Um homem que entendeu o Brasil
15 de agosto de 2000
Aldo Rebelo
Deputado Federal por São Paulo (PC do B)
dep.aldorebelo@camara.gov.br
Agradeço ao deputado Rebelo a permissão para reproduzir este seu brilhante ensaio publicado na revista Princípios de julho de 2000, no qual, conforme já assinalei no meu relato do nosso debate na PUC, o detalhe da informação errônea sobre a Igreja e os índios, logo no começo, em nada modifica o sentido do conjunto. — O. de C.
“Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado
Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado“
(Paulinho da Viola)
Era o ano de 1933, da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. O pintor fracassado iniciava sua escalada pelo estabelecimento da supremacia da raça ariana, destinada a limpar o mundo das impurezas do sangue e da alma. Os eslavos, por exemplo, duplamente contaminados na Rússia, pelo sangue e pelo bolchevismo contra o qual o führer se tomara de ódio.
A depressão econômica mundial desdobrava-se em depressão do espírito diante do êxito inicial da empreitada nazista. A influência do Terceiro Reich não tardaria em espalhar modelos, cópias e versões em toda a extensão do planeta. Com mais ou menos sucesso o modelo alemão arregimentava simpatias para estigmatizar o ferrão ariano no resto e no rosto da humanidade, sustentando a superioridade de um raça sobre outra.
O Brasil tateava em busca de suas identidades. Identidade de povo e identidade de nação. O embaixador inglês chegou a registrar por esse tempo que tínhamos mais orgulho em ser reconhecidos como pernambucanos, mineiros ou gaúchos do que propriamente por brasileiros. Quem sabe esse regionalismo desprovido de nacionalidade apenas refletisse a dificuldade no reconhecimento da segunda identidade, a de povo, ou de povos, de que são compostas as nações.
Para alguns, éramos um caso quase perdido. Não tivéramos a fortuna da colonização inglesa, holandesa ou francesa. Descendíamos do pior europeu, o português, e do pior português, o degredado, criminoso, sifilítico. Escória da Europa e do seu próprio país. Escória da escória, portanto.
E como para demonstrar seu estágio de degradação na escala genética e moral, aqui o português misturou-se ao índio, etapa indefinida entre bicho e gente, a quem a Igreja muito demorou em reconhecer a existência de alma. Ao deformado português o índio acrescentara sua preguiça, aversão ao trabalho, indisciplina e outros trejeitos mórbidos.
A situação perdia-se de vez com a incorporação do africano, cuja inferioridade e inadaptabilidade para a civilização e o progresso, o antropólogo baiano Nina Rodrigues tentara provar “cientificamente”. O nosso caso era feio, na observação mordaz de Darcy Ribeiro. A apreciação negativa não escapava ao senso comum, reduzia a estima individual e coletiva, embotava nossas esperanças de desenvolvimento material e espiritual.
Joaquim Murtinho, o ministro da Fazenda do presidente Campos Sales, ao explicar sua política econômica, tão parecida com a atual e tão elogiada pelos governantes de hoje, não se escusou em dizer: “Não podemos tomar os Estados Unidos da América como tipo por não termos as aptidões superiores de sua raça, força que representa o papel principal no seu progresso industrial”.
Vale a pena transcrever o comentário de Gilberto Freyre em Homens, engenharias e rumos sociais a propósito da afirmação de Murtinho:
“Era o brasileiro a sentir-se incapaz de vir a afirmar-se nação moderna – tipo de nação, para Murtinho, idealmente caracterizado pelos Estados Unidos – pelo fato – pode-se sociologicamente caracterizar – de estar situado em espaço tropical e de ser de raça inferior à dos anglo-saxões. O trópico e a raça considerados vilões.
“Entretanto, quem recuasse dois séculos – a concepção de tempo tríbio que nos facilite tal mobilidade – se depararia com o Nordeste do Brasil – nisto continuando os bandeirantes ou os paulistas – desmentindo estes dois mitos. Primeiro, pelo fato de vir, desde o século XVI – o século em que o bandeirante começou a ser uma afirmação da capacidade do brasileiro para tornar-se nação – construindo, além de uma economia, uma civilização, que despertaria no mesmo século e no seguinte, cobiças de europeus nórdicos que tentariam incorporá-las aos seus impérios. Segundo, por ter a gente ela própria já biologicamente tríbia do nordeste – branca, ameríndia, negra – demonstrado ser gente, além de vigorosa, consciente de sua pré-brasileiridade, pela maneira com que repeliu franceses e holandeses. Pelo modo por que escreveu a sangue, nas batalhas dos montes Guararapes, o endereço certo do Brasil: uma nação só e não duas ou três. Uma nação e não outra e imensa Java com uma minoria de nórdicos dominando do alto, maltratando do alto, multidões de gentes tropicalmente morenas”.
Murtinho expressava o pensamento vigente na república oligárquica dos fazendeiros de São Paulo, tal como hoje a depreciação do povo e do país espelha a mesma ilusão no capitalismo anglo-saxão na sua forma neoliberal. Para trás ficara a promessa de república mestiça e de esperança democratizadora encarnada por Floriano Peixoto, ele próprio caboclo nordestino, como gostava de se reconhecer, e nesta condição exaltado por intelectuais republicanos e progressistas como Raul Pompéia e Artur Azevedo.
