Sutilezas da fala brasileira

Olavo de Carvalho

Época, 3 de Março de 2001

Graças a elas, a luta pela soberania torna-se guerra contra um inexistente liberalismo

No Brasil, os nomes de doutrinas e regimes políticos não designam as coisas que lhes correspondem na ordem das idéias e dos fatos. Designam pessoas e os sentimentos que a gente tem por elas. Os termos “liberalismo”, “neoliberalismo” e “globalização”, por exemplo, são sinônimos. Empregam-se, indiferentemente, para dizer: “Maldito FHC”. Mas, como os sentimentos que os usuários dessas expressões têm pelo maldito FHC são substancialmente os mesmos que têm pela direita em geral, as três palavras passam a significar também fascismo, nazismo e ditaduras militares latino-americanas, sem prejuízo de que possam ser usadas ainda para designar as tradições dos Founding Fathers americanos, a ideologia do Concílio de Trento e, last but not least, o Lalau e o Luiz Estevão.

Não pretendo absolutamente modificar essa norma lingüística solidamente estabelecida, pois cada um tem a liberdade de usar o divino dom da fala como bem entenda e, se uma nação inteira decidiu utilizá-lo como instrumento de auto-intoxicação, quem sou eu para aconselhá-la a não fazer isso?

Não obstante, é bom informar que, no resto do mundo, liberalismo é um regime de liberdade econômica e política, neoliberalismo é a sutil adaptação desse regime ao paladar dos nostálgicos do socialismo e globalização ou é a abertura das fronteiras comerciais ou a consolidação de um onipotente Estado mundial por cima da dissolução dos poderes regionais. Esses fenômenos não apenas não são o mesmo, mas têm entre si algumas incompatibilidades essenciais. Por exemplo, um Estado mundial, com regulamentos padronizados em escala planetária, é absolutamente contraditório com o princípio liberal da livre iniciativa local, não podendo, pois, um liberal ser um globalista em sentido pleno. No uso brasileiro dos termos, porém, essa incompatibilidade escapa por completo à percepção humana, de modo que todo mundo acredita que fomentando a intervenção do Estado na sociedade estará fazendo algo contra a nova ordem global, quando esta, precisamente, necessita que os Estados nacionais sejam “agentes de transformação” fortes o bastante para implantar em seus respectivos países as novas leis uniformizantes que vêm prontas de Nova York e de Genebra, como por exemplo o desarmamento civil e as quotas raciais.

Mas a mixórdia semântica brasileira transpõe resolutamente as fronteiras da psicose quando uma alma de nacionalista contempla com horror a subserviência de nosso governo aos poderes internacionais e chama isso de “liberalismo”, identificando independência nacional com “Estado forte”, como se o governante de um Estado forte não estivesse muito mais habilitado que o “maldito FHC” a impor a seus governados as regulamentações globalistas que bem desejasse.

Não é de estranhar que, nesse contexto, os males econômicos do Brasil acabem sendo atribuídos à economia liberal, a qual, no entanto, praticamente inexiste neste país. O The Wall Street Journal e a Heritage Foundation mantêm há anos uma meticulosa pesquisa de índices de liberdade econômica, definida pela ausência de fatores como intervenção estatal, impostos altos, regulamentações restritivas etc. Nessa escala, que vai idealmente de 1 a 200, os regimes mais liberais do mundo são Hong Kong (1), Cingapura (2), Irlanda (3), Nova Zelândia (4), Estados Unidos e Luxemburgo (5), