras pelos brancos. Como meu filho Luiz, um característico mulato brasileiro, estivesse na platéia, pedi-lhe que se apresentasse e perguntei ao cidadão se o julgava um produto do estupro, sugerindo-lhe que, se não pudesse defender essa tese ali mesmo, na frente do pai do rapaz, tivesse a amabilidade de ficar calado, o que ele fez sem maiores objeções.

Em todo caso, a apresentação que suscitou mais reações foi a do deputado Rebelo, muito incômoda, é claro, para certo tipo de militantes black subsidiados por fundações norte-americanas. Mesmo assim, essas objeções foram tímidas, pelo simples fato de que seria muito difícil alguém impugnar a tese do deputado sem se desmascarar, no ato, como um adepto do imperialismo global. E quem iria querer fazer isso, diante de uma platéia de duzentos brasileiros?

O Instituto Mário Alves está de parabéns pela iniciativa do debate. A situação do mundo é complicada, ninguém pode pretender tê-la compreendido por inteiro, e a única maneira de lançar alguma luz sobre o assunto é falar francamente. Numa época em que tantos vêm tentando bloquear o debate ou transformá-lo numa pura disputa erística a serviço da luta pelo poder, foi uma grande alegria poder conversar com Aldo Rebelo e Jacob Gorender. Por instantes, senti que estávamos de volta a um outro Brasil, aquele Brasil onde enfezados esquerdistas e obstinados conservadores prodiam trocar idéias – porque tinham idéias – sem ódios, temores ou desconfianças caipiras.

Que Cazzo é o Fascismo?, ou: O Homem de Bundas perante a História

O Último dos Desinformatas

Capítulo II

§ 1. Pressupositório

O título “Homem de Bundas” não é de maneira alguma um plágio do “Homem de Visão” instituído pela antiga revista Visão para premiar o vidente do ano. Não é uma homenagem, é um termo científico. Os fósseis de antropóides recebem, tradicionalmente, os nomes dos lugares onde foram descobertos. Há o Homem de Java, porque foi descoberto em Java, o Homem de Pequim, o Homem de Lagoa Santa etc.. Mesmo o Homem de Piltdown, que não foi descoberto em parte alguma, é o Homem de Piltdown porque nesse local o Pe. Teilhard de Chardin encontrou uns ossos de macaco enterrados lá por um engraçadinho anti-evolucionista, que hoje se sabe não ter sido outro senão Sir Arthur Conan Doyle.

Moacir Werneck de Castro, descoberto em estado semifóssil na redação de Bundas, é pois sem dúvida o Homem de Bundas, independentemente da hipótese, aventada por alguns paleontologistas, de que ele seja os restos mortais do macaco Tião.

Assim, no confronto com a História, onde uns entram de pé, outros de quatro, outros rastejando, ele entra de ré, mostrando aquela parte do seu ser onde se realiza a síntese kantiana dos dados sensíveis com as formas a priori, saindo o produto inteligível, em seguida, pelo mesmo canal.

Inteligível, em termos. Há quem recue diante dessa massa obscura e densa, composto hilético-eidético de não se sabe quê com sabe-se lá o quê. Eu, porém, que sou um sujeito frio e insensível, e tendo ademais recebido em meu próprio ser alguns respingos da dita substância, não hesitarei em examiná-la.

§ 2. Supositório

Não vou, desde logo, demonstrar as alterações que o velhinho, no exercício de suas altas funções desinformáticas, introduz no significado do meu texto para fazê-lo dizer o que não disse. É verdade que nisso ele dá o melhor de si, num esforço notável para me fazer parecer muito malvado e para despertar contra mim o ódio e a revolta dos leitores que, não me conhecendo, venham a me julgar só pelo que ele diz. Mas, justamente por ser essa parte a mais significativa da forma mentis do Homem de Bundas, sua análise pode ficar para o fim.

Por enquanto, vou fazer de conta que estou discutindo com um sujeito honesto, com o qual eu não tivesse outras divergências senão de ordem intelectual e científica.

Nesse terreno, diz ele que é absolutamente falsa minha asserção de que a noção corrente do fascismo como ideologia capitalista foi um truque de propaganda inventado por Stálin para apagar a má impressão do pacto germano-soviético.

