Assunto esotérico

 

Olavo de Carvalho

Época, 2 de setembro de 2000

Há uma explicação para nosso fracasso na luta contra o crime. Mas é segredo

Com sua careta exposta à abominação nacional em anúncios de “Procura-se”, Nicolau dos Santos Neto é rastreado até em Nova York por policiais brasileiros. O juiz, como se sabe, é suspeitíssimo. Porém infinitamente mais suspeito é promover tamanho investimento publicitário e turístico na busca de um simples acusado, ao mesmo tempo que traficantes e quadrilheiros condenados, com sentença transitada em julgado e meia dúzia de homicídios em seu adorável currículo, ficam vendo televisão em casa sem que ninguém os perturbe, embora toda a polícia saiba o que fizeram e onde moram.
Uma alegação possível para justificar tão patente inversão da hierarquia lógica é que Nicolau se tornou um símbolo, como Sérgio Naya ou João Alves. Mas não haverá algo de bizantino em colocar tão feroz empenho na perseguição de símbolos enquanto milhares de inocentes morrem nas ruas atingidos por balas que de simbólico não têm nada?

A obsessiva tagarelice “ética” que há 12 anos sacode o parlamento, a imprensa, as escolas e os lares deste país é talvez a mais vasta onda de acusações públicas de que já se teve notícia em toda a História. Não é espantoso que tão portentosa mobilização de probidades indignadas só tenha gerado o aumento formidável das taxas de corrupção e de violência? Que raio de caça às bruxas é essa, que só multiplica o número de feitiçarias?

Fracasso tão completo e patente não pode ser explicado por causas acidentais. Bem ao contrário, deve haver algo de errado na essência da coisa, no espírito mesmo que inspirou e dirige a espetacular encenação. E o que há de errado é precisamente isso: trata-se de pura encenação.

Controlada por pessoas ideologicamente comprometidas com um projeto revolucionário, a fingida cruzada moralizante não visa a purificar a ordem democrática, mas a destruí-la, aproveitando-se das falhas do sistema para acirrar as contradições, confundir a opinião pública, fomentar o ódio entre as classes, desorganizar a Justiça e inibir o aparelho policial, ao mesmo tempo que favorece a conversão de marginais em guerrilheiros e a transferência sutil de parcelas crescentes do poder de Estado para ONGs financiadas do Exterior, cúmplices do mesmo projeto.

Pois todos esses resultados vêm sendo obtidos a olhos vistos, enquanto as finalidades alegadas – controlar a corrupção e a violência – se tornam mais inatingíveis a cada dia que passa. Julgada por seus objetivos expressos, nossa “operação mãos limpas” atestaria uma dose de inépcia acima do humanamente crível. Avaliada segundo suas finalidades veladas, mostra apenas a aplicação racional e sistemática daquilo que os manuais de estratégia revolucionária ensinam.

Mas a estratégia revolucionária tornou-se conhecimento esotérico, só acessível a seus praticantes profissionais e a raros aficionados excêntricos. Mesmo do currículo das escolas militares ela foi retirada, ganhando a força mágica dos fatores invisíveis. Falar desse assunto, hoje em dia, é chocar-se contra o veemente desmentido dos beneficiários do segredo e a incredulidade afetada dos que, a admitir humildemente sua ignorância do truque, preferem consentir em ser feitos de otários. Até os segredos de Polichinelo têm o dom de proteger-se a si mesmos.

Astúcias Indígenas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 31 de agosto de 2000

