A pergunta que resta

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 28 de setembro de 2000

Candidato à reeleição, o prefeito de Governador Valadares (MG), Bonifácio Mourão, mandou imprimir panfletos que mostravam a foto de dois homens beijando-se apaixonadamente e, abaixo dela, a inscrição: “É isto o que o PT quer para as nossas famílias. Diga não a essa aberração.”

A Justiça Eleitoral mandou apreender os panfletos, sendo aplaudida pela mídia elegante, a qual aproveitou a ocasião para qualificar o prefeito de neonazista.

Não sou idiota o suficiente para deixar de captar o sentido profundo da mensagem que, com essa decisão, as autoridades eleitorais transmitem ao povo brasileiro. É o seguinte:

1) Se é ilegal um candidato qualificar de aberrante o conúbio homoerótico enquanto tal, muito mais o será chamar de aberrante o projeto de lei que confere a essa modalidade de relação o estatuto de união matrimonial sob a proteção do Estado.

2) Se, em projeto, essa lei já não pode ser criticada como aberrante, muito menos o poderá quando aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República.

3) Se é proibido um candidato falar contra os casamentos gays agora que eles ainda não estão na lei, muito mais o será quando estiverem.

4) Assim, embora o uso da palavra “aberração” seja lícito e costumeiro no linguajar de quem condene e deseje revogar alguma lei ou mesmo algum dispositivo constitucional, a lei dos casamentos gays desfruta de um privilégio especialíssimo, que amordaça por precaução os que venham a pensar em criticá-la, antes de aprovada, ou em pedir sua revogação, depois.

5) Se é ilícito um candidato referir-se aos casamentos gays usando um termo bastante comedido que significa apenas “erro” ou “perturbação”, muito mais o será empregar, no mesmo contexto, o termo bem mais pesado “abominação”, que significa coisa asquerosa e digna de repulsa. Como é este último precisamente o termo utilizado no Antigo Testamento para qualificar a conduta homossexual, com mais presteza ainda a Justiça Eleitoral deveria apreender os panfletos se, em vez da declaração pessoal do candidato, estampassem o versículo 24 do capítulo 14 do Terceiro Livro dos Reis. Se é proibido imprimir as opiniões do sr. Mourão, proibidíssimo portanto é publicar, ao menos em tempo de eleições, esse trecho das Sagradas Escrituras.

6) Como a declaração ostentada nos panfletos, de que o PT deseja ver casamentos gays entre os membros de nossas famílias, é uma simples verdade empiricamente comprovável – pois afinal todos os gays provêm de alguma família e o projeto de lei que os une em matrimônio é criação da bancada petista, na pessoa da aliás candidata à Prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy -, a proibição da circulação desses papéis deve ser compreendida no preciso sentido de que, contra os gays ou contra o projeto, mesmo a evidência mais patente não pode ser alegada nas campanhas eleitorais, cabendo apenas discutir se poderá sê-lo fora delas.

7) Mas se no caso está proibido não somente alegar fatos, mesmo comprovadamente verdadeiros, mas também emitir opiniões, seja as brandas como a do prefeito Mourão, seja, mais ainda, as duras e contundentes como a do Livro dos Reis, isto é, se contra o homossexualismo e contra o projeto de d. Marta não se pode alegar nem juízos de fato nem juízos de valor, então essa proibição abrange, simplesmente, todas as afirmações e todas as negações.

Restam, portanto, somente as interrogações. Aproveito-me dessa margem de liberdade que escapou à vigilância cívica dos juízes eleitorais, e pergunto, “data venia”, a todos os gays, a seus apóstolos e à autora do projeto:

Vocês querem mesmo que essa sua lei, já antes de aprovada – e mais ainda depois -, seja defendida mediante a proibição de todos os argumentos adversos, ou estariam dispostos a concordar comigo se eu dissesse que a iniciativa da Justiça Eleitoral de Minas é um abuso de autoridade, uma aberração jurídica e uma abominação moral?

Na segunda hipótese, vocês terão demonstrado que sabem sacrificar os interesses imediatos do seu grupo em prol de um direito mais geral e mais alto, que é a liberdade de expressão assegurada pela Constituição a todos os brasileiros. Na primeira, nossa conversa acabará aqui mesmo, pois já terei concluído, com pouca margem de erro, quem é o neonazista neste episódio.

