Libertinos e opressores

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 17 de agosto de 2000

Com razão imputa-se a todo autor de escritos anti-semitas uma responsabilidade moral pelo massacre dos judeus na Alemanha nazista. Mas há uma obstinada recusa de perceber idêntica relação de causa e efeito entre a maciça propaganda anticristã dos três últimos séculos e as ondas de perseguição religiosa que, entre as revoluções francesa, mexicana, espanhola, russa e chinesa mataram, segundo o mais comedido dos cálculos, 20 milhões de cristãos. Essa cegueira intencional é tanto mais indesculpável quando se sabe que, em vez de haver no caso uma simples confluência acidental das palavras de uns e dos atos de outros, os ataques verbais e a violência física partiram sempre da mesma fonte: as lideranças revolucionárias que pretenderam, nas palavras de Lenin, “varrer o cristianismo da face da terra”.

É evidente que o efeito acumulado de acusações, assaltos polêmicos, reportagens histéricas, sátiras e chacotas, romances, peças e filmes de escândalo apaga os traços humanos do rosto da sua vítima, transformando-a numa coisa entre desprezível e monstruosa, ao mesmo tempo que dessensibiliza o público, preparando-o para aceitar como normais e corriqueiras as crueldades que venham a se fazer contra ela.

A mais grotesca e perversa forma de propaganda anticristã é a exploração da curiosidade adolescente em torno da vida sexual de padres e freiras. É natural que a imaginação fantasiosa de um jovem tímido, ardente de desejos insatisfeitos, faça das pessoas submetidas ao voto de castidade um símbolo ampliado de sua própria frustração, e as conceba como bacantes encarceradas, a gemer e espumar de luxúria entre as correntes. É natural que o imbecil juvenil imagine um bordel nos porões de cada claustro, e não possa pensar em freiras sem ser sacudido por violentas ereções. Mas a era moderna fez disso um gênero literário, uma tradição artística, que de Diderot, Sade e Laclos até o cinema de Buñuel e Kawalerowicz adornou de pretextos chiques uma concepção pueril e analfabeta da vida religiosa.

Daí nasce a hipocrisia que, fazendo-se de defensora da liberdade, apresenta os religiosos como vítimas de repressão injusta e brutal, como se a vida monástica lhes fosse penalidade imposta à força e não vocação que, antes de traduzir-se em compromisso, deve passar por toda sorte de testes e barreiras dissuasórias.

IstoÉ acaba de entrar para a biblioteca da subliteratura erótico-monástica, com um número especial de “sex lib” anticlerical suscitado pela edição do livro autobiográfico Outros Hábitos (Editora Garamond), de Anna França, uma ex-religiosa em cujo cabedal de experiências espirituais se destaca um caso de amor lésbico com a então superiora do seu convento.

A revista não esconde sua simpatia por dona Anna, chamando-a “destemida”, como se fosse preciso destemor para desafiar, com respaldo da mídia, da moda, do Estado e de todos os bem-pensantes, uma Igreja que já não pode se defender senão pelas folhas de jornalecos de paróquia…

Todo o enfoque da coisa é, aí, mais que perverso: é inverso. Mas a inversão não está só na atitude geral, e sim no conteúdo mesmo dos fatos apresentados. Dona Anna conta que no convento havia casaisinhos de namoradas bem à mostra, porém jamais reprimidos porque a sapatão-em-chefe era afinal a autoridade reinante, a quem ninguém ousaria contrariar, além de ser pessoa de posses cujas doações calavam muitas consciências. Só que, após narrar esses fatos que falam por si, dona Anna quer que digam o contrário do que dizem. Apresenta-os como uma denúncia contra a Igreja, quando a Igreja é, no caso, manifestamente a vítima da prepotência e do oportunismo de uma lésbica que se infiltra nela para aproveitar-se da autoridade da instituição e usá-la para a satisfação egoísta de desejos pessoais sobrepostos ao dever, como professores se aproveitam de seus alunos, sargentos de seus recrutas, patrões de seus empregados. Casos como esses não são incomuns. Serão argumentos contra a moral conservadora? Ou contra o autoritarismo onipotente de libertinos que, a refrear um pouco seus desejos, prefeririam ver perecer meia humanidade? Contem o número de mortos das revoluções insufladas por esses libertinos e digam-me quem, nessa epopéia hedionda, é o oprimido, quem o opressor. Ou, para simplificar, digam-me apenas o que IstoÉ e o resto da mídia fariam com a Igreja se, em vez de deixar aquela madre instalar no convento sua ilha particular das Amazonas, ela punisse com a expulsão sua conduta imoral.

Cem Anos de Gilberto Freyre

Um homem que entendeu o Brasil

15 de agosto de 2000

Aldo Rebelo
Deputado Federal por São Paulo (PC do B)

dep.aldorebelo@camara.gov.br

Agradeço ao deputado Rebelo a permissão para reproduzir este seu brilhante ensaio publicado na revista Princípios de julho de 2000, no qual, conforme já assinalei no meu relato do nosso debate na PUC, o detalhe da informação errônea sobre a Igreja e os índios, logo no começo, em nada modifica o sentido do conjunto. — O. de C.

Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado

Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado

(Paulinho da Viola)

Era o ano de 1933, da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. O pintor fracassado iniciava sua escalada pelo estabelecimento da supremacia da raça ariana, destinada a limpar o mundo das impurezas do sangue e da alma. Os eslavos, por exemplo, duplamente contaminados na Rússia, pelo sangue e pelo bolchevismo contra o qual o führer se tomara de ódio.

A depressão econômica mundial desdobrava-se em depressão do espírito diante do êxito inicial da empreitada nazista. A influência do Terceiro Reich não tardaria em espalhar modelos, cópias e versões em toda a extensão do planeta. Com mais ou menos sucesso o modelo alemão arregimentava simpatias para estigmatizar o ferrão ariano no resto e no rosto da humanidade, sustentando a superioridade de um raça sobre outra.

O Brasil tateava em busca de suas identidades. Identidade de povo e identidade de nação. O embaixador inglês chegou a registrar por esse tempo que tínhamos mais orgulho em ser reconhecidos como pernambucanos, mineiros ou gaúchos do que propriamente por brasileiros. Quem sabe esse regionalismo desprovido de nacionalidade apenas refletisse a dificuldade no reconhecimento da segunda identidade, a de povo, ou de povos, de que são compostas as nações.

Para alguns, éramos um caso quase perdido. Não tivéramos a fortuna da colonização inglesa, holandesa ou francesa. Descendíamos do pior europeu, o português, e do pior português, o degredado, criminoso, sifilítico. Escória da Europa e do seu próprio país. Escória da escória, portanto.

E como para demonstrar seu estágio de degradação na escala genética e moral, aqui o português misturou-se ao índio, etapa indefinida entre bicho e gente, a quem a Igreja muito demorou em reconhecer a existência de alma. Ao deformado português o índio acrescentara sua preguiça, aversão ao trabalho, indisciplina e outros trejeitos mórbidos.

A situação perdia-se de vez com a incorporação do africano, cuja inferioridade e inadaptabilidade para a civilização e o progresso, o antropólogo baiano Nina Rodrigues tentara provar “cientificamente”. O nosso caso era feio, na observação mordaz de Darcy Ribeiro. A apreciação negativa não escapava ao senso comum, reduzia a estima individual e coletiva, embotava nossas esperanças de desenvolvimento material e espiritual.

Joaquim Murtinho, o ministro da Fazenda do presidente Campos Sales, ao explicar sua política econômica, tão parecida com a atual e tão elogiada pelos governantes de hoje, não se escusou em dizer: “Não podemos tomar os Estados Unidos da América como tipo por não termos as aptidões superiores de sua raça, força que representa o papel principal no seu progresso industrial”.

Vale a pena transcrever o comentário de Gilberto Freyre em Homens, engenharias e rumos sociais a propósito da afirmação de Murtinho:

“Era o brasileiro a sentir-se incapaz de vir a afirmar-se nação moderna – tipo de nação, para Murtinho, idealmente caracterizado pelos Estados Unidos – pelo fato – pode-se sociologicamente caracterizar – de estar situado em espaço tropical e de ser de raça inferior à dos anglo-saxões. O trópico e a raça considerados vilões.

“Entretanto, quem recuasse dois séculos – a concepção de tempo tríbio que nos facilite tal mobilidade – se depararia com o Nordeste do Brasil – nisto continuando os bandeirantes ou os paulistas – desmentindo estes dois mitos. Primeiro, pelo fato de vir, desde o século XVI – o século em que o bandeirante começou a ser uma afirmação da capacidade do brasileiro para tornar-se nação – construindo, além de uma economia, uma civilização, que despertaria no mesmo século e no seguinte, cobiças de europeus nórdicos que tentariam incorporá-las aos seus impérios. Segundo, por ter a gente ela própria já biologicamente tríbia do nordeste – branca, ameríndia, negra – demonstrado ser gente, além de vigorosa, consciente de sua pré-brasileiridade, pela maneira com que repeliu franceses e holandeses. Pelo modo por que escreveu a sangue, nas batalhas dos montes Guararapes, o endereço certo do Brasil: uma nação só e não duas ou três. Uma nação e não outra e imensa Java com uma minoria de nórdicos dominando do alto, maltratando do alto, multidões de gentes tropicalmente morenas”.

Murtinho expressava o pensamento vigente na república oligárquica dos fazendeiros de São Paulo, tal como hoje a depreciação do povo e do país espelha a mesma ilusão no capitalismo anglo-saxão na sua forma neoliberal. Para trás ficara a promessa de república mestiça e de esperança democratizadora encarnada por Floriano Peixoto, ele próprio caboclo nordestino, como gostava de se reconhecer, e nesta condição exaltado por intelectuais republicanos e progressistas como Raul Pompéia e Artur Azevedo.

O desconforto com as cores do Brasil era tamanho que, a partir das doutrinas sobre a inferioridade biológica de negros e índios, esposadas por Nina Rodrigues, pelos influentes críticos Silvio Romero e José Veríssimo e pelo sociólogo Oliveira Viana, a elite do país acreditava que a mestiçagem condenava o Brasil ao fracasso.

A nenhum deles foi possível safar-se do pessimismo da encruzilhada de raças que nos fizera população mas nos negara fisionomia e identidade de povo. Os mais otimistas fundavam suas esperanças na possibilidade do embranquecimento, espécie de conspiração que levasse para a clandestinidade da pele o que já estava irremediavelmente presente no sangue.

Casa-Grande & Senzala saiu, em 1933, nesse ambiente de treva que nublava a ciência social. A Revolução de 30 empreendia uma etapa modernizadora do Brasil, abrindo caminho para novas idéias e debates sobre a formação e a identidade do povo brasileiro, mas ainda sobreviviam discursos conservadores, quase niilistas, que nos degradavam como nação. Fazia dois anos que Paulo Prado publicara Retrato do Brasil, uma visão pessimista, típica da oligarquia cafeeira paulista, na qual o autor sustenta a impagável tese de que o povo brasileiro é triste. Fazia um ano, ainda, que viera à luz outro tiro editorial desferido contra a auto-estima nacional, Raça e Assimilação, de Oliveira Viana, em que defendia a impossibilidade da miscigenação e dizia acreditar na progressiva arianização do povo brasileiro.