Transcrevo (grifos meus)

“Na verdade, a fórmula atribuída a Stalin foi fruto de uma análise elaborada pelo movimento comunista internacional no início (e não no fim) da década de 30. É ridículo dizer que ela nasceu para dissipar a má impressão causada pelo pacto de não-agressão germano-soviético, que data de agosto de 1939. Já em 1933, perante o tribunal nazista de Leipzig, onde era acusado do incêndio do Reichstag, Dimitrov enfrentou corajosamente Goering e Goebbels, definindo a ditadura fascista como ‘a ditadura do capital de Thyssen e Krupp’ (os magnatas da indústria do aço alemã.” 

Segundo ele, portanto, errei duplamente, na autoria e na data: a teoria nem foi inventada por Stalin, porque na verdade foi descoberta coletiva do Partido, nem se disseminou no mundo a partir de 1939, porque em 1933 George Dimitrov já sabia dela.

Mas a verdade é precisamente o contrário do que ele diz. Em vez de ser invenção coletiva atribuída retroativamente a Stalin, a teoria aí mencionada foi invenção pessoal de Stalin, assumida retroativamente pelo universal cordão de puxa-sacos que atende pelo nome de Partidão. Ela foi apresentada pela primeira vez pelo próprio Josef Stalin em 1924, pelo menos seis anos antes de que começasse a tal “análise demorada pelo movimento comunista internacional”. A informação está na página 366 do vol. II da biografia de Stalin por Isaac Deutscher (trad. José Laurênio de Melo, Rio, Civilização Brasileira, 1970), que por sua vez a encontrou no vol. VI das Obras Completas do grande guru dos povos, edição russa de 1947-8. O “coletivo” apenas disse amém, como sempre fazia, à palavra do guia, pai e mestre. Em 1933, a coisa já era doutrina oficial do Partido e Dimitrov não fez senão repeti-la.

Acontece que, até a guerra, a visão soviética do fascismo não exerceu influência considerável fora do movimento comunista e do círculo de seus “companheiros de viagem”. Desde a Revolução, a Rússia se fechara tanto ao mundo exterior que, ao planejar-se a invasão do território russo, o próprio serviço secreto do Reich – o mais interessado no assunto, decerto — não tinha a mais vaga idéia do potencial bélico soviético. Foi a guerra que abriu definitivamente a Stalin as páginas da imprensa ocidental e permitiu que sua velha teoria, que de nada lhe servira para sua orientação na prática (veremos adiante), fosse usada, agora, como arma de propaganda.

Mesmo no que diz respeito à origem da teoria como tal, Moacir erra fragorosamente nas datas e na autoria, atribuindo ao “coletivo” do Partidão em 1931 uma idéia pessoal que Stalin já lhe impusera desde 1924. Pretender usar como prova de que ela já estivesse disseminada no mundo ocidental a partir de 1933 o fato de que Dimitrov então a recitasse de cor e salteado é, para dizer o mínimo, viajar na maionese. Pois não consta que Dimitrov àquela altura fosse nenhuma autoridade intelectual para o mundo não-comunista, ao ponto de sua palavra expressar o consenso universal. Ele era um membro do Comitê Central do PCUS, um membro da corriola interna que repetia servilmente o que o mestre mandasse. Depois de sua declaração no Reichstag, muito tempo ainda se passaria antes que a doutrina soviética do fascismo, alardeada aos quatro ventos, se tornasse voz corrente nos países ociden tais – e isto só pôde acontecer, precisamente, quando essa doutrina, já não servindo para mais nada (de vez que a própria guerra já era seu desmentido formal), se rebaixou de diagnóstico estratégico a mera fórmula de propaganda.

Não deixa de ser curioso que Moacir, endossando em substância a teoria stalinista do fascismo, atribua a Stalin, linhas adiante no mesmo artigo, “uma estratégia errada” na luta antifascista. Uai, essa estratégia, que Trotski denunciara de antemão como mãe dos desastres que se seguiriam, baseava-se precisamente no diagnóstico do fascismo como “organização de combate da burguesia” e como “ditadura dos Krupps e dos Thyessen”. Pois Stalin, já em 1924, levado pela lógica implacável dessa premissa, concluiu que a grande burguesia, sendo a mãe do fascismo e do nazismo (que para ele era tudo a mesma coisa), tinha o comando do processo e, usando de Hitlers e Mussolinis a seu bel-prazer, não teria e menor dificuldade para se livrar deles quando se tornassem incômodos, bastando, para isso, recorrer ao outro braço da sua máquina política, então muito mais vigor oso: a socialdemocracia. Logo, concluía Stalin, deduzindo do diagnóstico a estratégia, tudo o que havia a fazer era combater a socialdemocracia. Ora, o que veio a acontecer foi precisamente o contrário: o nazismo passou como um trator por cima da socialdemocracia e da grande burguesia, mostrando que tinha gasolina própria.