O desconforto com as cores do Brasil era tamanho que, a partir das doutrinas sobre a inferioridade biológica de negros e índios, esposadas por Nina Rodrigues, pelos influentes críticos Silvio Romero e José Veríssimo e pelo sociólogo Oliveira Viana, a elite do país acreditava que a mestiçagem condenava o Brasil ao fracasso.
A nenhum deles foi possível safar-se do pessimismo da encruzilhada de raças que nos fizera população mas nos negara fisionomia e identidade de povo. Os mais otimistas fundavam suas esperanças na possibilidade do embranquecimento, espécie de conspiração que levasse para a clandestinidade da pele o que já estava irremediavelmente presente no sangue.
Casa-Grande & Senzala saiu, em 1933, nesse ambiente de treva que nublava a ciência social. A Revolução de 30 empreendia uma etapa modernizadora do Brasil, abrindo caminho para novas idéias e debates sobre a formação e a identidade do povo brasileiro, mas ainda sobreviviam discursos conservadores, quase niilistas, que nos degradavam como nação. Fazia dois anos que Paulo Prado publicara Retrato do Brasil, uma visão pessimista, típica da oligarquia cafeeira paulista, na qual o autor sustenta a impagável tese de que o povo brasileiro é triste. Fazia um ano, ainda, que viera à luz outro tiro editorial desferido contra a auto-estima nacional, Raça e Assimilação, de Oliveira Viana, em que defendia a impossibilidade da miscigenação e dizia acreditar na progressiva arianização do povo brasileiro.
E tal tendência estava em curso – por razões econômicas e sociais. De 1872 a 1940, segundo dados de José Honório Rodrigues, houve um embranquecimento da população. Os brancos catalogados pelo censo passaram de um para dois terços – em parte por causa da imigração, mas, principalmente, em virtude da sua taxa maior de sobrevivência, em contraste com o alto índice de mortalidade dos não-brancos pobres.
Até mesmo o grande Euclides da Cunha soçobrou na armadilha da dualidade de julgamento ao deparar com o sertanejo, ora “um forte”, “herói nacional”, ora uma anomalia do cruzamento de raças, perdido entre a civilização e a barbárie. Justo Euclides, que revelara o Brasil ao Brasil, ao publicar, em 1909, o épico Os Sertões, e se deixara levar pelo erro de negar a importância e a qualidade da mestiçagem, erro cometido, segundo Gilberto Freyre, nas “páginas mais acres de pessimismo sobre os povos híbridos”.
O escritor pernambucano rompeu com este mito e valorizou sobremaneira a importância do índio e do negro na formação do povo brasileiro. Anos mais tarde, um de seus maiores admiradores, que é também um dos mais audaciosos intérpretes do Brasil, Darcy Ribeiro, sentenciou: “Mestiço é que é bom” – até porque a mistura de raças é a mais eficaz arma de combate ao racismo.
Gilberto Freyre surge aí com a temeridade dos heróis e a pureza dos santos, justamente ele, antípoda de santo e de herói, para tornar exaltação o que era lamento; em virtude, o defeito; em harmonia a deformidade; em promessa a negação; em orgulho a ser ostentado o que a vergonha ordenava ocultar. De uma massa de população majoritariamente mestiça Freyre erigiu um povo. O triste trópico, vira uma nação alegre e inventiva, e de ambos surge uma civilização arrojada, promessa, por si só, de dias melhores.
A leitura de Casa-grande & senzala não tem só o impacto de uma revelação científica. Envolve o Brasil como uma profecia, tal sua força de convencimento, hipnotiza pelo estilo a um só tempo simples e grandioso como um cenário amazônico.
Gilberto Freyre redescobre o português, esquadrinha as virtudes que fizeram dele o povo apto a empreender as grandes navegações e descobertas, capaz de recolher do conhecimento mais avançado da época a técnica necessária para desafiar o desconhecido. A ousadia e a tenacidade exigidas para a empreitada retiraram os lusitanos da própria alma provada na resistência ao domínio árabe e as pretensões dos vizinhos ao seu território. Porta da Europa para o Mediterrâneo e o Atlântico, estavam os portugueses amolecidos, para dizer com Gilberto Freyre, na sua cultura, hábitos e religião, pela convivência principalmente com os povos africanos e muçulmanos. Não detinham apenas os meios materiais para a tarefa, estavam espiritualmente preparados para ela. Os apelos do velhinho do restelo perderam-se nas águas silenciosas do Tejo quando nossos antepassados partiram para a grande aventura.
“O certo – diz o sociólogo – é que os portugueses triunfaram onde outros povos falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência. Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez de se retardarem como nas possessões tropicais de ingleses, franceses e holandeses.”