E tal tendência estava em curso – por razões econômicas e sociais. De 1872 a 1940, segundo dados de José Honório Rodrigues, houve um embranquecimento da população. Os brancos catalogados pelo censo passaram de um para dois terços – em parte por causa da imigração, mas, principalmente, em virtude da sua taxa maior de sobrevivência, em contraste com o alto índice de mortalidade dos não-brancos pobres.

Até mesmo o grande Euclides da Cunha soçobrou na armadilha da dualidade de julgamento ao deparar com o sertanejo, ora “um forte”, “herói nacional”, ora uma anomalia do cruzamento de raças, perdido entre a civilização e a barbárie. Justo Euclides, que revelara o Brasil ao Brasil, ao publicar, em 1909, o épico Os Sertões, e se deixara levar pelo erro de negar a importância e a qualidade da mestiçagem, erro cometido, segundo Gilberto Freyre, nas “páginas mais acres de pessimismo sobre os povos híbridos”.

O escritor pernambucano rompeu com este mito e valorizou sobremaneira a importância do índio e do negro na formação do povo brasileiro. Anos mais tarde, um de seus maiores admiradores, que é também um dos mais audaciosos intérpretes do Brasil, Darcy Ribeiro, sentenciou: “Mestiço é que é bom” – até porque a mistura de raças é a mais eficaz arma de combate ao racismo.

Gilberto Freyre surge aí com a temeridade dos heróis e a pureza dos santos, justamente ele, antípoda de santo e de herói, para tornar exaltação o que era lamento; em virtude, o defeito; em harmonia a deformidade; em promessa a negação; em orgulho a ser ostentado o que a vergonha ordenava ocultar. De uma massa de população majoritariamente mestiça Freyre erigiu um povo. O triste trópico, vira uma nação alegre e inventiva, e de ambos surge uma civilização arrojada, promessa, por si só, de dias melhores.

A leitura de Casa-grande & senzala não tem só o impacto de uma revelação científica. Envolve o Brasil como uma profecia, tal sua força de convencimento, hipnotiza pelo estilo a um só tempo simples e grandioso como um cenário amazônico.

Gilberto Freyre redescobre o português, esquadrinha as virtudes que fizeram dele o povo apto a empreender as grandes navegações e descobertas, capaz de recolher do conhecimento mais avançado da época a técnica necessária para desafiar o desconhecido. A ousadia e a tenacidade exigidas para a empreitada retiraram os lusitanos da própria alma provada na resistência ao domínio árabe e as pretensões dos vizinhos ao seu território. Porta da Europa para o Mediterrâneo e o Atlântico, estavam os portugueses amolecidos, para dizer com Gilberto Freyre, na sua cultura, hábitos e religião, pela convivência principalmente com os povos africanos e muçulmanos. Não detinham apenas os meios materiais para a tarefa, estavam espiritualmente preparados para ela. Os apelos do velhinho do restelo perderam-se nas águas silenciosas do Tejo quando nossos antepassados partiram para a grande aventura.

“O certo – diz o sociólogo – é que os portugueses triunfaram onde outros povos falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência. Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez de se retardarem como nas possessões tropicais de ingleses, franceses e holandeses.”

Ao celebrarmos os 500 anos deste grande país, bem maior e generoso que certas comemorações mais voltadas para os defeitos que para as qualidades, podemos nos valer de antigas respostas de Gilberto Freyre para falsas questões que teimam em parecer novas. Ainda há quem ache que melhor estaria o Brasil se tivesse sido colonizado pelos holandeses, por príncipes flamengos letrados e aristocráticos, em vez de portugueses analfabetos e promíscuos, por “Van isto um Van aquilo”, em vez de Joaquins e Manuéis. Ele respondeu:

“Provavelmente isto: em vez de um Brasil que, com todas essas suas dificuldades, os seus problemas, os seus fracassos, é um Brasil onde ser negro não é opróbrio, onde ser mulato não é vergonha, onde ser pobre não é desonra onde tocar viola de papo para o ar não é indignidade, seria uma Java americana, mais rica, mais progressista, mais produtora de café ou de cacau que o Brasil de hoje, porém dominada por alguns daqueles preconceitos que tantos dos norte-europeus mais pan-econômicos e pancaucásicos levaram para o Oriente…”

E continuava a defender a gênese lusitana:

“Pois é quase certo que aqui brancos e gente de cor não seriam – tivessem os holandeses se apoderado de parte do Brasil – com todos esses triunfos materiais, um só povo, porém dois: uns brancos, outros de cor; uma casta tida por abençoada por Deus, como ensinou Calvino, por ser rica, e os pobres, por serem pobres, havidos de acordo com o mesmo ensino, por subhomens, por subgente, por enjeitados do próprio Deus…”

Apesar do elogio ao engenho e à arte portuguesas, não é o colonizador branco e sim o negro que domina Casa-grande & senzala. Pelas mãos de Gilberto Freyre o escravo africano transforma-se no alicerce em que se fundamenta a sociedade brasileira, artífice de nossa civilização. Na construção material da colônia e depois da monarquia, na miscigenação da população que aqui vai se formando, Freyre vai revelando página por página, não só em Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, e em outros ensaios, a presença africana não apenas no sangue, na cor da pele, no vocabulário, na pronúncia que abrasileirou o português, na música, no futebol, na cultura em geral, na expressão estética, no predomínio das formas e das cores, na psicologia, na beleza e graça da mulher brasileira, mesmo as mais louras de olhos verdes e azuis que não deixam de demonstrar na leveza e na feminilidade a influência da mulher africana entre nós.

Não haveria – esta é a conclusão a que chegamos após a leitura de Gilberto Freyre – esta expressão de brasileiro, singular, própria, distinta da de outros povos que conhecemos, sem a profunda influência do negro na nossa formação. Influência que o africano impregnou quando espalhou seu sangue pelo de outras raças que aqui encontrou, e mais do que isso no que incorporou de técnica, de valores para fazer de nós brasileiros detentores de patrimônio genético e cultural mais humano porque resultado de maior combinação humanamente possível.

Ainda assim, tanto vigor metodológico e descritivo não impediu que críticos desavisados atribuissem a Gilberto Freyre a construção de um paraíso racial fictício que ele jamais mencionou. Como empenhou-se em demonstrar o antropólogo Hermano Vianna, Freyre não usa a expressão democracia racial uma vez sequer em Casa-grande & senzala. Também não edulcorou a escravidão, ao contrário do que afirmam alguns de seus críticos. Casa Grande & Senzala, aliás, começa com uma descrição de barbaridades cometidas pelos senhores contra os escravos, como “queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas”.

Cenas da violência escravista que bem poderiam constar da descrição de “Tanto horror perante os céus”  que Castro Alves faz nos versos de Navio Negreiro.

É do índio que Gilberto Freyre retira outra pilastra fundamental para erguer o edifício da formação do povo brasileiro. A mulher índia surge de sua obra como uma espécie de mãe e madrinha do Brasil. Não apenas a que pariu, conforme aprova recente pesquisa divulgada por geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais, mas a que criou, educou, transmitiu valores e crenças, deixou sua marca em traços permanentes da personalidade, dos hábitos, da psicologia, da culinária e das formas próprias que têm os brasileiros de expressar sua religiosidade.

O hábito do banho diário, a rede, uma certa predileção popular pela cor vermelha, tão visível no interior do nordeste nas festas de cavalhada e pastoril. A valorização do remédio caseiro, das plantas, das rezas, a aversão dos brasileiros a rigidez e, portanto as ditaduras. São essas remotas avós indígenas, para usar a expressão de Freyre, responsáveis, pelo menos em parte, por uma certa intuição libertária do caráter do brasileiro.

Gilberto Freyre não foi navegador. Antes foi cartógrafo. Os caminhos que traçou permite-nos ir onde ele não alcançou, não quis, ou não desejou chegar. Identificou nossa árvore genealógica de povo, não apenas genética mas cultural, comportamental, psicológica, desvendando os pontos incógnitos de nossa trajetória de forma a fazer-nos compreender o estágio atual de nossa existência.

Em terra tão ingrata com seus antepassados, tão avara na celebração de seus heróis, Freyre nos convoca a cultivá-los e respeitá-los na contingência histórica de seus feitos.

Ele reverencia, em particular, os que lutaram contra os holandeses, nas memoráveis batalhas de Guararapes, e celebra, em suas palavras, os heróis do povo, “os “brancos, mestiços, negros, índios na resistência afinal triunfante sobre os intrusos”. E presta comovente homenagem a um dos revolucionários brasileiros mais destemidos e mais esquecidos, Frei Caneca, a quem chama de “intelectual mártir, pensador mártir, homem de letras mártir, da causa brasileira da independência e da liberdade.”

O europeu povoa seu imaginário, suas capitais e aldeias desses símbolos, nenhum deles mais digno ou merecedor de culto que os nossos. Quando a pátria se via ameaçada, mesmo socialistas e revolucionários tiravam da penumbra da história os heróis populares, e também senhores feudais e generais monarquistas para encher de brio a alma de seus povos, do que são exemplos um Skandberg nas ruas de Tirana, um Kutuzov reclamado pelos soviéticos em plena campanha de resistência contra a invasão alemã na segunda guerra mundial.

Gilberto Freyre nos libera para a celebração dos precursores e construtores da pátria. Negros como Zumbi e Henrique Dias e os guerrilheiros dos Palmares e da Revolta dos Malês, índios como Ajuricaba, Sepé Tiaraju, Filipe Camarão e Maria Arcoverde, caboclos como Floriano Peixoto, mulatos como Machado de Assis e Lima Barreto, brancos como Tiradentes, José Bonifácio e Bárbara de Alencar encontram lugar no Panteão senão dos espaços públicos esquecidos pelos governos, pelo menos da alma de brasileiros amantes de sua terra e de sua história.

É justo que os Estados Unidos reservem seu mais elevado pedestal para George Washington, um fazendeirão caipira e semiletrado como já descreveu um historiador norte-americano, mas patriarca de sua independência. Espantoso é que por aqui José Bonifácio, estadista, cientista, militar, polígrafo, a quem Gilberto Freyre chega a atribuir virtudes superiores ao gênio do libertador Simon Bolívar, não receba, senão de forma tímida e por vezes envergonhada, o reconhecimento de artífice e patriarca de nossa Independência.

Recordemos pela atualidade e vigor dos pronunciamentos duas breves passagens dos libertadores. A primeira, de José Bonifácio na Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil Sobre a Escravatura:

“E vós, traficantes de carne humana, vós senhores injustos e cruéis, ouvi com rubor e arrependimento, se não tendes pátria, a voz imperiosa da consciência, e os altos brados da impaciente humanidade; aliás, mais cedo talvez do que pensais, tereis que sofrer terrivelmente da vossa voluntária cegueira e ambição; pois o castigo da Divindade, se é tardio às vezes, decerto nunca falta. E qual de vós quererá ser tão obstinado e ignorante, que não sinta que o cativeiro perpétuo é, não somente contrário à religião e à sã política, mas também contrário aos vossos futuros interesses, e à vossa segurança e tranqüilidade pessoal?

“Generosos cidadãos do Brasil, que amais a vossa pátria, sabei que sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição; nunca aperfeiçoará as raças existentes, e nunca formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso e uma marinha florescente.

“Sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida riqueza; não pode haver moralidade, e justiça; e sem estas filhas do céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações”.

São palavras do patriarca que ditas hoje soariam como brado contra o abandono de milhões de brasileiros à miséria em meio à opulência de tão poucos.

Ouçamos agora o grande patriota venezuelano antecipando no discurso pronunciado por ocasião da instalação do congresso de Angostura em 1819, as reflexões que o próprio Gilberto Freyre percorreria mais de um século depois:

“Tenhamos presente que nosso povo não é o europeu, nem o americano do norte, é antes um composto de África e América do que uma emanação da Europa, pois que a Espanha mesma deixa de ser Europa pelo seu sangue africano, pelas suas instituições e por seu caráter. É impossível caracterizar com propriedade a que família humana pertencemos. A maior parte do indígena se aniquilou, o europeu mesclou-se com o americano e com o africano e este mesclou-se com o índio e com o europeu. Nascidos todos do seio de uma mesma mãe, nossos pais, diferentes em origem e em sangue, são estrangeiros, e todos diferem visivelmente na epiderme; esta dessemelhança traz uma ligação da maior importância.”

A eloqüência de Bolívar era, em Gilberto Freyre, um traço literário. Tinha orgulho de ser apenas um escritor, foi um mestre da língua, reconhecido como talentoso artesão de frases plásticas como uma paisagem nordestina. Dele disse o poeta e primo João Cabral de Melo Neto, no poema que lhe dedicou pelos 40 anos de Casa-grande & senzala: “Ninguém escreveu em português / no brasileiro de sua língua: esse à-vontade que é o da rede, / dos alpendres, da alma mestiça, / medindo sua prosa de sesta, / ou prosa de quem se espreguiça.”

Um dos maiores críticos literários do País, Otto Maria Carpeaux, austríaco refugiado do nazismo que se exilou no Brasil, conta que em 1940 estava deprimido, “sem vontade de viver e sem esperança”, quando iluminou-se com a leitura de Sobrados e Mocambos, onde uma passagem memorável demonstra o estilo impecável de Freyre. Ao mostrar os estragos da febre amarela no Rio, no começo do século XIX, o escritor relata:

“Houve mesmo nativistas que se regozijavam com a ação violentamente antieuropéia da febre amarela. Febre terrível que, poupando o nativo, não perdoava o estrangeiro. Principalmente o louro, de olhos azuis, sardas pelo rosto. Mas o estrangeiro louro insistiu em firmar-se em terra tão sua inimiga com um heroísmo que ainda não foi celebrado. Só visitando hoje alguns dos velhos cemitérios protestantes no Brasil – o do Recife ou o do Salvador ou o do Rio de Janeiro – que datam dos princípios do século 19, e vendo quanta vítima da febre amarela apodrece por esses chãos úmidos e cheios de tapuru, debaixo de palmeiras gordas, tropicalmente triunfantes sobre o invasor nórdico, faz alguém idéia exata da tenacidade com que o inglês, para conquistar o mercado brasileiro e firmar nova zona de influência para o seu imperialismo, se expôs a morrer de febre tão má nesta parte dos trópicos.”

A imagem gloriosa das “palmeiras gordas, tropicalmente triunfantes sobre o invasor nórdico”, fascinou o crítico erudito, cuja abonação era um selo de qualidade. A prosa elegante de Freyre, admirador de Marcel Proust, influenciaria diretamente alguns dos luminares da literatura brasileira, como os poetas Jorge de Lima e Manuel Bandeira. O romancista José Lins do Rego admitiu que, nos primeiros escritos, copiava-o sem cerimônia. “Escrevo sobre ele quase falo de mim mesmo, tanto me sinto obra sua, tanta influência exerceu sobre a minha pobre natureza, tão sujeita aos ventos e aos tormentos das tempestades”.

Em Açúcar, livro por muitos censurado como mundano e vulgar para um sociólogo, Freyre é capaz de oferecer aos seus leitores, entre receitas de bolos e doces do Nordeste, uma das mais significativas páginas de nossa história dos costumes. Conta o mestre pernambucano:

“No século XVIII o mestre régio Vilhena se levantava na própria Bahia contra os quitutes africanos que se vendiam em tabuleiros pelas ruas da boa cidade de Tomé de Sousa. Para o seu paladar clássico de professor de grego eram umas comidas repugnantes. Mas apesar de todos os brados dos Vilhenas contra os manjares vindos da África; contra os temperos, os quiabos, as ervas dos negros; apesar do fato de muito mazombo mandar vir de Portugal cozinheiro para lhe preparar a comida à portuguesa – os quitutes africanos foram ganhando, não tanto a sobremesa, como a mesa, das casas-grandes e dos sobrados patriarcais, principalmente na Bahia. Até que no século XIX o caruru, o vatapá, o acarajé já se podiam considerar pratos nacionais.

“Os princípios desse século foram aliás de reação contra tudo que fosse português: contra o caldo verde, contra a farinha de trigo, o queijo-do-reino, o vinho do Porto. Em Pernambuco, o padre João Ribeiro – uma das figuras mais doces que já passaram pela história do Brasil – fazia questão de levantar seus brindes com aguardente de cana, em vez de vinho do Porto. Era a exaltação patriótica e romântica da cana-de-açúcar. Outros patriotas pernambucanos de 1817 substituíram o pão pela farinha de mandioca. Sob tais estímulos patrióticos, era natural que se desenvolvesse entre nós o gosto pelos quitutes indígenas e africanos”.

Quando milhões de brasileiros se dispõem a reagir ao processo de aviltamento e de deterioração por que passa a língua portuguesa, é animador reparar na importância e na atenção que Gilberto Freyre concedia ao idioma. Não somente no aspecto literário, mas na língua viva, construída pelo povo, às vezes em desacordo com a afetação purista dos buldogues da lingüística, a partir mesmo da colonização:

“Dessa primeira dualidade de línguas, a dos senhores e a dos nativos, uma de luxo, oficial, outra popular, para o gasto — dualidade que durou seguramente século e meio e que prolongou-se depois, com outro caráter, no antagonismo entre a fala dos brancos das casas-grandes e a dos negros das senzalas — ficou-nos um vício, em nosso idioma, que só hoje, e através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido e atenuado: o vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo” — lemos em Casa-grande & senzala.

Porque conhecia e valorizava a língua portuguesa, Gilberto Freyre dava-se o direito de ousar quando escrevia, arriscando-se a singularidades ortográficas e sintáticas: preferia, por exemplo, conforme a natureza africana das palavras, mucambo mocambomuleque moleque — em um estilo que ele próprio chamava de “gilbertiano”. Ainda que sem revolucionar o português, à maneira de um Guimarães Rosa, renovou-o com a grandeza do seu talento e a originalidade da sua criação, fazendo a nossa língua mais exuberante, mais rica e mais bela.

Mas talvez o maior triunfo e o dom da plena atualidade de Gilberto Freyre e de sua obra estejam em constituir-se em muralha às pretensões totalitárias da hegemonia ideológica, militar, econômica, comercial, cultural, de padrões e modelos institucionais que se espalham sobre o planeta. Nas descobertas e redescobertas da brasilidade, da construção única que resultou no povo e na nação brasileira, das potencialidades de realização e afirmação de nossa gente, dos caminhos e destinos próprios que podemos trilhar, daí ressurge o Gilberto Freyre pleno, contemporâneo das difíceis escolhas defrontadas pelo Brasil.

Nestes tempos difíceis de ameaças à soberania da nação e de pressão sobre nossa identidade nacional e cultural, suas páginas como que encantadas em sociologia, história, literatura, psicologia social, desencantam-se em exército combatente marchando para o duelo de vida e de morte em defesa do orgulho nacional, da esperança e dos sonhos do Brasil e do seu povo.

Pernambucano e nordestino, seu regionalismo não se afirmava como negação da nacionalidade. Ao contrário, ser pernambucano e nordestino era para ele apenas uma forma própria de sentir-se mais brasileiro. É curioso observar o paralelo que faz entre a chamada civilização do açúcar e a civilização grega, não só pela percepção entre os traços comuns das duas sociedades mas pelo que deixa escapar de crítica ao patriarcalismo açucareiro nordestino. Mas deixemos com Gilberto Freyre:

“Mas foi justamente essa civilização nordestina do açúcar – talvez a mais patológica, socialmente falando, de quantas floresceram no Brasil – que enriqueceu de elementos mais característicos a cultura brasileira.

“O que nos faz pensar nas ostras que dão pérolas.

“Levantando-se a vista dos pobres canaviais do Nordeste patriarcal para as oliveiras de certa terra clássica do Sul da Europa, há de ver-se que também a civilização grega foi uma civilização mórbida segundo os padrões de saúde social em vigor entre os modernos. Civilização escravocrática. Civilização pagã. Civilização monossexual. E, entretanto, estranhamente criadora de valores, pelo menos políticos, intelectuais e estéticos. Muito mais criadora desses valores do que as civilizações mais saudáveis que ainda se utilizam da herança grega. Junto dela, com efeito, a bem equilibrada civilização dos modernos escandinavos empalidece e se apresenta tão estéril e tristonha como se não tivesse senão mãos e pés de gigante.

“Abaixo da grega, outras civilizações parece que têm reproduzido, em termos maciços, o caso estranho dos gênios individuais, tanto deles como as ostras: doentes é que dão pérolas.

“A antiga civilização do açúcar no Nordeste, de uma patologia social tão numerosa, dá-nos essa mesma impressão em confronto com as demais civilizações brasileiras – a pastoril, a das minas, a da fronteira, a do café. Civilizações mais saudáveis, mais democráticas, mais equilibradas quanto à distribuição da riqueza e dos bens. Mas nenhuma mais criadora do que ela, de valores políticos, estéticos, intelectuais.”

Com toda essa proeminência, Gilberto Freyre não estava — nem poderia estar, como ativista político — a salvo de erros, imune ao equívoco. A ditadura portuguesa de Antônio de Oliveira Salazar parecia-lhe, “depois de vigorosamente desbastada de seus medievalismos mais hirtos e de seu policialismo mais cru”, a solução para “algumas das atuais democracias apenas políticas do Ocidente se alargarem em democracias econômicas, sociais, culturais, com pequeno sacrifício de alguns de seus adiantamentos políticos sob forma de ritos ou expressões eleitorais”.

Mais por seus defeitos que por suas virtudes, para usar uma expressão que lhe era cara, Gilberto Freyre não compreendeu a luta patriótica dos jacobinos na consolidação da República, nem a função renovadora da Revolução de 30. Tropeçou, também, ao ignorar a natureza antidemocrática e antipopular do regime ditatorial que se instalou no Brasil em 1964. Aristocrata, livre pensador, daqueles que forjam teorias às vezes apartadas da história, iludiu-se com o regime de força que, doutrinariamente, achava capaz de resolver os problemas sociais. Politicamente tinha simpatias pela figura do déspota esclarecido. No ensaio Literatura e parlamento: o caso brasileiro, admite que os “estados nacionais precisam de ser principalmente conduzidos por executivos capazes de, em momentos críticos, agir de modo imediato e decisivo”.

Passados 21 anos, mudaria de opinião: “Não sou antimilitarista, mas devo dizer que nunca me enganei com esse surto militar iniciado em 1964, o que me levou a recusar convites do general Castelo Branco para ocupar um ministério ou a embaixada em Paris. Os militares se deram aos tecnocratas, que comprometeram os valores éticos do Brasil.”

Darcy Ribeiro soube separar o joio do trigo quando observou, a propósito de Casa-grande & senzala: “Sempre me intrigou, e me intriga ainda, que Gilberto Freyre sendo tão tacanhamente reacionário no plano político — em declaração recente chega a dizer que a censura da imprensa é, em geral, benéfica e que nos Estados Unidos a censura é mais rigorosa do que em qualquer outro país do mundo — tenha podido escrever esse livro tão generoso, tolerante, forte e belo.”