Os índios que anarquizaram os festejos de 500 anos de Brasil e foram reprimidos pela polícia estão exigindo uma indenização bilionária. Um dos pretextos é: “danos culturais”. Mas quanto o Estado deveria cobrar deles pelo dano que, a serviço de potências estrangeiras, infligem à cultura nacional ao negar publicamente a legitimidade da existência do Brasil enquanto nação? Sim, quando proclamam que o território é deles, que todos os que viemos nas caravelas ou nas levas de imigrantes somos intrusos e usurpadores, o que reivindicam é a reintegração de posse do maior latifúndio que já existiu na face da Terra, e a conseqüente dissolução do Estado indevidamente instalado na sua propriedade por um bando de posseiros, arrivistas e criminosos.
Um Estado que aceita discutir nesses termos não precisa nem mesmo ser destruído: ele já acabou. Pois o protesto dos índios não se voltou contra o governo, contra o regime, contra esta ou aquela lei: voltou-se, com toda a força de uma irracionalidade fingida, contra a civilização brasileira no todo – excetuado o elemento indígena – e portanto contra a existência do organismo estatal que é a cristalização jurídica e política da sua obra de cinco séculos. Que o façam de maneira acentuadamente paradoxal, abrigando-se à sombra das leis de um Estado soberano para negar a soberania do mesmo Estado, é um curto-circuito lógico que poderia ser atribuído à ingenuidade pretensiosa de povos ainda mal despertos para as realidades complexas da civilização moderna, se não fosse antes um nonsense planejado, obra da astúcia dos estrategistas europeus e norte-americanos que os orientam, todos eles bem treinados na técnica de suscitar crises pela estimulação contraditória da opinião pública, na arte de desarmar a reação de um povo pelo choque dos sofismas paralisantes. Criar “movimentos sociais” no Terceiro Mundo é hoje uma profissão especializada, ensinada a alunos europeus e norte-americanos em cursos de alto nível nos organismos internacionais. Nenhuma, absolutamente nenhuma reivindicação ou agitação se elevou neste país nos últimos vinte anos sem ser planejada por engenheiros sociais estrangeiros, subdiada por fundações e governos estrangeiros, respaldada pela mídia estrangeira e enquadrada meticulosamente numa estratégia global em que os interesses dos reclamantes entram apenas como gatilhos para desencadear transformações que vão muito além do que esses enfezados marionetes possam imaginar.
Cada um desses movimentos é pura chantagem, calculada para desferir um golpe mortal na soberania do Estado brasileiro. É mais um passo na marcha incessante e brutal de centralização, onde um poder maior, com pretensões ao monopólio, dissolve os poderes intermediários com a ajuda dos grupos menores, descontentes com a situação local.

Já escrevi, outrora, em defesa das culturas indígenas. Mas, hoje, discutir a justiça ou injustiça da causa indígena em abstrato e fora do contexto político mundial é cair num engodo lógico, num jogo de diversionismo hipnótico. Ninguém que queira justiça começa por negar a autoridade do próprio tribunal ao qual recorre. O que os índios e seus mentores estão exigindo não é justiça: é a destruição do tribunal.
A manifestação ocorrida nos festejos tem as marcas inconfundíveis de uma operação planejada por cientistas comportamentais para gerar artificialmente um constrangimento sem saída: permiti-la seria dar caráter oficial à negação da legitimidade do Estado brasileiro; reprimi-la é expor-se a humilhações na mídia internacional e a chicanas jurídicas como esse grotesco pedido de indenização.
Os índios, um dia, foram povos indefesos, que só sobreviveram à derrota graças à generosidade do vencedor, generosidade que eles próprios jamais tiveram para com as tribos que guerreavam. Hoje, eles são uma arma temível nas mãos das potências que regem o mundo, e aproveitam-se dessa situação para tirar vantagens abusivas e destruir o Estado que os acolheu e lhes deu direitos especiais. A malícia de sua estratégia revela que já não têm mais nada do pretenso caráter “primitivo” que um dia justificou a promulgação desses direitos: alcançaram a maioridade, tornaram-se um grupo político moderno, astucioso e perigoso, aliado de interesses imperialistas e inimigo jurado da nação brasileira.

Que é que você quer com a filosofia?

Entrevista de Olavo de Carvalho a Fabíola Cidral

Jornal Vidaqui (São Paulo), 31 de agosto de 2000


Em primeiro lugar, o senhor poderia definir a filosofia?

É um cacoete universal dizer que a filosofia não se define, mas estou persuadido de ter encontrado uma boa definição, da qual nenhuma das filosofias existentes escapa e que não se aplica a nenhuma outra atividade cognitiva: Filosofia é a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Esta definição aplica-se inclusive às filosofias que negam o conhecimento ou que negam a unidade da consciência.

No seu Seminário de Filosofia o senhor ensina a prática da filosofia. O que é praticar filosofia?

No meu curso, filosofar é partir de um problema colocado pela vida real e, mediante sucessivos exames, tentar elevar-nos a um ponto de vista universalmente válido a respeito dele. Em seguida, descer novamente para examinar nossas atitudes práticas, morais, diante dele. Nestas subidas e descidas, o auto-exame se torna tão importante quanto o estudo objetivo do problema e é inseparável dele.

Qual a sua dica para quem deseja começar a estudar a filosofia?