A pretexto de Puigs

Olavo de Carvalho


Zero Hora (Porto Alegre), 23 de setembro de 2000

Em carta publicada na ZH do dia 15, o leitor Hélios Puig Gonzales alerta ao distinto público que tenho uma formação educacional muito deficiente, motivo pelo qual falto à verdade histórica no que diz respeito a Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, acusados de homicídio e mortos na cadeira elétrica em 1927: “Carvalho não dá valor à Justiça ou ignora que, 50 anos depois, o governador de Massachusetts reconheceu a inocência de ambos.”

Bem, não ignoro esse fato, apenas julguei desnecessário mencioná-lo porque há duas décadas ele é alardeado pelos filmes de Hollywood onde os Puigs adquirem sua erudição histórica. Também não desprezo a Justiça, mas não a idolatro ao ponto de imaginar que uma sentença judicial de 1977 tivesse o poder miraculoso de impugnar, por antecipação, as descobertas históricas posteriores que vieram a revelar a culpa de Sacco, a cumplicidade de Vanzetti e a farsa publicitária comunista concebida para iludir milhões de Puigs. É verdade que, decretada “post mortem” a inocência dos réus, novas provas já não podem ser alegadas para pedir a reabertura do processo (mesmo porque processar os mortos é monstruosidade jurídica que só o regime socialista se permitiu). Mas com isso, justamente, a questão sai da esfera judicial e se torna matéria de pura investigação histórica, cujos resultados não podem, obviamente, ser determinados por uma sentença judicial anterior. Os critérios do historiador não são os do Código de Processo Penal. Na justiça há limite de prazo para a apresentação de provas. Na ciência histórica, as verdades tardias são às vezes as mais valiosas. Qualquer aluno de ginásio sabe disso, e é deplorável que o sr. Puig tenha de aprendê-lo logo de um sujeito mal formado como eu. É talvez por ter tido uma educação precária que, ao opinar sobre algum assunto, eu procure obter primeiro a informação científica mais atualizada. Se eu tivesse uma cabeça bem feita como a do sr. Puig poderia contentar-me em recordar banalidades vistas no cinema vinte anos atrás e exibi-las com o ar triunfante de quem dissesse a última palavra sobre o assunto.

Aos demais leitores, que tenham dúvidas em vez da certeza tola do sr. Puig, recomendo a leitura do meticuloso estudo de Francis Russell, “Sacco and Vanzetti: The Case Resolved” (New York, Harper and Row, 1986), bem como a consulta aos documentos soviéticos publicados pela universidade de Yale a partir de 1995. O governador de Massachusetts não podia conhecer esses documentos em 1977 porque estavam lacrados numa gaveta da KGB; o sr. Puig não pode conhecê-los hoje porque sua gaveta mental foi lacrada em 1977.

Mas não, não vou gastar um artigo inteiro com o sr. Puig. Se consenti em tocar no assunto foi porque a mencionada coleção de documentos revela também coisas diversas e de interesse muito mais amplo, especialmente o fato de que todos os movimentos de protesto promovidos pela esquerda norte-americana contra a guerra do Vietnã foram planejados e dirigidos em Moscou e Pequim: nenhum emergiu espontaneamente da sociedade norte-americana como pretendem nos fazer crer os filmes que embelezam essa época com uma aura de inocente romantismo juvenil. Como sempre acontece, a fachada de idealismo aí camufla manipulações discretas de uma maldade quase impensável. Uma delas foi a disseminação proposital das drogas através dos prisioneiros de guerra em Hanói, que eram viciados à força e depois enviados de volta aos EUA como agentes de contaminação, ao mesmo tempo que uma bem disciplinada tropa-de-choque intelectual buscava, nas cátedras e na imprensa, apresentar a fuga para os tóxicos como um nobre e legítimo protesto das almas sensíveis contra o hediondo “complexo industrial-militar”. A retórica pacifista dos anos 60 foi uma colaboração perversa com crimes de guerra cujos efeitos se propagam até hoje, devastando a humanidade.