Em seu ensaio Modernidade e modernismos nas artes, seu conservadorismo não degenera em antimarxismo vulgar, como deixa entrever os trechos que se seguem:

“(…) e tendo sido o cubismo ‘uma reação dialética aos neoimpressionistas’, como o marxismo fora uma reação dialética aos hegelianistas, não encontrou outro meio de afirmação senão a violência. Ambos foram movimentos fanáticos e sectários violentíssimos. Mas sem esse fanatismo, sem esse sectarismo, sem essa violência, sua revolução teria se limitado a tempestades em copos de águas parlamentares ou em vasilhas de lavar pincéis. Pela violência modernista, marxistas e cubistas abriram caminhos para a modernidade em que começamos a viver hoje, tanto nas artes plásticas como na engenharia social ou na arte política. Sem o cubismo, talvez ainda estivéssemos na fase de arranha-céus em estilo gótico ou em estilo mourisco, como os da fase paleotécnica de Nova Iorque; ou na pintura puramente anedótica, costumista, sentimental ou “naturalista” do século XIX. Sem o marxismo talvez continuássemos a pretender resolver os problemas de engenharia social com a democracia liberal ou com o parlamentarismo do século XIX; os problemas da miséria, com a filantropia apenas sentimental”.

E prossegue nesse tom:

“(…) sem a teoria e a experiência marxistas não haveria a atual democracia social: nem a cooperativista nem a experimentalmente socialista nem a planificista. São todos tipos pós-marxistas de democracia que, em vários países, já se apresentam com resultados capazes de nos fazer acreditar no êxito de avanços verdadeiramente revolucionários no sentido de uma nova e complexa organização das relações entre os homens”.

Recomenda lembrar aqui a enorme admiração que Marx e Engels dedicam a Balzac, apesar dos pendores monarquistas e conservadores do grande escritor francês. O próprio Karl Marx, tão logo concluísse O Capital, pretendia dedicar um ensaio àComédia Humana – soberbo painel sócio-literário da França na primeira metade do século XIX. Marx leu Balzac como um fino historiador de costumes. O autor do Manifesto Comunistatambém cobriu de elogios os escritores realistas ingleses – Charles Dickens, Charllotte Brontë, entre outros –, “cujas páginas evidenciadoras e eloqüentes revelaram ao mundo mais verdades políticas e sociais que todos os políticos profissionais, publicistas e moralistas juntos”.

Alheios a esta chave de análise sugerida por Marx, alguns críticos afunilam a obra de Gilberto Freyre num suposto saudosismo do mundo patriarcal. Tratemos de separar a crítica justa do conservadorismo político do autor de Nordeste da ação sectária e, pior, interesseira de muitos dos seus desafetos de ontem e de hoje. Crítica tão sectária que ele foi banido da biblioteca de certas correntes de pensamento. Sentiu-se tão desconfortável com esta censura intelectual que, em 1961, ele se recusou a participar da banca que examinaria a tese de doutorado de Fernando Henrique Cardoso.

A crítica é intolerante, em primeiro lugar porque Gilberto Freyre descortina uma paisagem antropológica da vida brasileira, não está voltado para as transformações mas para as permanências. Preocupou-se em descobrir como os elementos do passado têm capacidade de conservação durante o processo de transformação das estruturas econômicas, sociais e políticas. A simpatia pelo mundo patriarcal exige uma leitura crítica de sua obra, o que levará quem o fizer a perceber, ao lado de passagens simplórias e mesmo simpáticas ao patriarcalismo, denúncias contundentes dos seus efeitos sobre os escravos, os índios e a sociedade.

É possível falar do alto preço que custou aos primeiros esforços de construção do socialismo, o menosprezo a esses elementos de permanência e continuidade. Não seria exagerado afirmar que o desprezo pelos elementos culturais, religiosos e da tradição na formação da consciência dos povos das nações socialistas foi uma das bases do voluntarismo que contribuiu para o seu colapso. Voluntarismo que além do apoio na própria vontade sobrevalorizou fatores econômicos e materiais em prejuízo de valores subjetivos, ideológicos e culturais que, poderíamos dizer repetindo Gilberto Freyre, “deixariam os seus dirigentes desgarrados dos dirigidos; na situação de remadores que remassem no seco; sem água bastante para navegarem; com a chamada nau do Estado encalhada sobre a areia ou sobre as pedras”.

Conforta que esse mesmo erro ancorado em certo determinismo e voluntarismo conduz para o impasse a arrogância neoliberal de imaginar poder reduzir a vida de povos e nações aos interesses puramente mercadológicos. A resistência dos povos, tanto as que geram esperança – a juventude sérvia sobre as pontes do Danúbio, desafiando as bombas da Otan – ou as que resultam do desespero – as lutas fratricidas entre povos subjugados, muitas vezes estimuladas pelo inimigo comum desses mesmos povos – somente demonstram em dupla face que o pensamento único é incapaz de conter toda a carga de emoções, sonhos e busca de afirmação da humanidade.

Gilberto Freyre também foi vítima deste preconceito redutor. Ao ser publicada, sua obra foi acusada de “negrófila”, pornográfica, anticlerical. A elite pernambucana chegou a programar atos públicos para queimar em fogueiras exemplares de Casa-grande & senzala. Conta o médico e escritor alagoano Dirceu Lindoso que ao informar a um amigo do pai, pelos idos dos anos 40, que pretendia estudar sociologia no Recife, este o admoestara dizendo que sociologia era carreira para comunistas como Gilberto Freyre.

Assis Chateaubriand chamava-o de comunista pelos jornais dos Diários Associados, e o acusava de escrever discursos bolcheviques para jornadas políticas de José Américo de Almeida. Com certeza, grandes nomes da oligarquia baiana já acreditavam nisso quando, em 1942, Gilberto Freyre engajou-se na campanha dos comunistas pela imediata entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Numa série de conferências em Salvador, onde era aclamado por um grupo liderado pelo escritor Jorge Amado, fazia elogios à participação da União Soviética no conflito. Jorge Amado, seu colega na Constituinte de l946, propôs o nome de Freyre para o Prêmio Nobel de Literatura.

Além de escritores, também políticos, cientistas sociais e críticos rigorosos atestaram a importância da obra do mestre de Apipucos. Antonio Candido, em prefácio de Raízes do Brasil, disse de Gilberto Freyre: “O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro. Inclusive pelo volume de informação, resultante da técnica expositiva, a cujo bombardeio as noções iam brotando como numa improvisação de talento, que coordenava os dados conforme pontos de vista totalmente novos no Brasil de então. Sob este aspecto, Casa-grande & senzala é uma ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e mesmo Oliveira Viana, e os pontos de vista mais especificamente sociológicos que se imporiam a partir de 1940.”

Registre-se, aliás, que Raízes do Brasil foi escolhido por Gilberto Freyre para inaugurar a prestigiada coleção Documentos Brasileiros, da Editora José Olympio, que dirigiu até o número 31.

Crítico de boa cepa, o historiador marxista Nelson Werneck Sodré, incluiu Freyre como fonte fundamental para o estudo da sociedade brasileira, em seu livro clássico O que se deve ler para conhecer o Brasil. Com evidentes reservas, o historiador recomenda Casa-grande & senzala como “obra é de consulta, conquanto se ressinta de método histórico e abandone quase totalmente os aspectos econômicos”.

Outro dos reparos mais renitentes é que a obra freyriana legitima a herança patrimonialista, tão anatemizada de responsável pelo nosso atraso político e econômico. Trata-se de crítica discutível sob vários aspectos. O Brasil, como todas as demais nações latino-americanas, é uma nação construída pelo estado. Como nos lembra Raymundo Faoro em Os donos do poder, o capitalismo só floresceu plenamente na Europa e na Ásia em nações revolvidas pelo feudalismo. Em que pese, portanto, o fato de a estrutura patrimonialista do estado português e brasileiro ter facilitado a expansão do capitalismo comercial, não conseguiu criar as condições ideais para o desenvolvimento pleno do capitalismo industrial na sua forma anglo-saxônica.

E aí surge a singularidade da visão aristocrática de Gilberto Freyre. Se por um lado esta o impediu de aproximar-se do socialismo e de formas mais avançadas de democracia com participação popular, ao mesmo tempo lhe permitiu o distanciamento daqueles que olham o capitalismo anglo-saxão como única esperança de nossa redenção, e sua ausência no Brasil como um fato lamentável e uma deficiência estrutural, que nos deixou em desvantagem em relação aos europeus e norte-americanos. Ao distanciar-se deste modelo tornou-se Gilberto Freyre a um só tempo crítico da matriz socialista na sua forma institucional e econômica, mas também das sociedades geridas pelo mercado. Seu olhar para o hemisfério Norte não foi para lamentar porque somos diferentes e porque ainda não chegamos lá. Ao fazer o elogio do caráter mestiço brasileiro destruiu o complexo de inferioridade racial e mostrou que nisso estava nossa força. Talvez ainda reste por ser destruído o complexo da ausência de relações capitalistas em todos os domínios da vida material e espiritual do país .

Neste aspecto Freyre lembra Eduardo Prado de A ilusão americana, no que este tinha de aristocrata e de saudosista da etiqueta do antigo regime, tão enganado no seu combate à república, mas de tanta premonição na crítica que fez ao nascente imperialismo americano.

Bem vistas as coisas, as atuais tentativas de destruir a chamada herança patrimonialista, que em sua forma mais moderna teria dado em capitalismo de estado, não passa de uma grande farsa. Sob o pretexto de modernizar as relações econômicas, as reformas promovidas pelos atuais governantes apenas substituíram o capitalismo de estado, sucedâneo moderno do estado patrimonialista, por um capitalismo de rapinagem, no qual os críticos do suposto atraso apressam-se em transformar o patrimônio outrora público em dote pessoal ou de amigos, quando não de felizardos compradores estrangeiros.

Os ensaios de Gilberto Freyre nos servem ainda hoje de frondosa vassoura de piaçaba para tanger do nosso terreiro o lixo ideológico que na forma de multiculturalismo ensandece a cabeça dos que tentam aportar no brasil com modelos norte-americanos de combate ao racismo.

“O multiculturalismo é um ‘apartheid’ de esquerda” disse em primoroso ensaio publicado em O Estado de S. Paulo, o antropólogo baiano Antônio Risério. Gilberto Freyre surpreende o multiculturalismo na sua essência segregacionista. A presença deletéria do racismo no Brasil deve ter como principal arma de combate a valorização da miscigenação – sem torná-la valor absoluto ou obrigatório, o que consistiria em outra forma de racismo – e da insubstituível presença do negro na formação e na cultura do povo brasileiro.

Em 1944, Monteiro Lobato dispôs-se a antever: “O Brasil futuro não vai ser o que os velhos historiadores disseram e os de hoje ainda repetem. Vai ser o que Gilberto Freyre disser”. Ao que podemos juntar a previsão de Nélson Rodrigues: “Daqui a duzentos anos Gilberto Freyre estará cada vez mais vivo, e sua figura terá a tensão, a densidade, a atualidade da presença física”.