Que é que Stalin fez então? Com a maior sem-cerimônia inverteu sua estratégia: aliou-se à grande burguesia do Ocidente para esmagar o nazismo. Era, embora tardia, a coisa certa. Mas, se na constituição do fascismo predominasse realmente o fator “classe” em vez do fator “nação”, essa aliança seria inconcebível: por que a grande burguesia que dominava a Inglaterra, a França e os EUA iria se aliar a seus inimigos proletários para combater os nazistas, em teoria seus amigos e servidores? Resposta: a teoria estava simplesmente errada. O próprio Stalin reconheceu isso implicitamente ao mudar de estratégia. A ruína da estratégia era a ruína da teoria que a embasava. Se justamente a partir daí essa teoria se impregnou na mente dos intelectuais de esquerda ocidentais a ponto de eles a repetirem como verdade de evangelho e de até hoje um bocó de mola como o Homem de Bundas acreditar nela, que outra explicação isso pode ter senão que o líder soviético achou que, imprestável como guiamento prático das ações, ela ainda podia render alguns dividendos na área da publicidade? Lembro-me de ter lido, anos atrás, uma tese universitária, de ilustre autor comunista brasileiro, que diagnosticava até o nosso fascismo doméstico, o integralismo, como fenômeno do “capitalismo hipertardio” – o que bem mostra a que tipo de contorcionismo mental a intelectualidade esquerdista pode se submeter só para ser fiel à tradição: o único meio de explicar o integralismo pela teoria de Stalin era tornar “hipertardio” o nosso capitalismo que, na época considerada, mal acabara de nascer…

Trotski opôs veemente resistência, desde o começo, à teoria de Stalin, mas quem iria dar ouvidos a Trotski? Ele bem percebeu o potencial totalitário do nazismo, advertindo que burgueses e socialdemocratas não conseguiriam detê-lo. Mas é evidente que não há nenhuma conexão lógica entre essa acertadíssima observação e a teoria marxista da luta de classes. Um nazismo com força própria, incapaz de ser controlado pela grande burguesia, não podia ser explicado a partir do esquema marxista clássico, do qual, ao contrário, a teoria de Stalin é que constituía a aplicação lógica mais ortodoxa. Para explicar a força do nazismo, teria sido preciso ver nele um movimento da classe média, de intelectuais frustrados e de funcionários públicos, isto é, um movimento composto substancialmente das mesmas classes que fizeram todas as revoluções neste mundo, inclusive a própria revolução russa. Mas a tanto não chegava a lucidez de Trotski. Do ponto de vista estritamente marxista, a teoria de Stalin parecia a mais correta. Entre uma observação verdadeira sem base marxista suficiente e uma teoria falsa com ampla base marxista, todo mundo escolheu a segunda.

Desmoralizada pela ascensão avassaladora do nazismo, desmoralizada pela mudança estratégica de Stalin à entrada da guerra, desmoralizada pela aliança dos comunistas com a grande burguesia ocidental, a teoria stalinista do fascismo ainda tem adeptos fiéis neste mundo. As universidades brasileiras estão repletas deles. Mas nenhum deu a ela o destino que merecia. Só o Moacir teve a coragem para tanto: pois o melhor a fazer com essa teoria era mesmo metê-la na Bundas.

3. Pós-supositório

Moacir diz também que os comunistas “sempre estiveram na linha de frente da luta contra o fascismo”. Mais conversa mole. A famosa campanha antifascista lançada no início da década de 30 sob a direção de Karl Radek foi apenas um truque para jogar areia nos olhos dos antifascistas ocidentais, para que não percebessem a colaboração secreta, então cada vez mais intensa, entre a URSS e a Alemanha nazista, colaboração da qual o próprio Radek, em carta confidencial a um amigo, confessava: “O que escrevo (contra o fascismo) é uma coisa. As realidades são coisa completamente diferente. Ninguém pode nos dar o que a Alemanha tem dado… Só idiotas podem imaginar que vamos romper com a Alemanha” (1).