Ao celebrarmos os 500 anos deste grande país, bem maior e generoso que certas comemorações mais voltadas para os defeitos que para as qualidades, podemos nos valer de antigas respostas de Gilberto Freyre para falsas questões que teimam em parecer novas. Ainda há quem ache que melhor estaria o Brasil se tivesse sido colonizado pelos holandeses, por príncipes flamengos letrados e aristocráticos, em vez de portugueses analfabetos e promíscuos, por “Van isto um Van aquilo”, em vez de Joaquins e Manuéis. Ele respondeu:
“Provavelmente isto: em vez de um Brasil que, com todas essas suas dificuldades, os seus problemas, os seus fracassos, é um Brasil onde ser negro não é opróbrio, onde ser mulato não é vergonha, onde ser pobre não é desonra onde tocar viola de papo para o ar não é indignidade, seria uma Java americana, mais rica, mais progressista, mais produtora de café ou de cacau que o Brasil de hoje, porém dominada por alguns daqueles preconceitos que tantos dos norte-europeus mais pan-econômicos e pancaucásicos levaram para o Oriente…”
E continuava a defender a gênese lusitana:
“Pois é quase certo que aqui brancos e gente de cor não seriam – tivessem os holandeses se apoderado de parte do Brasil – com todos esses triunfos materiais, um só povo, porém dois: uns brancos, outros de cor; uma casta tida por abençoada por Deus, como ensinou Calvino, por ser rica, e os pobres, por serem pobres, havidos de acordo com o mesmo ensino, por subhomens, por subgente, por enjeitados do próprio Deus…”
Apesar do elogio ao engenho e à arte portuguesas, não é o colonizador branco e sim o negro que domina Casa-grande & senzala. Pelas mãos de Gilberto Freyre o escravo africano transforma-se no alicerce em que se fundamenta a sociedade brasileira, artífice de nossa civilização. Na construção material da colônia e depois da monarquia, na miscigenação da população que aqui vai se formando, Freyre vai revelando página por página, não só em Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, e em outros ensaios, a presença africana não apenas no sangue, na cor da pele, no vocabulário, na pronúncia que abrasileirou o português, na música, no futebol, na cultura em geral, na expressão estética, no predomínio das formas e das cores, na psicologia, na beleza e graça da mulher brasileira, mesmo as mais louras de olhos verdes e azuis que não deixam de demonstrar na leveza e na feminilidade a influência da mulher africana entre nós.
Não haveria – esta é a conclusão a que chegamos após a leitura de Gilberto Freyre – esta expressão de brasileiro, singular, própria, distinta da de outros povos que conhecemos, sem a profunda influência do negro na nossa formação. Influência que o africano impregnou quando espalhou seu sangue pelo de outras raças que aqui encontrou, e mais do que isso no que incorporou de técnica, de valores para fazer de nós brasileiros detentores de patrimônio genético e cultural mais humano porque resultado de maior combinação humanamente possível.
Ainda assim, tanto vigor metodológico e descritivo não impediu que críticos desavisados atribuissem a Gilberto Freyre a construção de um paraíso racial fictício que ele jamais mencionou. Como empenhou-se em demonstrar o antropólogo Hermano Vianna, Freyre não usa a expressão democracia racial uma vez sequer em Casa-grande & senzala. Também não edulcorou a escravidão, ao contrário do que afirmam alguns de seus críticos. Casa Grande & Senzala, aliás, começa com uma descrição de barbaridades cometidas pelos senhores contra os escravos, como “queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas”.
Cenas da violência escravista que bem poderiam constar da descrição de “Tanto horror perante os céus” que Castro Alves faz nos versos de Navio Negreiro.
É do índio que Gilberto Freyre retira outra pilastra fundamental para erguer o edifício da formação do povo brasileiro. A mulher índia surge de sua obra como uma espécie de mãe e madrinha do Brasil. Não apenas a que pariu, conforme aprova recente pesquisa divulgada por geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais, mas a que criou, educou, transmitiu valores e crenças, deixou sua marca em traços permanentes da personalidade, dos hábitos, da psicologia, da culinária e das formas próprias que têm os brasileiros de expressar sua religiosidade.
O hábito do banho diário, a rede, uma certa predileção popular pela cor vermelha, tão visível no interior do nordeste nas festas de cavalhada e pastoril. A valorização do remédio caseiro, das plantas, das rezas, a aversão dos brasileiros a rigidez e, portanto as ditaduras. São essas remotas avós indígenas, para usar a expressão de Freyre, responsáveis, pelo menos em parte, por uma certa intuição libertária do caráter do brasileiro.
Gilberto Freyre não foi navegador. Antes foi cartógrafo. Os caminhos que traçou permite-nos ir onde ele não alcançou, não quis, ou não desejou chegar. Identificou nossa árvore genealógica de povo, não apenas genética mas cultural, comportamental, psicológica, desvendando os pontos incógnitos de nossa trajetória de forma a fazer-nos compreender o estágio atual de nossa existência.
Em terra tão ingrata com seus antepassados, tão avara na celebração de seus heróis, Freyre nos convoca a cultivá-los e respeitá-los na contingência histórica de seus feitos.
Ele reverencia, em particular, os que lutaram contra os holandeses, nas memoráveis batalhas de Guararapes, e celebra, em suas palavras, os heróis do povo, “os “brancos, mestiços, negros, índios na resistência afinal triunfante sobre os intrusos”. E presta comovente homenagem a um dos revolucionários brasileiros mais destemidos e mais esquecidos, Frei Caneca, a quem chama de “intelectual mártir, pensador mártir, homem de letras mártir, da causa brasileira da independência e da liberdade.”
O europeu povoa seu imaginário, suas capitais e aldeias desses símbolos, nenhum deles mais digno ou merecedor de culto que os nossos. Quando a pátria se via ameaçada, mesmo socialistas e revolucionários tiravam da penumbra da história os heróis populares, e também senhores feudais e generais monarquistas para encher de brio a alma de seus povos, do que são exemplos um Skandberg nas ruas de Tirana, um Kutuzov reclamado pelos soviéticos em plena campanha de resistência contra a invasão alemã na segunda guerra mundial.