Um dos melhores elogios lhe foi feito pelo educador Anísio Teixeira: “Em outra época, seria o pensador de sua geração; neste século 20, é o seu maior pensador”. Astrojildo Pereira, fundador do Partido Comunista, crítico literário reconhecido, foi um dos primeiros a saudar o atrevimento metodológico da obra de Gilberto Freyre: “É algo de explosivo, de insólito, de realmente novo a romper anos e anos de rotina e chão batido.”

Justo seria considerar a contribuição do mestre alagoano Gilberto Macedo, professor Titular do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Alagoas, em seu Casa grande & senzala, obra didática?, quando sugere o uso da obra de Gilberto Freyre para estudos universitários e interdisciplinares dos países latino-americanos e do Brasil. Creio que uma Cátedra Gilberto Freyre, dirigida à iniciação sociológica em todos os graus do ensino em nosso país, seria não apenas uma justa homenagem, mas uma contribuição à formação multidisciplinar de nossos estudantes. Algum paralelo há entre a preocupação de Gilberto Macedo e aquela que levou o sábio e revolucionário alemão Engels e posteriormente o dirigente socialista russo Lênin a aconselhar a distribuição das obras dos materialistas franceses aos estudantes e ao povo como forma de elevar sua capacidade de compreender o mundo.

Essa, a estatura de Gilberto Freyre, de quem celebramos o centenário do nascimento. Escritor, sociólogo, historiador, antropólogo, etnólogo, jornalista, político, Gilberto Freyre era, sobretudo, brasileiro — essencialmente brasileiro, apaixonadamente brasileiro. Graças à contribuição de sua obra, deixamos de nos sentir uma nação condenada ao subdesenvolvimento e à miséria para crer no futuro grandioso a que nos destinamos. “É lamentável — deplorou Roland Barthes — não ter tido ainda a França um intérprete assim dos primeiros séculos da sua formação”. Nós o tivemos. A ele, a nossa homenagem, o nosso respeito e a nossa gratidão por ter erguido obra que o faz um dos mais fecundos e argutos intérpretes do Brasil.

  1. Freyre, Gilberto, Homens, engenharias e rumos sociais, Rio, Editora Record, 1987
  2. Rodrigues, José Honório, Aspirações nacionais – Interpretação histórico-política, Rio, Civilização Brasileira, 1970, 4ª. edição
  3. Gilberto Freyre, Perfil de Euclides e outros perfis, Rio, Editora Record, 1987
  4. Freyre, Gilberto, Casa-grande & senzala, 22º ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
  5. Freyre, Gilberto, O ânimo folclórico no comportamento e na cultura do brasileiro, inclusive na literatura, in Alhos & Bugalhos, Rio, Editora Nova Fronteira, 1978
  6. Vianna, Hermano, Equilíbrio de antagonismos, in caderno Mais, Folha de S.Paulo, 12/03/2000
  7. Freyre, Gilberto, O Recife: burgo animador e, por vezes, renovador de arte e de estudos brasileiros, in Alhos & Bugalhos, Rio, Editora Nova Fronteira, 1978
  8. Falcão, Edgard de Cerqueira (org.), Obras científicas, políticas e sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva, Santos, 1965
  9. Belloto, Manoel Lelo e Corrêa, Ana Maria Martinez, Bolívar, Política, S.Paulo, Editora Ática, 1983
  10. Carpeaux, Otto Maria, Uma elegia sobre a sociedade rural e patriarcal, in O Estado de S.Paulo, 12/03/2000
  11. Freyre, Gilberto, Açúcar (Algumas receitas de bolos e doces dos engenhos do Nordeste), Rio, edição do Instituto do Açúcar e do Álcool, 1969
  12. Freyre, Gilberto, Casa-grande & senzala, Rio, Editora Record, 36ª. Edição, 1969
  13. Freyre, Gilberto, Nordeste, Rio, Editora Record, l989
  14. Lima, João Gabriel de, “O Baú do gênio de Apipucos”, in revista Veja, 15/9/1999.
  15. Freyre, Gilberto, Literatura e parlamento: o caso brasileiro, in Alhos & bugalhos, Rio, Editora Nova Fronteira, 1987
  16. Freitas Décio, “O Brasil de Gilberto Freyre”, in caderno Cultura, Zero Hora, 11/3/2000.
  17. Ribeiro, Darcy, Ensaios Insólitos, Porto Alegre, L & PM Editores, 1979
  18. Freyre, Gilberto, Modernidade e modernismos nas artes, in Vida, forma e cor, Rio, Editora Record, 1987
  19. Fedosseiev, P.N., e outros, Karl Marx, Biografia, Lisboa, Edições Avante, 1983
  20. Sodré, Nelson Werneck, O que se deve ler para conhecer o Brasil, São Paulo, Círculo do Livro, s/d
  21. Risério, Antonio, Historiador valoriza a mistura genética e cultural, in O Estrado de S.Paulo, 12/03/2000
  22. Macedo, Gilberto, CG & S, Obra Didática?, Rio, Editora Cátedra, 1979
  23. “A consagradora opinião da crítica mundial sobre a obra de Gilberto Freyre”, in Casa grande & senzala, 22º ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1983.

O fator racial na política contemporânea

Gilberto Freyre

Nota de O. de C. – Quem sugeriu este texto de Gilberto Freyre para as Leituras Recomendadas foi o meu aluno Cássio Pereira Lima, de São Paulo, que me enviou, com ele, a seguinte carta:

15 de agosto de 2000

Prezado amigo e mestre Olavo de Carvalho

Encaminho-lhe, em anexo, o artigo de Gilberto Freyre intitulado “O Fator Racial na Política Contemporânea”, publicado em 1982, cuja conclusão converge para a tese que você tem enfaticamente demonstrado quanto à bem sucedida forma de integração racial ocorrida no Brasil, em que pesem os esforços divisionistas fomentados pelos patrocinadores da “affirmative action” no país. Conforme dirá Gilberto Freyre, a prevalência do fator cultural em detrimento do apego ao sentimento de raça constitui a base do sucesso brasileiro. Nosso modelo é exemplo para o mundo e, no entanto, hoje estamos sendo ludibriados por mercadores de ilusões que nos oferecem dinheiro para cairmos em desgraça. Sendo assim, resta-me cumprimentá-lo pelo seu abnegado empenho em despertar o país da letargia intelectual, resgatando-o da condição de gado tangido para o abismo e oferecendo-lhe não a quimera do direito a quotas raciais, mas a serena quota de orgulho e lucidez lastreada em soluções práticas desenvolvidas em 500 anos de história, que os ditos “civilizados” buscam em vão.

Um grande abraço,

Cássio Pereira Lima

Não se tem de aceitar a fórmula francesa, tornada famosa por Charles Maurras – Politique d’abord! – como expressão suprema ou absoluta em Sociologia da Política, para reconhecer-se a importância do comportamento político no mundo em que agora vivemos. É um mundo no qual a política está desempenhando papel extremamente importante e, em alguns assuntos, realmente decisivo. Muito se diz ainda sobre a importância da economia tanto no mundo contemporâneo ocidental quanto no não-ocidental; e ninguém nega a importância desse fator. Nem a religião deixou de ser força considerável entre os homens contemporâneos por terem a ciência e a tecnologia atingido tão imenso poder entre eles. Todas essas forças atuam, no momento atual, como fatores de influência nas várias culturas nacionais a regionais, que estejam em diferentes estágios de desenvolvimento. Cada força está em relação particular ou específica para cada um desses estágios de desenvolvimento cultural ou de situação social ou regional.

Há, porém, um aspecto desses desenvolvimentos, comum a todos eles: a direção política, ou o estilo ou a forma de direção política, que está sendo dada não apenas a cada desenvolvimento nacional ou regional, mas à sua crescente interdependência. Com relação a esse ponto, é difícil para o sociólogo ou para o antropólogo social, não concordar que, numa cultura, em particular, nacional, ou nas relações internacionais, em geral, possa ser esse estilo, de algum modo, mais importante do que o conteúdo. Ou que a substância. Como diz, desse estilo, moderno cientista político, ele “racionaliza um ânimo”; a esse ânimo pode ser – e realmente está sendo em considerável número de casos contemporâneos – um ânimo de “vingança”.

Naturalmente essa racionalização pode ser, em alguns desses casos, mais aparente do que real – a irracionalidade do conteúdo sendo demasiadamente poderosa para ser facilmente dominada por qualquer tipo de racionalização formal; mas se ela funciona como racionalização – pois mesmo uma racionalização pode tornar-se, paradoxalmente, um mito – para a maioria dos povos que ela afeta, pode ser aceita como sociologicamente efetiva. Para o sociólogo, como sabemos, os mitos podem ser, em alguns casos, realidades: realidades sociológicas condicionadas por tempo específico; e válidas em espaços específicos. A raça tem sido, no passado, e continua a ser – sem dúvida o é intensamente no momento atual – importante fator em política. Isto não apenas por causa de sua importância como conteúdo social, mas por causa, também, e em alguns casos, principalmente, do que nessa palavra, semanticamente vaga, contém de sugestões ou implicações emocionais, psicológicas, econômicas, religiosas. Tais implicações podem ser usadas e abusadas no que um perspicaz analista da natureza humana projetada na política, o Professor James C. Davies, descreve como “as relações estatísticas mais íntimas entre os governantes e o público”. Tal não sucede apenas com as “relações estatísticas” mais amplas, de caráter político, com conteúdos sociais ou culturais gerais: parece ser verdade, também, daquelas relações, do mesmo caráter, entre os governantes de um grupo nacional ou regional e outros grupos, nacionais ou regionais. Nesse campo, pode servir e realmente tem servido de lógica não apenas para promoção, dominação, competição, para propósitos nacionais ou nacionalísticos, porém, como tem sido já sugerido, para vingança: aspecto dramático do papel que a raça está desempenhando na política contemporânea.

Raça e vingança tornaram-se estritamente associadas no política contemporânea. O mais notável exemplo dessa associação foi o racismo dos governantes nazistas da Alemanha. Este foi um racismo que se tornou genocida com relação aos judeus mas que incluía ainda eslavos e se dirigia, também, através da retórica nem sempre puramente demagógica de Hitler, contra o que ele descreveu certa vez como os “mestiços corruptos” da América Latina. Foi um racismo que chegou ao ponto de tentar promover a glorificação de uma mítica “raça” superior branca, ariana, nórdica, e condenar, como incapazes de autogoverno, grupos étnicos não-arianos, incluindo nesses grupos incapazes, aqueles que se diz ter Hitler descrito como governados por mestiços corruptos. Exemplos mais recentes da associação de raça a vingança são aqueles que nos vêm dos grupos étnicos do Ásia e África e também dos Estados Unidos. Para estes um novo status político – aquele de estados nacionais – em alguns casos, e a luta pela total cidadania, ou por separatismo, de grupo étnico, em outros casos – está lhes dando oportunidade para a expressão de vingança contra a tutelagem racial do passado e a antiga subordinação a grupos brancos. Essa expressão é, se não sempre um comportamento político, um comportamento em parte político. Em parte, porém, é não-político: sócio-psicológico mais do que político; e, como tal, expressão, em alguns casos, do uma ansiedade, um medo, uma frustração, uma insegurança tão crua, que muito pouco estilo de comportamento político o caracteriza; e também muito pouca racionalização em plano político.

Esse tipo de comportamento não esteve inteiramente ausente da Revolução Mexicana de 1910: de sua primeira explosão como movimento não apenas político mas sociocultural e econômico – embora seu aspecto político não deva ser desprezado. Foi a Revolução Mexicana um movimento no qual a raça não se pode dizer ter sido fator insignificante: nem o ânimo de vingança, condicionada ou estimulada pela presença desse fator, aspecto desprezível. Essa Revolução – a Mexicana – ainda continua: apenas ela está deixando de ser mexicana e se tornando peruana e boliviana.