Além desse objetivo diversionista, a campanha ainda teve duas outras finalidades: cooptar “companheiros de viagem” para o Partido entre os intelectuais ocidentais e infiltrar espiões nos governos dos países aliados. Os dois objetivos foram alcançados com grande sucesso. No campo da espionagem, lançaram-se então as sementes que explodiriam décadas depois nos escândalos Philby e Alger Hiss. Quanto ao recrutamento, não se deve confundir “companheiros de viagem” com meros simpatizantes. Estes são amigos ocasionais, aqueles são colaboradores recrutados, que não se inscrevem no Partido, conservam sua identidade pública de intelectuais independentes, para dar autoridade moral a seus pronunciamentos em favor do comunismo, e ao mesmo tempo, em segredo, são controlados e vigiados pelo serviço secreto comunista. Os mais conhecidos “intelectuais progressistas” das décadas de 30 e 40, como Ernest Hemingway, John dos Passos, Sinclair Lewis, Romain Rolland, serviram ao comunismo nessas condições. O esquema montado para conservá-los sob o controle do Partido incluía desde subvenções em dinheiro, com a permanente ameaça de divulgação, até arranjos para envolvê-los em casos amorosos com espiãs soviéticas. O articulador de todas essas operações era Willi Münzenberg. Um de seus auxiliares imediatos foi Arthur Koestler, que depois se rebelou contra o comunismo, tornando-se alvo de violentas campanhas de publicidade pelo resto de sua vida. André Gide, um dos “companheiros” cooptados, deu para trás e escreveu uim livro contra a URSS. John dos Passos fez a mesma coisa. Mas ninguém teve a coragem de contar toda a história, até que a viúva de Münzenberg, Babette Gross, já velhinha, decidiu botar a boca no mundo.

Tanto os espiões quanto os “companheiros” agiram exclusivamente no terreno das democracias ocidentais, trabalhando contra os governos de seus próprios países e não contra a Alemanha. Quando, acidentalmente, faziam algo contra o nazismo, era sempre de forma a beneficiar a União Soviética e não os Aliados ocidentais, como por exemplo quando Ludwig Wittgenstein, tendo decifrado uns códigos navais alemães, os passou ao governo da URSS e não ao da Ingleterra que lhe dera abrigo, proteção e honrarias. (2)

Enquanto isso, os soviéticos faziam grandes negócios com a Alemanha e continuavam iludindo o público com seu verbalismo antifascista, do mesmo modo que Hitler, ao passo que perseguia os comunistas alemães (que Stálin lhe entregara de mão-beijada), tomava o máximo cuidado para não desagradar a URSS em nada. O cúmulo da duplicidade ocorreu na guerra da Espanha, quando a URSS, posando de antifascista em todo o mundo e recrutando voluntários para as Brigadas Internacionais, ao mesmo tempo boicotava as tropas republicanas no front e facilitava, por todos os meios, a vitória franquista. (3)

O julgamento de Dimitrov em Leipzig pelo incêndio do Reichstag foi outra farsa, bem encaixada no objetivo maior da “campanha antifascista”. Em pleno dia, Dimitrov, um agitador procurado em toda a Europa, entrou com seus dois assessores Popov e Tanev num restaurante que era um dos mais famosos pontos de encontro de militantes nazistas e simplesmente ficou sentado, à espera de que o prendessem. No julgamento, deu seu showzinho verbal, ecoado até às nuvens pela campanha no resto da Europa, e em seguida ele e seus ajudantes voltaram à URSS sem maiores problemas. Dimitrov continuou seu trabalho normal no movimento comunista, enquanto Popov e Tanev, que sabiam demais sobre o julgamento de Leipzig, foram mandados para o Gulag e desapareceram.

Notas

  1. Cit. em Stephen Koch, Double Lives. Spies and Writers iin the Secret Soviet War of Ideas Against the West, New Yorkm The Free Press, 1994, p. 54.
  2. V. Richard Kimberly, Wittgenstein e Hitler.
  3. V. George Orwell, Hommage to Catalonia.

Não perca:

Capítulo 1: O último dos desinformatas

Capítulo 3: Pensando com Bundas

A oportunidade dos liberais

Olavo de Carvalho

Zero Hora (Porto Alegre), 13 de agosto de 2000

A esquerda tornou-se hegemônica porque sabe para onde quer ir e sabe fazer as pessoas pensarem que, ajudando-a a chegar lá, estão indo para onde elas próprias querem. A direita só sabe o que não quer e, mesmo quando luta pelos mais óbvios interesses do povo, dá a impressão de estar agindo no interesse próprio. Isto acontece porque ela própria está enfeitiçada pelo discurso esquerdista e, quando abre a boca para se defender, só sabe repetir palavras que a acusam.