Gilberto Freyre nos libera para a celebração dos precursores e construtores da pátria. Negros como Zumbi e Henrique Dias e os guerrilheiros dos Palmares e da Revolta dos Malês, índios como Ajuricaba, Sepé Tiaraju, Filipe Camarão e Maria Arcoverde, caboclos como Floriano Peixoto, mulatos como Machado de Assis e Lima Barreto, brancos como Tiradentes, José Bonifácio e Bárbara de Alencar encontram lugar no Panteão senão dos espaços públicos esquecidos pelos governos, pelo menos da alma de brasileiros amantes de sua terra e de sua história.
É justo que os Estados Unidos reservem seu mais elevado pedestal para George Washington, um fazendeirão caipira e semiletrado como já descreveu um historiador norte-americano, mas patriarca de sua independência. Espantoso é que por aqui José Bonifácio, estadista, cientista, militar, polígrafo, a quem Gilberto Freyre chega a atribuir virtudes superiores ao gênio do libertador Simon Bolívar, não receba, senão de forma tímida e por vezes envergonhada, o reconhecimento de artífice e patriarca de nossa Independência.
Recordemos pela atualidade e vigor dos pronunciamentos duas breves passagens dos libertadores. A primeira, de José Bonifácio na Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil Sobre a Escravatura:
“E vós, traficantes de carne humana, vós senhores injustos e cruéis, ouvi com rubor e arrependimento, se não tendes pátria, a voz imperiosa da consciência, e os altos brados da impaciente humanidade; aliás, mais cedo talvez do que pensais, tereis que sofrer terrivelmente da vossa voluntária cegueira e ambição; pois o castigo da Divindade, se é tardio às vezes, decerto nunca falta. E qual de vós quererá ser tão obstinado e ignorante, que não sinta que o cativeiro perpétuo é, não somente contrário à religião e à sã política, mas também contrário aos vossos futuros interesses, e à vossa segurança e tranqüilidade pessoal?
“Generosos cidadãos do Brasil, que amais a vossa pátria, sabei que sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição; nunca aperfeiçoará as raças existentes, e nunca formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso e uma marinha florescente.
“Sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida riqueza; não pode haver moralidade, e justiça; e sem estas filhas do céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações”.
São palavras do patriarca que ditas hoje soariam como brado contra o abandono de milhões de brasileiros à miséria em meio à opulência de tão poucos.
Ouçamos agora o grande patriota venezuelano antecipando no discurso pronunciado por ocasião da instalação do congresso de Angostura em 1819, as reflexões que o próprio Gilberto Freyre percorreria mais de um século depois:
“Tenhamos presente que nosso povo não é o europeu, nem o americano do norte, é antes um composto de África e América do que uma emanação da Europa, pois que a Espanha mesma deixa de ser Europa pelo seu sangue africano, pelas suas instituições e por seu caráter. É impossível caracterizar com propriedade a que família humana pertencemos. A maior parte do indígena se aniquilou, o europeu mesclou-se com o americano e com o africano e este mesclou-se com o índio e com o europeu. Nascidos todos do seio de uma mesma mãe, nossos pais, diferentes em origem e em sangue, são estrangeiros, e todos diferem visivelmente na epiderme; esta dessemelhança traz uma ligação da maior importância.”
A eloqüência de Bolívar era, em Gilberto Freyre, um traço literário. Tinha orgulho de ser apenas um escritor, foi um mestre da língua, reconhecido como talentoso artesão de frases plásticas como uma paisagem nordestina. Dele disse o poeta e primo João Cabral de Melo Neto, no poema que lhe dedicou pelos 40 anos de Casa-grande & senzala: “Ninguém escreveu em português / no brasileiro de sua língua: esse à-vontade que é o da rede, / dos alpendres, da alma mestiça, / medindo sua prosa de sesta, / ou prosa de quem se espreguiça.”
Um dos maiores críticos literários do País, Otto Maria Carpeaux, austríaco refugiado do nazismo que se exilou no Brasil, conta que em 1940 estava deprimido, “sem vontade de viver e sem esperança”, quando iluminou-se com a leitura de Sobrados e Mocambos, onde uma passagem memorável demonstra o estilo impecável de Freyre. Ao mostrar os estragos da febre amarela no Rio, no começo do século XIX, o escritor relata:
“Houve mesmo nativistas que se regozijavam com a ação violentamente antieuropéia da febre amarela. Febre terrível que, poupando o nativo, não perdoava o estrangeiro. Principalmente o louro, de olhos azuis, sardas pelo rosto. Mas o estrangeiro louro insistiu em firmar-se em terra tão sua inimiga com um heroísmo que ainda não foi celebrado. Só visitando hoje alguns dos velhos cemitérios protestantes no Brasil – o do Recife ou o do Salvador ou o do Rio de Janeiro – que datam dos princípios do século 19, e vendo quanta vítima da febre amarela apodrece por esses chãos úmidos e cheios de tapuru, debaixo de palmeiras gordas, tropicalmente triunfantes sobre o invasor nórdico, faz alguém idéia exata da tenacidade com que o inglês, para conquistar o mercado brasileiro e firmar nova zona de influência para o seu imperialismo, se expôs a morrer de febre tão má nesta parte dos trópicos.”
A imagem gloriosa das “palmeiras gordas, tropicalmente triunfantes sobre o invasor nórdico”, fascinou o crítico erudito, cuja abonação era um selo de qualidade. A prosa elegante de Freyre, admirador de Marcel Proust, influenciaria diretamente alguns dos luminares da literatura brasileira, como os poetas Jorge de Lima e Manuel Bandeira. O romancista José Lins do Rego admitiu que, nos primeiros escritos, copiava-o sem cerimônia. “Escrevo sobre ele quase falo de mim mesmo, tanto me sinto obra sua, tanta influência exerceu sobre a minha pobre natureza, tão sujeita aos ventos e aos tormentos das tempestades”.