O aprismo vem sendo a racionalização da Revolução Mexicana num plano sociológico-político mais amplo: indolatinoamericano.

Deve ser ressaltado que a vingança de raça, nessas revoluções indolatinoamericanas, quando associada com cultura, precisa de ser interpretada como tendo significado, e significando ainda, protesto contra a ausência da maioria dos nativos – dos mexicanos indígenas e agora, talvez, de um modo mais trágico, de peruanos e bolivianos também indígenas, das vantagens de mudança tecnológica. Essa ausência tem colocado, e ainda coloca, grande parte da população indígena do México, do Peru e da Bolívia numa situação de não-participantes ou de participantes muito secundários, não apenas do controle político dos negócios mexicanos ou peruanos ou bolivianos por mexicanos ou peruanos ou bolivianos mas do desenvolvimento daquelas sociedades como Estados nacionais modernos e civilizações modernas em regiões não-européias. Daí serem, como estados nacionais, em grande parte, fictícios, como cópias de modelos europeus ou anglo-americanos.

Uma dos razões pare a desmoralização dessa “europeidade” fictícia ou aparente é um desenvolvimento biológico, em anos recentes, afetando aquela parte do mundo, bem como outras populações não-brancas, de conseqüências sociológicas que estão começando a alcançar expressão quase política, de considerável importância no futuro humano: refiro-me à sensacional expansão de população que está ocorrendo nos países latino-americanos de origem não-européia, e, em alguns casos, de cultura não-européia, como sua cultura predominante, força quantitativa e mesmo qualitativa tal, em países que não atraem mais imigrantes europeus em grandes números, que se pode falar, agora, de um começo de considerável deseuropeização, em certos aspectos sociais e culturais, da América Latina, bem como de um começo de desarianização, em termos raciais, de sua população. Realmente, pode-se falar de uma “preamar de cor” – pare usar expressão bem conhecida – na população latinoamericana. O mesmo parece estar ocorrendo em outras partes não-européias e agora quase inteiramente não-brancas do mundo, onde ocorreu, durante o século XIX, através de imigração de europeus a dominação européia, forte aumento de europeus e de brancos, como etnia, e de seus valores como cultura. O futuro se anuncia o oposto desse passado ainda recente.

Dos latinoamericanos – artistas, escritores, antropólogos, sociólogos, economistas, educadores, líderes religiosos, arquitetos, agrônomos – muitos estão, agora, tornando-se crescente extra-europeus, em seus esforços criadores, em suas análises e interpretações de suas situações naturais e humanas, em sua expressão do que seja não-europeu em sua experiência, e em suas aspirações e projetos para o futuro, embora sem repudiar, em numerosos casos, valores e técnicas européias ou angloamericanas. Alguns desses valores e técnicas já foram assimilados pelos seus antepassados ou são – pensam eles – de evidente vantagem para seu desenvolvimento presente ou para seu futuro. Nessa atitude, raça – a consciência, da parte de numerosos latinoamericanos, de serem descendentes de raça não-européias – não mais está sendo sentida por eles como uma humilhação mas sendo aceita como vantagem, à base psicológica, ou ideológica ou, talvez, em alguns casos, retórica, de que os latinoamericanos podem estar criando o que o sociólogo mexicano, José Vasconcelos, considerou, com excessiva ênfase “raça cósmica”; ou para o que um outro latinoamericano, igualmente entusiasta da mistura racial, descreve, em ensaio recente, como a “verdadeira raça sintética do futuro”. Essa racionalização ou idealização de mistura racial envolve uma concepção do desenvolvimento da América Latina como comunidade multi-racial, continental, na qual a tendência seria para as várias raças viverem, não vidas étnicas e culturais separadas, mas unidas. Unidos os seus valores, e as suas tradições mais características, bem como misturados seus sangues, para a formação de novos tipos de homens e de novas formas de cultura no mais amplo sentido sociológico, ou antropológico de cultura. Se essa tendência está se tornando tão significante sob a forma de tendência – apenas sob a forma de tendência – como alguns analistas da situação racial e cultural da América Latina pensam que está se tornando, então não é difícil compreender por que, no Brasil, o uso da palavra moreno, agora muito flexível ou elástico, está se tornando um dos mais expressivos acontecimentos semântico-sociológicos que já caracterizaram o desenvolvimento do América Portuguesa como sociedade cuja composição multi-racial está, de modo crescente, se constituindo no que um inventor de novas palavras poderia, com algum arrojo, descrever como metarracial. Isto é, uma sociedade onde em vez da preocupação sociológica com caracterizações minuciosas de tipos raciais ou de nuances intermediários, entre asses tipos, – entre branco e preto, branco e vermelho, branco e amarelo – começa a ser para aqueles membros do sociedade ou comunidade brasileira, não absolutamente brancos, nem absolutamente de pele vermelha nem absolutamente amarelos, para serem descritos, e eles próprios se considerarem sem outra discriminação de cor, como “morenos”. Essa palavra foi originalmente usada, na língua portuguesa, para descrever homens e mulheres de compleição mourisca e, depois, especialmente aplicada a morenos brancos em contrastes com louros ou ruivos. A mesma palavra, todavia, está tendo agora um uso sociologicamente flexível ou biologicamente elástico – tão elástico que mesmo negros retintamente pretos começam agora a ser descritos, no Brasil, como morenos, não tanto porque a palavra negro ou a palavra mulato sejam palavras que, para os brasileiros típicos ou castiços, soem como caracterizações puramente raciais, como soam aos ouvidos dos europeus – especialmente dos anglo-saxões – mas porque a palavra negro, aos ouvidos dos brasileiros, e mesmo a palavra mulato, ainda soam, em numerosos casos, como equivalente de escravo: uma sobrevivência verbal daquele passado, não tão remoto, quando se dizia que um proprietário de escravos no Brasil possuía, não tantos escravos, mas tantos negros ou tantos pretos ou tantos cabras: mesmo quando os escravos eram de uma cor mais clara do que a dos seus proprietários. O fato, todavia, é que a palavra negro está começando a significar para numerosos latinoamericanos algo que tem pouco a ver com escravidão: uma raça e uma cultura mais antiga do que a América espanhola ou a portuguesa. Isto pode ser, em parte, o resultado do que está ocorrendo na África negra: não no ex-Congo Belga, naturalmente, mas em áreas tais como a Nigéria e o Senegal, onde os negros já revelam capacidade para autogoverno, para originalidade nacional. Parece a alguns de nós que é tendência saudável, essa, da parte de novas elites da África, da Ásia e da América Latina, a de seguirem, e estimularem entre as populações sob sua influência, ou liderança, o que os franceses chamam “un retour aux sources”.

Esse “retour aux sources” pode envolver orgulho racial exagerado da parte de povos que foram, por séculos, oprimidos – ou se consideravam oprimidos pelos brancos e pelo seu etnocentrismo igualmente exagerado e em alguns casos, brutalmente imperial. Porém dos novos líderes políticos, que se animam a conduzir novas nações, ou quase nações, para novos caminhos de desenvolvimento nacional e expressão nacional, alguns poderão agir de tal modo que lhes será possível harmonizar extremos, usando o orgulho racial, ou cultural-racial, apenas na medida em que posse estimular criatividade cultural ou originalidade política. Semelhante proceder se baseava não apenas em “retour aux sources” mas no uso inteligente de modelos, técnicas e métodos estrangeiros, brancos e amarelos, comunistas e capitalistas – adaptados às necessidades e aspirações destas novas nações ou quase nações.

Nessa tarefa os líderes políticos necessitarão da ajuda de cientistas sociais, de educadores, de humanistas, de líderes religiosos. Tem de ser, predominantemente, uma tarefa de arte política, na qual o orgulho racial-cultural poderá ser usado, mas não deve ser abusado. Ninguém, com um mínimo de objetividade sociológica, deve negar a povos que, por séculos, foram feridos em seu orgulho racial por um esforço sistemático, da parte de alguns de seus opressores, ou de destruição ou de desmoralização de alguns dos mais íntimos valores culturais associados com pretensas raças inferiores, a reação que agora se verifica contra possíveis sobrevivências oblíquas de tais tipos de opressão. Reação através, por vezes, de formas extremas de expressarem esses povos sua consciência racial à de valores ou estilos culturais. Gradualmente, todavia, esses mesmos povos precisarão de ser conduzidos por líderes menos demagógicos que vários dos atuais líderes mais objetivos que façam os seus liderados ver as coisas como realmente elas são. Seus líderes políticos poderiam, mesmo agora, estar orientando sua ação política de modo a minimizar a importância que tem sido recentemente dada, a ainda está sendo dada, ao fator puramente racial; e a magnificar a importância que deve, de modo crescente, ser dado ao fator propriamente cultural. A raça estará, então – raça, não no seu sentido justo mas como aquela super-realidade exaltada de modo mítico e místico pelos nazistas como a força física e mental com específica missão política e cultural – tomando o lugar de classe, como fator na política contemporânea? Possivelmente, em não pequeno número de casos, sim. Por alguns líderes do Oriente, certamente, numa evidente distorção do Comunismo e de tradicional pelo Comunismo do Proletariado, qualquer que seja a raça do Proletário, como o grande gigante oprimido a ser redimido. Isto também está sendo feito por alguns líderes políticos de alguns povos não-Orientais e mesmo por uns tantos povos brancos.

Por outro lado, a automação está reduzindo tão rigorosamente, mesmo em algumas áreas não-européias, o tempo de trabalho normal, entre os homens, que uma “Classe Trabalhadora”, como tal, um Proletariado, como foi glorificado até recentemente por oradores socialistas revolucionários, parece ser cada vez menos uma realidade sociológica com específico significado dinamicamente político. Enquanto a Praça, seja ela mito biológico ou não, até onde sua expressão mental ou cultural se refira, está se tornando proeminente, na política nacional ou internacional, como força atuantemente psicológica: e como tal, assimilando algum do poder até recentemente ligado quase inteiramente à “Classe Trabalhadora” revolucionária. Pode ser mesmo sugerido, como veremos adiante, que dos novos líderes políticos na Ásia, África, América, alguns demonstrem, atualmente certa tendência, não para pôr a Raça a serviço de uma ideologia de Classe rígida, com ênfase total numa guerra de Classes, mas para por uma ideologia de Classe a serviço de uma mística racial revolucionária, da parte de homens ou de grupos cujo principal interesse seja lutar pela oportunidade de nações com populações pretas ou amarelas, ou predominantemente de cor, desenvolverem “seus próprios sistemas econômicos e políticos, inspiradas, em grande parte, em tradições racial-culturais e mitos, embora super-racial na maioria de suas técnicas.