Mas esses efeitos não se limitam à difusão das drogas. O Japão, vinte anos depois de subjugado pelos EUA, era uma potência econômica florescente. O Vietnã, abandonado aos comunistas por obra do “flower power”, é hoje um dos países mais miseráveis da Terra, um museu de horrores governado por uma ditadura de assassinos. E não há, entre os militantes esquerdistas da década de 60, um único que seja honesto o bastante para assumir a responsabilidade histórica por esse resultado, mais que previsível, da vitória das delicadas “pombas” sobre os malvados “falcões” do Pentágono. Para ocultar essa infâmia, o Vietnã simplesmente desapareceu do noticiário na mídia “esclarecida”. Se ele ainda fosse assunto, poderia dar ao público brasileiro, hoje, um ponto de comparação para avaliar as declarações do chefe da guerrilha colombiana que admite ter em suas mãos o controle da produção local de drogas e reconhece suas ligações com o principal traficante brasileiro, Fernandinho Beira-Mar. Comparações como essa põem a nu, instantanaeamente, a estratégia global dos genocidas aos quais este país, por cansaço e indolência, vai cada vez mais entregando as rédeas do seu destino.

Caso a investigar

Olavo de Carvalho

Época, 23 de setembro de 2000

Guerrilha, narcotráfico, políticos e mídia esquerdista colaboram entre si. Mero acaso?

Em outubro do ano passado, a NBC noticiou que uma carga de armas expedida pela máfia russa para a guerrilha colombiana havia passado pelo aeroporto de Amã, na Jordânia, sob os olhos cúmplices de funcionários subornados. Investigando mais, a repórter Sue Lackey descobriu que não se tratava de fato isolado: a intervalos regulares, aviões IL-76, partindo da Ucrânia, levavam fuzis AK-47 para entregar às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Voltavam trazendo 40 toneladas de cocaína cada um. Parte da droga ficava em Amã, para pagamento dos diplomatas latino-americanos que intermediavam a operação. O restante era distribuído na Europa e no Golfo Pérsico.

Divulgada a notícia em 9 de abril, dois dias depois o presidente colombiano Andres Pastrana e a secretária de Estado americana Madeleine Albright confirmavam que a rede estava sendo investigada.

Embora entre os personagens provavelmente envolvidos na operação a NBC apontasse o traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar, as Farc continuaram recebendo no Brasil tratamento cortês. Seu representante, Hernan Rodriguez, foi até hóspede oficial do governador gaúcho Olívio Dutra e teve com ele uma longa conversa a portas fechadas, gabando-se, em entrevista, de estar totalmente seguro no território brasileiro – tudo isso poucos dias depois de noticiado o embarque de fuzis em Amã. Coincidência ou não, a atuação de Fernandinho Beira-Mar no esquema tinha como base, segundo a NBC, uma cidade do Rio Grande do Sul. Mas as coincidências começam a tornar-se demasiado felizes no caso do ex-chefe do serviço secreto do Peru Vladimiro Montesinos. Logo depois de conseguir estourar um elo da conexão que operava em território peruano, Montesinos foi denunciado na imprensa por tentativa de suborno e caiu em desgraça, precipitando uma crise nacional.

Para maior glória do sincronismo junguiano, ao mesmo tempo o establishment midiático esquerdista e um vasto círculo de entidades de “direitos humanos” nos Estados Unidos se mobilizavam para condenar maciçamente a decisão governamental de dar mais ajuda militar para o combate à guerrilha colombiana. Eu seria o último a negar o poder das coincidências na História. Mas não vejo por que fazer delas um dogma e proibir a averiguação de conexões que não apenas são logicamente razoáveis, como têm um precedente histórico bem eloqüente: na Guerra do Vietnã foi a ação conjugada das drogas e da mídia colaboracionista que paralisou os EUA. A abertura dos arquivos da KGB mostrou que isso não tinha sido pura reação espontânea da sociedade americana, mas o resultado de uma ação mundial dirigida a partir de Moscou e Pequim.

É insensatez imaginar que, com a queda da URSS, o movimento comunista internacional tenha se desmanchado como por encanto, em vez de, como qualquer exército em retirada, buscar imediatamente reagrupar-se para preparar uma surpresa. Um bilhão e trezentos milhões de seres humanos vivem ainda sob o domínio comunista, a guerrilha avança a passos largos na América Latina e, por toda parte, a esquerda aperta os laços com que controla a vida cultural e inibe a circulação de informações. Qual a desculpa, então, para eludir investigações e apostar tudo, cegamente, na loteria das coincidências?