Decidir, em primeiro lugar, se você quer a filosofia como simples profissão acadêmica, como autêntica disciplina intelectual, como guiamento integral da alma ou tudo isso junto. A profissão acadêmica é hoje o túmulo da filosofia e recomendo-a a quem tenha vocação de coveiro. Se você quer a filosofia como disciplina intelectual, certifique-se primeiro de que tem já uma boa cultura científica e humanística (sobretudo literária e histórica) e um amplo domínio do idioma. Em seguida, anote as perplexidades e os problemas que essa educação adquirida suscitou em você, e, uma vez confirmado que esses problemas são realmente problemas para você, que você tem um interesse vital neles, vasculhe os clássicos da filosofia para saber o que disseram a respeito. Nessa pesquisa pode ser útil um bom dicionário de filosofia, ou um repertório como o que Mortimer Adler e Mark Van Doren organizaram para a série “Great Books of the Western World”. Organize as respostas em ordem cronológica e, se o conjunto delas não satisfizer à sua demanda de respostas, busque formular suas próprias respostas pessoais, tratando de manter a discussão num nível compatível com o que foi alcançado pelos filósofos que trataram do assunto antes de você. Quando você tiver conseguido fazer isso com um único problema filosófico, por modesto que seja, você já será um autêntico estudante de filosofia. Se daí para diante não puder mais prosseguir sozinho, venha falar comigo e lhe darei mais umas dicas.

Quais os outros estudos que estão necessariamente ligados com a filosofia?

É o que eu vinha dizendo. A filosofia é uma reflexão sobre o conhecimento adquirido, e supõe, por isto, uma boa cultura pessoal, principalmente a cultura da imaginação (através das artes). Se eu fosse planejar a educação de um aluno ideal, primeiro eu abriria para ele os horizontes do imaginário, através do teatro, da literatura, do cinema, da música, dos mitos, das religiões, dos símbolos; depois o poria em contato com os debates públicos, a política, as leis, a constituição objetiva da sociedade. Quando ele chegasse a um ponto de saturação, com milhões de contradições se agitando na sua cabeça, aí sim começaria o aprendizado da crítica filosófica, complementado pelo estudo das ciências. Mas esse aluno ideal não existe, e essa gradação seriada, na prática, tem de ser feita de maneiras inversas, cruzadas e combinadas.

Qual o perfil das pessoas que freqüentam o seu curso?

Pessoas desiludidas com o ensino acadêmico da filosofia.

O senhor acredita que estudar filosofia pode mudar a vida de uma pessoa? A sua mudou?

Se o estudo da filosofia não mudar a pessoa – e quero dizer mudar para melhor –, é porque simplesmente não se realizou, ficou nas exterioridades, na imitação, na “cultura” filosófica. O estudo verdadeiro começa na hora em que, tendo obtido pela primeira vez uma solução pessoal válida para um problema filosófico, o aluno sente um repuxão na consciência, um apelo a se tornar melhor para ser digno daquilo que sabe.

Como foi a sua formação? Quando despertou este interesse pela cultura?

Meu interesse em saber nasceu na adolescência, diretamente suscitado por uma angustiante sensação de não estar entendendo nada – nem da minha vida, nem da conduta das pessoas em torno, nem do que me ensinavam na escola. Minha formação começou no autodidatismo, por absoluta impossibilidade de encontrar, na época, um ensino à altura do que eu necessitava. Mas não foi um autodidatismo de diletante, porque aos quinze anos eu já me preocupava com a questão mesma da auto-educação, lia muitos livros sobre o assunto e tentava manter meu aprendizado num nível comparável ao do que eu sabia existir nos melhores centros universitários, não só da época como também de outras épocas. Fica aí um conselho: se você quer se educar a si mesmo, tem de estudar primeiro a questão mesma da educação, para não cair num caos de leituras sem proveito.

Mais tarde, quando julguei ter chegado ao limite do que podia aprender sozinho, comecei a escrever para estudiosos consagrados, pedindo ajuda e orientação em questões específicas. Incomodei muita gente, no mundo todo, com minhas perguntas, e em geral fui muito bem recebido. Só tardiamente me interessei por um determinado curso universitário, então dirigido pelo Pe. Stanislavs Ladusans, um filósofo estoniano residente no Brasil. No fim de tudo você descobre que a única finalidade da educação é habilitar o sujeito a aprender sozinho, isto é, a ser um autoditada.

Quais os autores que mais o influenciaram?

Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz, Schelling, Husserl, René Guénon, Eric Voegelin, Xavier Zubiri, além, naturalmente, das escrituras sacras das várias tradições religiosas e também de algumas obras fundamentais da literatura (A Divina Comédia de Dante, as peças de Shakespeare) e das ciências humanas (os escritos de Max Weber, de Lipot Szondi, de Viktor Frankl, por exemplo).

Quais os filósofos da atualidade que o senhor admira?

Depois de Voegelin e Zubiri não apareceu mais nada de interessante na filosofia propriamente dita. Mas, nas ciências humanas, há esse esplêndido René Girard.

E qual o maior da história?