Em Açúcar, livro por muitos censurado como mundano e vulgar para um sociólogo, Freyre é capaz de oferecer aos seus leitores, entre receitas de bolos e doces do Nordeste, uma das mais significativas páginas de nossa história dos costumes. Conta o mestre pernambucano:
“No século XVIII o mestre régio Vilhena se levantava na própria Bahia contra os quitutes africanos que se vendiam em tabuleiros pelas ruas da boa cidade de Tomé de Sousa. Para o seu paladar clássico de professor de grego eram umas comidas repugnantes. Mas apesar de todos os brados dos Vilhenas contra os manjares vindos da África; contra os temperos, os quiabos, as ervas dos negros; apesar do fato de muito mazombo mandar vir de Portugal cozinheiro para lhe preparar a comida à portuguesa – os quitutes africanos foram ganhando, não tanto a sobremesa, como a mesa, das casas-grandes e dos sobrados patriarcais, principalmente na Bahia. Até que no século XIX o caruru, o vatapá, o acarajé já se podiam considerar pratos nacionais.
“Os princípios desse século foram aliás de reação contra tudo que fosse português: contra o caldo verde, contra a farinha de trigo, o queijo-do-reino, o vinho do Porto. Em Pernambuco, o padre João Ribeiro – uma das figuras mais doces que já passaram pela história do Brasil – fazia questão de levantar seus brindes com aguardente de cana, em vez de vinho do Porto. Era a exaltação patriótica e romântica da cana-de-açúcar. Outros patriotas pernambucanos de 1817 substituíram o pão pela farinha de mandioca. Sob tais estímulos patrióticos, era natural que se desenvolvesse entre nós o gosto pelos quitutes indígenas e africanos”.
Quando milhões de brasileiros se dispõem a reagir ao processo de aviltamento e de deterioração por que passa a língua portuguesa, é animador reparar na importância e na atenção que Gilberto Freyre concedia ao idioma. Não somente no aspecto literário, mas na língua viva, construída pelo povo, às vezes em desacordo com a afetação purista dos buldogues da lingüística, a partir mesmo da colonização:
“Dessa primeira dualidade de línguas, a dos senhores e a dos nativos, uma de luxo, oficial, outra popular, para o gasto — dualidade que durou seguramente século e meio e que prolongou-se depois, com outro caráter, no antagonismo entre a fala dos brancos das casas-grandes e a dos negros das senzalas — ficou-nos um vício, em nosso idioma, que só hoje, e através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido e atenuado: o vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo” — lemos em Casa-grande & senzala.
Porque conhecia e valorizava a língua portuguesa, Gilberto Freyre dava-se o direito de ousar quando escrevia, arriscando-se a singularidades ortográficas e sintáticas: preferia, por exemplo, conforme a natureza africana das palavras, mucambo a mocambo, muleque a moleque — em um estilo que ele próprio chamava de “gilbertiano”. Ainda que sem revolucionar o português, à maneira de um Guimarães Rosa, renovou-o com a grandeza do seu talento e a originalidade da sua criação, fazendo a nossa língua mais exuberante, mais rica e mais bela.
Mas talvez o maior triunfo e o dom da plena atualidade de Gilberto Freyre e de sua obra estejam em constituir-se em muralha às pretensões totalitárias da hegemonia ideológica, militar, econômica, comercial, cultural, de padrões e modelos institucionais que se espalham sobre o planeta. Nas descobertas e redescobertas da brasilidade, da construção única que resultou no povo e na nação brasileira, das potencialidades de realização e afirmação de nossa gente, dos caminhos e destinos próprios que podemos trilhar, daí ressurge o Gilberto Freyre pleno, contemporâneo das difíceis escolhas defrontadas pelo Brasil.
Nestes tempos difíceis de ameaças à soberania da nação e de pressão sobre nossa identidade nacional e cultural, suas páginas como que encantadas em sociologia, história, literatura, psicologia social, desencantam-se em exército combatente marchando para o duelo de vida e de morte em defesa do orgulho nacional, da esperança e dos sonhos do Brasil e do seu povo.
Pernambucano e nordestino, seu regionalismo não se afirmava como negação da nacionalidade. Ao contrário, ser pernambucano e nordestino era para ele apenas uma forma própria de sentir-se mais brasileiro. É curioso observar o paralelo que faz entre a chamada civilização do açúcar e a civilização grega, não só pela percepção entre os traços comuns das duas sociedades mas pelo que deixa escapar de crítica ao patriarcalismo açucareiro nordestino. Mas deixemos com Gilberto Freyre:
“Mas foi justamente essa civilização nordestina do açúcar – talvez a mais patológica, socialmente falando, de quantas floresceram no Brasil – que enriqueceu de elementos mais característicos a cultura brasileira.
“O que nos faz pensar nas ostras que dão pérolas.
“Levantando-se a vista dos pobres canaviais do Nordeste patriarcal para as oliveiras de certa terra clássica do Sul da Europa, há de ver-se que também a civilização grega foi uma civilização mórbida segundo os padrões de saúde social em vigor entre os modernos. Civilização escravocrática. Civilização pagã. Civilização monossexual. E, entretanto, estranhamente criadora de valores, pelo menos políticos, intelectuais e estéticos. Muito mais criadora desses valores do que as civilizações mais saudáveis que ainda se utilizam da herança grega. Junto dela, com efeito, a bem equilibrada civilização dos modernos escandinavos empalidece e se apresenta tão estéril e tristonha como se não tivesse senão mãos e pés de gigante.