O aspecto moderno mais dramático na política, nacional ou internacional, não é mais aquele de uma Burguesia que se considerasse sob a ameaça de um Proletariado em revolta violenta contra ela, Burguesia, como classe predominante ou privilegiada, mas aquele do mundo do Homem branco, agora em posição defensiva, mais do que agressiva, em face de povos não-brancos. Pois é um mundo, aquele do Homem branco, que se considera sob a ameaça de vasta revolta multi-racial da parte de povos não-brancos. É através de uma tal revolta multi-racial que populações nativas, em áreas não-européias, estão se erguendo, política e subpoliticamente, contra o que essas populações – amarelas, pardas, pretas, mistas -consideram ser, e terem sido, por anos, e mesmo por séculos, não apenas predominância exagerada, mas exploração brutal, pelo Homem branco, de seus recursos, de sua energia, de seu trabalho e, em algumas áreas, opressão sistemática e destruição até metódica daqueles valores culturais mais ligados a suas situações ou condições raciais não-européias ou não-brancas. Logo após a Segunda Grande Guerra, o Professor Herbert von Beckerath escreveu, em admirável ensaio sobre as possíveis novas relações da civilização branca com novas situações em áreas não-ocidentais ou não-européias: “O caminho do mundo do Homem branco de 1914 e mesmo da década de 30 está fechado”. Ele expressava, então, seu ponto de vista de que a nova “civilização poderia ser vital e poderia ser permanente apenas assumindo diferentes cores nacionais” – e por implicação, ainda raciais e culturais – desde que “não podemos suprimir as cores a manter o espectro”.

O fato é que nas últimas duas décadas, as cores nacionais têm se tornado, em considerável número de casos, cores raciais. O mundo já não é um mundo do Homem branco com uma civilização branco imperial em face de povos mais ou menos coloniais, porém, de modo crescente, toda uma combinação política, mais ou menos pacífica, mais ou menos bem ajustada, de estados nacionais, alguns antigos, alguns jovens, que são também caracterizados por suas situações raciais e pela sua consciência, sobretudo da parte da maioria das populações destes estados nacionais novos, de sua raça ou de sua cultura associada com sua raça. Mais, talvez, para suas situações raciais ou culturais, do que para sua condição nacional, formal ou meramente política. Se é assim que o mundo tem se desenvolvido nas últimas duas décadas, com um declínio, na segunda metade do século XX, do processo de sua internacionalização – processo superado por outros desenvolvimentos, mesmo com a mística poderosa e supernacional do Proletariado da teoria marxista ultrapassada pela mística das raças a serem redimidas, através de soluções nacionais ou estreitamente nacionalistas – é fácil compreender porque Raça, com R maiúsculo, tem tomado largamente o lugar de Classe, com C grande, como força politicamente dinâmica e, em alguns casos, revolucionária. A diferenciação estreitamente nacional, por um lado, e seu contrário, isto é a unificação super-nacional, de grupos humanos, à medida que esses grupos não atravessem fase de transição difícil de um status colonial para um nacional, por outro lado, ambos vêm tomando a redenção racial e a guerra racial, mais do que a guerra de classe, como sua principal motivação e como seu principal instrumento de ação ou de luta. Pois Raça, nestas últimas duas décadas, tem agido de ambos os modos: contribuindo para a diferenciação – separando rigorosamente não-europeus não só de europeus como entre si – e contribuindo para a unificação, do grupos raciais afins, através de movimentos como o Pan-asianismo, o Pan-africanismo, isto é, Pan-africanismo negro a Panlatino-americanismo. Este – o Panlatino-americanismo – é movimento baseado na tradição de relação ibérica com ameríndios que, racialmente, resultaria num tipo racial híbrido indolatinoamericano e, naturalmente, numa cultura híbrida, indolatinoamericana, associada com esse tipo racial, com a cultura podendo ser mais compreensiva do que o tipo racial híbrido. O Panlatino-americano, quando indo-americano, vem tendo, porém, um tipo racial híbrido como seu símbolo, com considerável tendência para glorificação do elemento índio, ou ameríndio, da composição euroamericana. Glorificação por vezes mais retórica do que efetiva.

Há no mundo moderno crescente desenvolvimento de um tipo mestiço, sob diferentes expressões ou nuances e através de um número já considerável de culturas também mestiças que torna a simples divisão étnica, cultural ou política do mundo, entre brancos e pretos, amarelos ou vermelhos, puros, divisão inadequada. Mesmo alguns campeões de certos movimentos racistas em favor de uma raça preta pura ou de uma cultura negroamericana pura, são mestiços. Mestiços são alguns dos mais capazes líderes de algumas das novas nações. Pode-se sugerir mesmo que os mestiços estão, talvez, se tornando a força decisiva, política e cultural, em parte considerável do mundo; e que os gostos estéticos humanos com relação à forma humana e, particularmente, à beleza feminina, estão sendo grandemente afetados pela crescente mistura racial que está se processando não apenas em grandes áreas continentais como é a do Brasil, mas, também, em várias outras. Esse processo está produzindo combinações de forma e de cor, às quais não mais se está dando ênfase nos seus possíveis efeitos, em alguns casos, cacogênicos e negativos, mas aos seus efeitos às vezes impressionantemente eugênicos; e, daí, fisicamente estéticos e positivos. Sou dos que pensam que esse aspecto estático não deve ser subestimado: sua crescente valorização entre diferentes grupos étnicos e diferentes culturas e até por parte de povos dos chamados etnicamente puros, pode contribuir grandemente para dar nova dimensão aos processos de interpenetração cultural e de mistura racial em áreas do mundo onde esse processo tem sido lento ou quase ineficaz.

Como disse recentemente (1963), eminente americano branco dos Estados Unidos, o bem conhecido sociólogo Professor Everett C. Hughes, em mensagem presidencial à Associação Sociológica Americana, a maioria dos americanos dos Estados Unidos “apparently go about tacitly accepting the cliché that whites and Negroes don’t want to marry each other and that white women are never attracted sexually by Negro men, without considering the circumstances in which it would no longer be true (if it is indeed true now)”. E acrescenta, a esse respeito, que certos novelistas, – referindo-se a novelistas americanos dos Estados Unidos – já trataram deste tema “not merely frankly, but with penetration and some sense of the aesthetics of it”. O “aesthetics of it” parece a alguns de nós de crescente importância, desde que o último argumento poderoso contra a mistura racial, agora que as teorias da inferioridade mental dos não-brancos em relação com os brancos, perdeu muito do seu prestígio, era o suposto aspecto cacogênico e repulsivamente híbrido e do maioria dos mestiços.

Esse argumento está, também, perdendo rapidamente seu prestígio e observa-se, no momento, atual decidida tendência dos criadores de modas femininas de Paris e de Roma e, mesmo, da Alemanha, para reinterpretarem as características raciais das mulheres não-brancas, como traços esteticamente positivos, além de eugênicos, nos quais eles se estão inspirando para modas de vestidos, penteados e joalheria a serem adaptados ao próprio mundo branco. Essa adaptação, todavia, está se tornando possível, em grande parte, por tipos mestiços que estão se tornando, no plano estético, uma espécie de mediadores plásticos entre os extremos. E o que está ocorrendo no plano estético está ocorrendo, de algum modo, no plano político. Num número de áreas onde novos estados nacionais estão se desenvolvendo, novas formas políticas – formas políticas mestiças – estão sendo encontradas. Não se trata, por um lado, de retorno passivo a sistemas – se podemos considerá-los sistemas – de governo, tribais, não-brancos e rudes, e nem, por outro lado, de imitações passivas, pelos não-brancos, de modelos puramente europeus ou puramente anglo-americanos. E sim de combinações capazes de atender a situações que sendo pós-tribais não devem ser subeuropéias.

O mesmo é certo de interrelações de grupos distintos da raça branca. Que sirva de exemplo a atual revolta de considerável número de franco-canadenses contra canadenses anglo-saxões. Alguns desses franco-canadenses se consideram, politicamente, o único povo branco colonizado do mundo, e, mais do que isso, um dos poucos povos colonizados, branco ou de cor. Não poucos deles, muito caracteristicamente, vão tão longe, de acordo com o escritor canadense, Mr. Mordecai Richler (Encounter, dezembro, 1964), ao ponto de se identificarem com africanos ressurgentes da África e com os negros americanos – especialmente, talvez, com os pretensos “muçulmanos” dos Estados Unidos – e a se verem como “negros brancos do Canadá”. Tal atitude parece indicar que, atualmente, em movimentos políticos com aspecto racial, alguns brancos estão imitando os negros, enquanto alguns negros estão imitando as brancos com relação a formas demagógicas de controle político ou de oposição política. Mr. Richler nos informa ter ouvido de certo intelectual franco-canadense, aparentemente do movimento político separatista: “Foi quando eu vi pela primeira vez na TV todos aqueles africanos, com seus trajos flamejantes, nas Nações Unidas que pensei: por que não nós também?”. “Negros brancos” ou “‘brancos negros”, de outras áreas do mundo, poderiam, de modo semelhante, vestir-se e agir servindo-se de estilos não-europeus de trajo, para se expressarem politicamente através desses trajos, de gestos e de atos correspondentes aos mesmos. Não seria idéia inteiramente extravagante se os delegados das nações latinoamericanas, brancos, mestiços, ameríndios ou negróides, na Organização das Nações Unidas, seguissem, neste particular, alguns dos africanos ou asianos. Eles contribuiriam, assim, com seus ponchos coloridos, para dar aspecto mais pitoresco às assembléias gerais daquela Organização, bem como para atribuir significado político à sua presença lá, que seria uma espécie de demonstração de sua independência, num assunto tão importante como o trajo, de padrões europeus ou angloamericanos, por um lado, e convenções de raça como expressão física, por outro lado. Pois o “poncho” não é símbolo racial mas cultural.

Alguns franco-canadenses separatistas estão insistindo agora, à base de uma mística racial semelhante àquela agora encontrada entre africanos de novas nações negras, em formar um Estado nacional para si, no qual se daria grande ênfase romântica – ou pseudo-romântica – a valores populares, poéticos, tradicionais franceses; e também, a uma assimilação realista de modernas técnicas industriais e urbanas de origem anglo-saxônica. O fato parece ser que os franco-canadenses já são, sociologicamente, uma cultura dinamicamente mestiça, como os próprios negros dos Estados Unidos e alguns dos negros politicamente conscientes da África e da Ásia são já expressões de culturas mestiças. Todas essas culturas mestiças têm, também, como alguns de seus portadores, considerável número de mestiços biológicos: num caso, de latinos e anglo-saxões, em outros casos, de anglo-saxões e africanos ou de europeus e africanos ou de europeus e asianos e de europeus e ameríndios. Se aparecesse agora novo Marx, ele poderia se dirigir ao crescente número de mestiços, dinamicamente culturais bem como dinamicamente raciais, do mundo, dizendo-lhes: “Mestiços do mundo inteiro, uni-vos!”. Essa união hipotética possivelmente significaria, se ela se desenvolvesse de mera ficção sociológica em algo mais, nova a efetiva presença anti-racista na política internacional. Tal presença poderia, com efeito, expressar-se como corretivo vigoroso a extremos de conflito racial na política contemporânea e como amplo substituto sociológico para uns Pax Romana ou para uma Pax Britannica – formas clássicas de equilíbrio internacional baseadas no domínio de uma raça única, pura ou aparentemente pura – de qualquer modo, enfática no seu etnocentrismo – ou de um tipo singular de civilização – também enfática quanto à sua suposta pureza ou superioridade – sobre todas as outras raças de homens e sobre suas diferentes culturas, vistas como inferiores por essa ou por aquela cultura imperial com pretensões a superior. Significaria interpenetração – sociológica e biológica. E, possivelmente, resultado dessa dupla interpenetração, longe de ser uniformidade, seria saudável combinação de diversidade regional com unidade universal.