Todo comunista sabe que, no vocabulário da sua ideologia, a expressão “luta pela democracia” tem um significado específico, bem diferente do que tem na linguagem corrente: designa uma etapa do processo revolucionário, a ser superada imediatamente após sua consecução e transformada o mais rápido possível em comunismo explícito. Mas, precisamente, as outras pessoas não sabem disso — e, quando se aliam aos comunistas no combate por um objetivo qualquer, por exemplo “direitos civis”, não fazem a mínima idéia de que seus esforços para a obtenção dessa meta específica já foram enquadrados na estratégia mais vasta de seus aliados, à qual acabarão servindo sem perceber.

Por isso mesmo, na luta pela redemocratização do Brasil, o retorno à normalidade democrática foi apenas uma parte dos objetivos alcançados — a parte menor e secundária. A maior e principal foi a hegemonia comunista do processo. Pelos frutos os conhecereis: hoje a esquerda detém não somente noventa por cento do eleitorado nos grandes centros, mas domina a máquina de denúncias e investigações com que destrói, com provas ou sem provas, a reputação de quem a incomode. Em resultado, a guerra contra a corrupção não diminuiu a corrupção em nada, mas fez subir até às nuvens o poder de manipulação esquerdista da opinião pública. Do mesmo modo, campanhas sentimentalóides contra a miséria — feitas com o único propósito de absorver na estratégia esquerdista o aparato nacional de assistência social — não atenuaram em nada a pobreza, mas abriram perspectivas deliciosamente ilimitadas para a dominação moral das consciências pelo “establishment” esquerdista. Pelos frutos os conhecereis.

Para fazer face ao assalto esquerdista generalizado, a direita liberal não conta senão com um recurso ideológico específico e limitado: a apologia da economia de mercado. Os liberais são tão eficientes e valorosos na luta por esse item único quanto são omissos e indefesos em tudo o mais. Ante o avanço simultâneo do adversário em todas as frentes, apegam-se à defesa de uma cidade, de um bairro, de um edifício, com o desespero de quem deu a guerra por perdida e já não deseja salvar senão esse último símbolo da sua honra guerreira.

Para complicar, a insistência exclusiva nesse item joga os liberais contra outras correntes de opinião que, sendo tão anticomunistas quanto eles, identificam liberalismo com dominação globalista e olham com temor e desconfiança a possibilidade de maior ingerência estrangeira nos assuntos nacionais. Entre o comunismo que abominam e o neoliberalismo que temem, essas correntes estão hoje isoladas e sem ação. Como nelas há muitos militares, os comunistas já perceberam sua importância vital e fazem esforços diuturnos para conquistá-las. Mas não o conseguiram ainda. Para os liberais ganharem a simpatia delas, basta que saibam distinguir entre o autêntico liberalismo que defendem e a fraude do “neoliberalismo” imperialista, intenvencionista (e, no fundo, socialista) dos srs. Clinton e Blair. O “establishment” globalista mundial está hoje francamente à esquerda. Essa é a melhor oportunidade para um diálogo entre liberais e nacionalistas, de modo a impedir que estes acabem colaborando, por falta de opção, com o velho jogo stalinista de vender o comunismo com embalagem de nacionalismo.

Eu seria o último a desejar a extinção da esquerda ou a sua redução à completa impotência. Já vi esse filme e não gostei. É preciso que exista uma esquerda, que exista uma direita, que ambas consintam em jogar o jogo democrático do rodízio eleitoral e que ninguém se utilize da democracia como meio provisório de chegar a… alguma outra coisa. Não tem sentido falar em estabilidade democrática e ao mesmo tempo fazer da democracia um trampolim para outro tipo de regime, sobretudo para aquele que, eufemisticamente, se autodenomina “democracia popular”. O que não pode continuar é essa situação aberrante em que só um dos lados fala, só um dos lados acusa, só um dos lados faz e acontece e, ao mesmo tempo, esse mesmo lado se queixa e se faz de coitadinho, choramingando contra o “discurso único”, como se o único discurso em circulação, fora do estreito círculo dos profissionais da economia, não fosse o dele próprio.

Independentemente de decidir se no Brasil do futuro cada um de nós ficará com a direita, com a esquerda ou fora de ambas, fortalecer a direita liberal é hoje o dever número um de quem, tendo conhecido a ditadura neste país ou em qualquer outro, sabe quanto vale a democracia.