“Abaixo da grega, outras civilizações parece que têm reproduzido, em termos maciços, o caso estranho dos gênios individuais, tanto deles como as ostras: doentes é que dão pérolas.
“A antiga civilização do açúcar no Nordeste, de uma patologia social tão numerosa, dá-nos essa mesma impressão em confronto com as demais civilizações brasileiras – a pastoril, a das minas, a da fronteira, a do café. Civilizações mais saudáveis, mais democráticas, mais equilibradas quanto à distribuição da riqueza e dos bens. Mas nenhuma mais criadora do que ela, de valores políticos, estéticos, intelectuais.”
Com toda essa proeminência, Gilberto Freyre não estava — nem poderia estar, como ativista político — a salvo de erros, imune ao equívoco. A ditadura portuguesa de Antônio de Oliveira Salazar parecia-lhe, “depois de vigorosamente desbastada de seus medievalismos mais hirtos e de seu policialismo mais cru”, a solução para “algumas das atuais democracias apenas políticas do Ocidente se alargarem em democracias econômicas, sociais, culturais, com pequeno sacrifício de alguns de seus adiantamentos políticos sob forma de ritos ou expressões eleitorais”.
Mais por seus defeitos que por suas virtudes, para usar uma expressão que lhe era cara, Gilberto Freyre não compreendeu a luta patriótica dos jacobinos na consolidação da República, nem a função renovadora da Revolução de 30. Tropeçou, também, ao ignorar a natureza antidemocrática e antipopular do regime ditatorial que se instalou no Brasil em 1964. Aristocrata, livre pensador, daqueles que forjam teorias às vezes apartadas da história, iludiu-se com o regime de força que, doutrinariamente, achava capaz de resolver os problemas sociais. Politicamente tinha simpatias pela figura do déspota esclarecido. No ensaio Literatura e parlamento: o caso brasileiro, admite que os “estados nacionais precisam de ser principalmente conduzidos por executivos capazes de, em momentos críticos, agir de modo imediato e decisivo”.
Passados 21 anos, mudaria de opinião: “Não sou antimilitarista, mas devo dizer que nunca me enganei com esse surto militar iniciado em 1964, o que me levou a recusar convites do general Castelo Branco para ocupar um ministério ou a embaixada em Paris. Os militares se deram aos tecnocratas, que comprometeram os valores éticos do Brasil.”
Darcy Ribeiro soube separar o joio do trigo quando observou, a propósito de Casa-grande & senzala: “Sempre me intrigou, e me intriga ainda, que Gilberto Freyre sendo tão tacanhamente reacionário no plano político — em declaração recente chega a dizer que a censura da imprensa é, em geral, benéfica e que nos Estados Unidos a censura é mais rigorosa do que em qualquer outro país do mundo — tenha podido escrever esse livro tão generoso, tolerante, forte e belo.”
Em seu ensaio Modernidade e modernismos nas artes, seu conservadorismo não degenera em antimarxismo vulgar, como deixa entrever os trechos que se seguem:
“(…) e tendo sido o cubismo ‘uma reação dialética aos neoimpressionistas’, como o marxismo fora uma reação dialética aos hegelianistas, não encontrou outro meio de afirmação senão a violência. Ambos foram movimentos fanáticos e sectários violentíssimos. Mas sem esse fanatismo, sem esse sectarismo, sem essa violência, sua revolução teria se limitado a tempestades em copos de águas parlamentares ou em vasilhas de lavar pincéis. Pela violência modernista, marxistas e cubistas abriram caminhos para a modernidade em que começamos a viver hoje, tanto nas artes plásticas como na engenharia social ou na arte política. Sem o cubismo, talvez ainda estivéssemos na fase de arranha-céus em estilo gótico ou em estilo mourisco, como os da fase paleotécnica de Nova Iorque; ou na pintura puramente anedótica, costumista, sentimental ou “naturalista” do século XIX. Sem o marxismo talvez continuássemos a pretender resolver os problemas de engenharia social com a democracia liberal ou com o parlamentarismo do século XIX; os problemas da miséria, com a filantropia apenas sentimental”.
E prossegue nesse tom:
“(…) sem a teoria e a experiência marxistas não haveria a atual democracia social: nem a cooperativista nem a experimentalmente socialista nem a planificista. São todos tipos pós-marxistas de democracia que, em vários países, já se apresentam com resultados capazes de nos fazer acreditar no êxito de avanços verdadeiramente revolucionários no sentido de uma nova e complexa organização das relações entre os homens”.
Recomenda lembrar aqui a enorme admiração que Marx e Engels dedicam a Balzac, apesar dos pendores monarquistas e conservadores do grande escritor francês. O próprio Karl Marx, tão logo concluísse O Capital, pretendia dedicar um ensaio àComédia Humana – soberbo painel sócio-literário da França na primeira metade do século XIX. Marx leu Balzac como um fino historiador de costumes. O autor do Manifesto Comunistatambém cobriu de elogios os escritores realistas ingleses – Charles Dickens, Charllotte Brontë, entre outros –, “cujas páginas evidenciadoras e eloqüentes revelaram ao mundo mais verdades políticas e sociais que todos os políticos profissionais, publicistas e moralistas juntos”.