É a visão de uma humanidade que, através de crescentes possibilidades para a mistura de seus mais divergentes tipos e para a combinação de seus vários valores culturais, se erguerá acima de ódio racial e preconceitos de casta, de cor e de cultura, visão puramente utópica de um futuro impossível? Está a pretensa “imaginação sociológica” indo longe demais, a esse respeito, num tipo do competição com o pretenso realismo político que insiste em soluções de rígido desenvolvimento paralelo dos grupos étnicos dentro de sociedades multi-raciais? Permanece a Organização das Nações Unidas dividida pela consciência de raça, e mesmo pelos símbolos de raça, entre seus membros, contribuindo assim para um racismo latente, ou potencial, na política contemporânea? Como alguém que, estando de algum modo comprometido com a política, é, principalmente, ou se considera principalmente, com relação a tais problemas como os de raça e cultura, cientista social e, possivelmente, também pensador social e, principalmente, escritor militante, posso estar muito, neste particular, sob a influência da chamada “imaginação sociológica” e mesmo da humanística. Porém minha convicção é que está dentro da responsabilidade dos líderes contemporâneos, tanto de política nacional como de internacional, de favorecer, tanto quanto possível, através não apenas de meios políticos, mas educacionais, religiosos, artísticos e outros, soluções capazes de concorrerem para interpenetração racial, bem como para a cultural. Será o corretivo às tendências, norteamericana ou sul-africana, de segregação politicamente sistemática e legalmente ou sociologicamente efetiva de raças e de culturas, dentro de sociedades bi ou multirraciais.

No que hoje se denomina “Retour aux sources” há tendência, da parte de não-europeus, agora organizados politicamente em estados-nações, ou em busca desse status, de profunda significação política. É algo que desenvolve uma consciência racial no qual os cidadãos desses novos Estados precisam basear suas reivindicações à efetiva nacionalidade. Os franco-canadenses é que estão fazendo como já foi assinalado, não apenas através de movimentos tradicionalistas – volta às origens francesas – mas através de movimento folclórico, que dê ênfase a suas diferenças culturais, dos anglo-saxões: diferenças culturais não inteiramente à parte de diferenças raciais, embora diferenças entre brancos. Movimento semelhante se processa entre os judeus, agora organizados em Estado nacional através de idealização folclórica de uma imagem atlética um tanto remota de juventude judaica racialmente eugênica: a negação do moreno. Movimentos semelhantes têm se processado entre os indoamericanos com relação a um passado ameríndio romanticamente heróico cuja lembrança tem sido mantida através do folclore mais do que através da história. Os povos da África e da Ásia estão agora ocupados em tais movimentos, nos quais a idealização de um futuro não se apresenta inteiramente livre do desejo, da parte de cidadãos de novos Estados, de glorificar virtudes que, sendo culturais, são, no entanto, glorificadas como raciais.

Como ressaltam o Professor Georges Ballandier em seu “Messianismes et Nationalismes en Afrique Noir” (Cahiers internationaux de Sociologie, Paris, XIV, 1953) e o Professor G. M. Sundkler, em Bantu Prophets in South Africa (Londres, 1948), em algumas dessas idealizações, nas quais uma mística racial está associada com aspirações políticas, mesmo os símbolos cristãos têm sido usados ou abusados em reivindicações de caráter étnico-cultural. A crescente tendência de povos de cor não-europeus, cristianizados, para pintar e representar em escultura Cristo, a Virgern Maria, santos, anjos, como pretos, amarelos ou morenos, embora seja tendência saudável do ponto de vista de um Cristianismo universalista e, portanto, pluralista, pode, no entanto, ser abusada para efeitos antes políticos do que religiosos. Essas novas imagens de figuras sagradas podem tornar-se símbolos raciais com propósitos antes predominantemente políticos do que religiosos. Porém não será verdade dessas expressões políticas de racismo, mesmo através de símbolos religiosos, serem resposta a uma apresentação estreitamente etnocêntrica e, predominantemente burguesa e capitalista, do Cristianismo, pelos europeus e não-europeus de cor, com propósitos raciais igualmente políticos e até sócio-econômicos, atrás dessa distorção de uma religião universalista? Não é verdade que para a maioria dos europeus a maioria dos povos de cor era, até recentemente, racialmente inferior, não merecendo ser esses povos tratados como iguais porém como subordinados e inspirando, assim, em alguns desses não-europeus de cor, atitudes, com relação a europeus, derivadas de sentimentos e de contra-motivações de raça, que afinal explodiriam num contra-racismo, por algum tempo defensivo e, mais recentemente, agressivo?

O “comportamento racialmente discriminador” tendo sido, por considerável período de tempo, a política da maioria dos europeus com relação a não-europeus, não é para ser considerado senão humano, embora não racional ou justo, que o comportamento político da maioria dos não-europeus, agora organizados em estados-nações, esteja sendo aumentado por exagerada consciência de raça. Como poderia ser diferente sua reação, a não ser que, por alguma mágica sociológica, se revelassem homens do pretenso tipo social “daltônico”, indiferentes à presença de raça como fator na política? O fato é que, por não pouco tempo, eles e algumas gerações de seus antepassados viveram sob o impacto da dominação política, racial e não-racial, dos europeus sobre não-europeus. Dominação política e em alguns casos exploração econômica. Não devemos nos esquecer de que o próprio conceito de raça, antes como símbolo político ou expressão de ideologia política, do que termo usado pelos antropólogos físicos, é – como nos lembra o Professor Everett C. Hughes em seu ensaio sobre “New Peoples” -“very much the creation of the national movements of Europe in the nineteenthy century”. Isto é, invenção política européia. Os povos que não prezam, de qualquer modo significativo, a pureza racial, porém fazem da miscigenação quase uma política nacional, idealizam um tipo físico nacional? Idealizam. Numerosos brasileiros, por exemplo, idealizam o “Amarelinho” quase ao ponto de fazer dele, de modo um tanto jocoso, não de todo solene, um herói nacional. Quem é o “Amarelinho”? É um mestiço rural, rústico, intuitivo, porém pequeno, pálido, aparentemente o oposto do bruto saudável, embora, de fato, forte, resistente, ágil quanto preciso – espécie de japonês dos trópicos, pela sua glorificada capacidade de vencer, não só a fadiga, a malária, o cansaço, como qualquer competição com gigantes brancos ou europeus ou ianques atléticos: em lutas, em esportes e no amor físico. Pois é parte do mito brasileiro do “Amarelinho” que o mestiço que disfarça seu vigor híbrido em aparência débil é, de fato, um David capaz de derrotar qualquer Golias branco em qualquer contenda: inclusive batalhas sexuais. O mito o torna o Romeu favorito das mulheres: herói discreto, porém que, segundo a lenda, não falha.

Deve ser notado que esta idealização brasileira do “Amarelinho” – idealização curiosa de uma quase caricatura do mestiço – não é “retour aux sources” no plano racial não-europeu – pois isto significaria a idealização de antepassado ameríndio ou negro. Pelo contrário: é glorificação não da pureza racial, mas de raça mista, aparente glorificação, através desse tipo, de um processo dinâmico: o de contínua miscigenação. É um processo que está criando no Brasil e em outras nações, toda uma variedade de tipos racialmente mistos, intermediários do puramente nórdico – há brasileiros que racialmente são nórdicos – ao negro puramente preto ou ao puramente ameríndio ou ao puramente amarelo. Pois a unidade do Brasil – que é admirável num país tão vasto – não depende da pureza racial, como culto ou mística nacional de uniformidade real ou idealizada. Depende antes da lealdade de brasileiros, etnicamente diversificados – amarelinhos ou, mais amplamente “morenos”, embora não faltem à população brasileira louros e nórdicos – a certos valores essencialmente pambrasileiros que são de importância comum a todos. Isto, e não um ideal de pureza racial, parece ser a força decisiva no moderno desenvolvimento do Brasil: ela forma o que é socialmente democrático nesse desenvolvimento e está começando a inspirar, no campo de atitudes internacionais, tendência para os brasileiros serem particularmente simpáticos a outros grupos nacionais racialmente mistos. Atitude política inspirada não pela raça mas pelo crescente desprezo pela raça.

Cerca de 40 anos atrás, o branco angloamericano dos Estados Unidos, Mr. Roy Nash, num dos seus mais penetrantes livros já escritos por observador estrangeiro sobre o Brasil, antecipou-se a outros observadores ao ressaltar que “Portuguese, Negroes and Indians, with a nineteenth century increment of Mediterranea peoples, Central Europeans and Asiatics, have fused into a Brazil thirty million strong”. Para esse futurólogo lúcido, a visão de um povo – agora com oitenta e cinco milhões de habitantes – que surgirá acima de ódio racial, casta e cor, já se tornara realidade – ou começara a se tornar – no Brasil, meio século atrás. Era fusão não reprimida nem por lei nem por costume. “More than in any other place in the world” – acrescentava Mr. Nash -“ready-mixture of the most divergent types of humanity is there injecting meaning into the égalité of Revolutionary France and the human solidarity of philosophers and class conscious proletarians”. Mais: para Mr. Nash o destino edificou no Brasil “a social laboratory which shall reveal the significance of ‘race’ and either confirm or give the lie for all time to the superstition that the admixture of widely different stocks spells degeneration”.

Ao tempo em que Mr. Nash – um anglo-saxão – se expressava de modo tão enfático sobre a miscigenação no Brasil, o uso, pelos brasileiros, da palavra “moreno”, não tinha atingido a extensão e o significado social que vem atingindo em anos recentes. Seu uso contemporâneo deixou para apenas um número muito pequeno de esnobes brasileiros a atitude de se considerarem eles próprios, e muitos dos seus patrícios, puramente brancos, biológica e sociologicamente, e portadores, no Brasil, de cultura puramente européia: a atitude do Boer da África do Sul aplicada por esses esnobes já arcaicos no Brasil. Multirracial na composição étnica de sua população, porém, em extensão considerável, meta-racial na sua consciência, mesmo em seu comportamento – inclusive seu comportamento político – pode se dizer ser a atual situação da sociedade brasileira à medida que ela está se tornando dinamicamente mais extraeuropéia. O que não significa – repita-se – ânimo antieuropeu, ou inteiramente ex-europeu, em sua forma geral, ou em suas formas gerais, da parte do brasileiro de hoje, com relação ao seu ideal de ser sociedade ou civilização. Se tal está ocorrendo no Brasil, então, seu estilo ou sua técnica de desenvolver novo tipo de civilização, com evidentes implicações políticas, pode oferecer umas tantas sugestões valiosas, ou antecipações, se não para todas, para algumas das outras sociedades multirraciais que encaram problemas de integração semelhantes àqueles que o Brasil tem encarado, e está encarando, sem tornar-se vítima de ódio racial ou de preconceito racial em suas expressões extremas ou violentas. Esse estilo envolve interpenetração de culturas, no plano sociológico e, no plano biológico, miscigenação. Envolve também o repúdio a ideologias tais como “negritude”, no seu sentido político-racial mais estreito e, ao próprio indo-americanismo, no seu sentido igualmente político-racial estreito. Pois a tendência do brasileiro é para a suplantação ou o desprezo da “Raça”, como fator decisivo, ou poderosamente condicionante, do comportamento político, pelo de metarraça. O que em tal implica a crescente extensão, entre a gente brasileira, do uso do adjetivo “moreno” para qualificar quem, na população nacional, não for branco.

FREYRE, Gilberto. O fator racial na política contemporânea. Ciência & Trópico. Recife, v.10, n.1, p.19-36, 1982.