Aristóteles. Quanto mais tempo passa, maior ele fica. Hoje, na filosofia das ciências, Aristóteles é a grande novidade, depois que os biólogos o descobriram.

Como veio a idéia de lançar o primeiro livro?

Durante muito tempo eu mesmo publiquei meus livros, em tiragens pequenas, para um círculo de alunos e amigos. Em 1995, por insistência do Bruno Tolentino, lancei “O Jardim das Aflições” numa tiragem maior, por uma editora profissional. Aí, por uma coincidência, fui trabalhar na Editora da Faculdade da Cidade e lancei por lá “O Imbecil Coletivo”, que deu uma encrenca dos diabos e me lançou em polêmicas de imprensa, que não procurei mas das quais não fugi e nas quais, graças a Deus, me saí muito bem.

Como é a sua preparação para escrever uma obra? E um artigo?

Leio sempre de lápis na mão, anotando idéias, perguntas e objeções que a leitura me sugere. Faço também certos exercícios mentais, por exemplo o de tentar traduzir em imagens plásticas uma idéia abstrata, ou, ao contrário, o de tentar expressar em palavras certas impressões fugazes – sensações, recordações. Em seguida esqueço tudo e mudo de assunto. Meses depois a coisa toda reaparece organizada e límpida. Aí exponho minhas conclusões em aula e as submeto, com a ajuda dos alunos, a toda sorte de críticas, e faço novas leituras para tirar as dúvidas. Só então fixo a coisa por escrito. É um método complicado e apareceu sozinho, com a experiência. Não sei se serviria para outras pessoas, mas comigo funciona.

Para os artigos, não preciso me preparar, pois utilizo sobras das informações colhidas para as aulas. Apenas tenho de caprichar mais na redação, pois uma coisa é escrever para alunos, que me conhecem e já sabem situar tudo no contexto certo, outra coisa escrever para pessoas que nunca me viram mais gordo.

“O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras” foi a sua obra mais polêmica e mais vendida. Qual a causa do “Imbecil Coletivo”?

Eu ficava muito impressionado com a tolice cada vez maior dos nossos intelectuais, sobretudo no que eles escreviam em revistas e jornais de cultura. Peguei o hábito de toda semana, no começo da aula, a título de aquecimento mental coletivo, comentar essas coisas para a classe. Ao voltar para casa, escrevia o que tinha dito e na semana seguinte distribuía o escrito para os alunos. Assim fui colecionando, sem nenhuma intenção de livro, os capítulos que vieram a compor “O Imbecil Coletivo”.

É verdade que o senhor já recebeu ameaças de morte?

Ameaças, não. O que recebi foi informação de um “insider” arrependido, que me disse que um grupo a que pertencia já tinha mapeado meus trajetos e horários, já fazia ponto na esquina do meu prédio e aguardava o momento propício de armar uma tragédia. Contei a coisa a um amigo e ele me sugeriu que pusesse um aviso na minha homepage, para que o grupo soubesse que o plano tinha vazado. Um outro amigo, o ex-ministro da Cultura, Jerônimo Moscardo, embaixador do Brasil na Romênia, leu a coisa e me ofereceu um trabalho temporário em Bucareste. Fiquei lá uns meses até a coisa amansar e voltei.

Qual o seu maior sonho profissional?

Na área da investigação, completar as pesquisas que comecei. Como escritor, completar os livros em preparação, especialmente “O Olho do Sol” e “Ser e Poder”. Na educação, conseguir formar uma centena de intelectuais da pesada para eles educarem o Brasil de amanhã, se houver tempo. No jornalismo, quebrar o monopólio que domina a cultura brasileira e abrir espaço para um debate intelectual decente. Feitas essas coisas, pretendo me dedicar mais à vida espiritual, porque no fundo a única coisa interessante é Deus.

Quais leituras que o senhor indicaria para aqueles que queiram saber um pouco mais sobre Filosofia?

A “História da Filosofia” de Frederick Copleston e “Dialectics” de Mortimer J. Adler são um bom começo.

Quando será lançado o próximo livro? Qual o assunto?

Vou lançar em breve uma coletânea de ensaios, “História e Ilusão” e uma reedição de “O Jardim das Aflições”. Tenho também dois livros escritos pela metade, “O Olho do Sol”, sobre teoria do conhecimento, e “Ser e Poder”, filosofia política. Espero terminá-los logo.

Quantos artigos o senhor escreve por semana? Para quais jornais e revistas?

Escrevo quatro artigos mensais para “O Globo”, quatro para “Época”, dois para o “Jornal da Tarde”, dois para “Zero Hora” e um para “Bravo!”, além de colaborações esporádicas em revistas e jornais de estudantes.