Alheios a esta chave de análise sugerida por Marx, alguns críticos afunilam a obra de Gilberto Freyre num suposto saudosismo do mundo patriarcal. Tratemos de separar a crítica justa do conservadorismo político do autor de Nordeste da ação sectária e, pior, interesseira de muitos dos seus desafetos de ontem e de hoje. Crítica tão sectária que ele foi banido da biblioteca de certas correntes de pensamento. Sentiu-se tão desconfortável com esta censura intelectual que, em 1961, ele se recusou a participar da banca que examinaria a tese de doutorado de Fernando Henrique Cardoso.
A crítica é intolerante, em primeiro lugar porque Gilberto Freyre descortina uma paisagem antropológica da vida brasileira, não está voltado para as transformações mas para as permanências. Preocupou-se em descobrir como os elementos do passado têm capacidade de conservação durante o processo de transformação das estruturas econômicas, sociais e políticas. A simpatia pelo mundo patriarcal exige uma leitura crítica de sua obra, o que levará quem o fizer a perceber, ao lado de passagens simplórias e mesmo simpáticas ao patriarcalismo, denúncias contundentes dos seus efeitos sobre os escravos, os índios e a sociedade.
É possível falar do alto preço que custou aos primeiros esforços de construção do socialismo, o menosprezo a esses elementos de permanência e continuidade. Não seria exagerado afirmar que o desprezo pelos elementos culturais, religiosos e da tradição na formação da consciência dos povos das nações socialistas foi uma das bases do voluntarismo que contribuiu para o seu colapso. Voluntarismo que além do apoio na própria vontade sobrevalorizou fatores econômicos e materiais em prejuízo de valores subjetivos, ideológicos e culturais que, poderíamos dizer repetindo Gilberto Freyre, “deixariam os seus dirigentes desgarrados dos dirigidos; na situação de remadores que remassem no seco; sem água bastante para navegarem; com a chamada nau do Estado encalhada sobre a areia ou sobre as pedras”.
Conforta que esse mesmo erro ancorado em certo determinismo e voluntarismo conduz para o impasse a arrogância neoliberal de imaginar poder reduzir a vida de povos e nações aos interesses puramente mercadológicos. A resistência dos povos, tanto as que geram esperança – a juventude sérvia sobre as pontes do Danúbio, desafiando as bombas da Otan – ou as que resultam do desespero – as lutas fratricidas entre povos subjugados, muitas vezes estimuladas pelo inimigo comum desses mesmos povos – somente demonstram em dupla face que o pensamento único é incapaz de conter toda a carga de emoções, sonhos e busca de afirmação da humanidade.
Gilberto Freyre também foi vítima deste preconceito redutor. Ao ser publicada, sua obra foi acusada de “negrófila”, pornográfica, anticlerical. A elite pernambucana chegou a programar atos públicos para queimar em fogueiras exemplares de Casa-grande & senzala. Conta o médico e escritor alagoano Dirceu Lindoso que ao informar a um amigo do pai, pelos idos dos anos 40, que pretendia estudar sociologia no Recife, este o admoestara dizendo que sociologia era carreira para comunistas como Gilberto Freyre.
Assis Chateaubriand chamava-o de comunista pelos jornais dos Diários Associados, e o acusava de escrever discursos bolcheviques para jornadas políticas de José Américo de Almeida. Com certeza, grandes nomes da oligarquia baiana já acreditavam nisso quando, em 1942, Gilberto Freyre engajou-se na campanha dos comunistas pela imediata entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Numa série de conferências em Salvador, onde era aclamado por um grupo liderado pelo escritor Jorge Amado, fazia elogios à participação da União Soviética no conflito. Jorge Amado, seu colega na Constituinte de l946, propôs o nome de Freyre para o Prêmio Nobel de Literatura.
Além de escritores, também políticos, cientistas sociais e críticos rigorosos atestaram a importância da obra do mestre de Apipucos. Antonio Candido, em prefácio de Raízes do Brasil, disse de Gilberto Freyre: “O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro. Inclusive pelo volume de informação, resultante da técnica expositiva, a cujo bombardeio as noções iam brotando como numa improvisação de talento, que coordenava os dados conforme pontos de vista totalmente novos no Brasil de então. Sob este aspecto, Casa-grande & senzala é uma ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e mesmo Oliveira Viana, e os pontos de vista mais especificamente sociológicos que se imporiam a partir de 1940.”
Registre-se, aliás, que Raízes do Brasil foi escolhido por Gilberto Freyre para inaugurar a prestigiada coleção Documentos Brasileiros, da Editora José Olympio, que dirigiu até o número 31.
Crítico de boa cepa, o historiador marxista Nelson Werneck Sodré, incluiu Freyre como fonte fundamental para o estudo da sociedade brasileira, em seu livro clássico O que se deve ler para conhecer o Brasil. Com evidentes reservas, o historiador recomenda Casa-grande & senzala como “obra é de consulta, conquanto se ressinta de método histórico e abandone quase totalmente os aspectos econômicos”.
Outro dos reparos mais renitentes é que a obra freyriana legitima a herança patrimonialista, tão anatemizada de responsável pelo nosso atraso político e econômico. Trata-se de crítica discutível sob vários aspectos. O Brasil, como todas as demais nações latino-americanas, é uma nação construída pelo estado. Como nos lembra Raymundo Faoro em Os donos do poder, o capitalismo só floresceu plenamente na Europa e na Ásia em nações revolvidas pelo feudalismo. Em que pese, portanto, o fato de a estrutura patrimonialista do estado português e brasileiro ter facilitado a expansão do capitalismo comercial, não conseguiu criar as condições ideais para o desenvolvimento pleno do capitalismo industrial na sua forma anglo-saxônica.
E aí surge a singularidade da visão aristocrática de Gilberto Freyre. Se por um lado esta o impediu de aproximar-se do socialismo e de formas mais avançadas de democracia com participação popular, ao mesmo tempo lhe permitiu o distanciamento daqueles que olham o capitalismo anglo-saxão como única esperança de nossa redenção, e sua ausência no Brasil como um fato lamentável e uma deficiência estrutural, que nos deixou em desvantagem em relação aos europeus e norte-americanos. Ao distanciar-se deste modelo tornou-se Gilberto Freyre a um só tempo crítico da matriz socialista na sua forma institucional e econômica, mas também das sociedades geridas pelo mercado. Seu olhar para o hemisfério Norte não foi para lamentar porque somos diferentes e porque ainda não chegamos lá. Ao fazer o elogio do caráter mestiço brasileiro destruiu o complexo de inferioridade racial e mostrou que nisso estava nossa força. Talvez ainda reste por ser destruído o complexo da ausência de relações capitalistas em todos os domínios da vida material e espiritual do país .
Neste aspecto Freyre lembra Eduardo Prado de A ilusão americana, no que este tinha de aristocrata e de saudosista da etiqueta do antigo regime, tão enganado no seu combate à república, mas de tanta premonição na crítica que fez ao nascente imperialismo americano.
Bem vistas as coisas, as atuais tentativas de destruir a chamada herança patrimonialista, que em sua forma mais moderna teria dado em capitalismo de estado, não passa de uma grande farsa. Sob o pretexto de modernizar as relações econômicas, as reformas promovidas pelos atuais governantes apenas substituíram o capitalismo de estado, sucedâneo moderno do estado patrimonialista, por um capitalismo de rapinagem, no qual os críticos do suposto atraso apressam-se em transformar o patrimônio outrora público em dote pessoal ou de amigos, quando não de felizardos compradores estrangeiros.
Os ensaios de Gilberto Freyre nos servem ainda hoje de frondosa vassoura de piaçaba para tanger do nosso terreiro o lixo ideológico que na forma de multiculturalismo ensandece a cabeça dos que tentam aportar no brasil com modelos norte-americanos de combate ao racismo.
“O multiculturalismo é um ‘apartheid’ de esquerda” disse em primoroso ensaio publicado em O Estado de S. Paulo, o antropólogo baiano Antônio Risério. Gilberto Freyre surpreende o multiculturalismo na sua essência segregacionista. A presença deletéria do racismo no Brasil deve ter como principal arma de combate a valorização da miscigenação – sem torná-la valor absoluto ou obrigatório, o que consistiria em outra forma de racismo – e da insubstituível presença do negro na formação e na cultura do povo brasileiro.
Em 1944, Monteiro Lobato dispôs-se a antever: “O Brasil futuro não vai ser o que os velhos historiadores disseram e os de hoje ainda repetem. Vai ser o que Gilberto Freyre disser”. Ao que podemos juntar a previsão de Nélson Rodrigues: “Daqui a duzentos anos Gilberto Freyre estará cada vez mais vivo, e sua figura terá a tensão, a densidade, a atualidade da presença física”.
Um dos melhores elogios lhe foi feito pelo educador Anísio Teixeira: “Em outra época, seria o pensador de sua geração; neste século 20, é o seu maior pensador”. Astrojildo Pereira, fundador do Partido Comunista, crítico literário reconhecido, foi um dos primeiros a saudar o atrevimento metodológico da obra de Gilberto Freyre: “É algo de explosivo, de insólito, de realmente novo a romper anos e anos de rotina e chão batido.”
Justo seria considerar a contribuição do mestre alagoano Gilberto Macedo, professor Titular do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Alagoas, em seu Casa grande & senzala, obra didática?, quando sugere o uso da obra de Gilberto Freyre para estudos universitários e interdisciplinares dos países latino-americanos e do Brasil. Creio que uma Cátedra Gilberto Freyre, dirigida à iniciação sociológica em todos os graus do ensino em nosso país, seria não apenas uma justa homenagem, mas uma contribuição à formação multidisciplinar de nossos estudantes. Algum paralelo há entre a preocupação de Gilberto Macedo e aquela que levou o sábio e revolucionário alemão Engels e posteriormente o dirigente socialista russo Lênin a aconselhar a distribuição das obras dos materialistas franceses aos estudantes e ao povo como forma de elevar sua capacidade de compreender o mundo.
Essa, a estatura de Gilberto Freyre, de quem celebramos o centenário do nascimento. Escritor, sociólogo, historiador, antropólogo, etnólogo, jornalista, político, Gilberto Freyre era, sobretudo, brasileiro — essencialmente brasileiro, apaixonadamente brasileiro. Graças à contribuição de sua obra, deixamos de nos sentir uma nação condenada ao subdesenvolvimento e à miséria para crer no futuro grandioso a que nos destinamos. “É lamentável — deplorou Roland Barthes — não ter tido ainda a França um intérprete assim dos primeiros séculos da sua formação”. Nós o tivemos. A ele, a nossa homenagem, o nosso respeito e a nossa gratidão por ter erguido obra que o faz um dos mais fecundos e argutos intérpretes do Brasil.
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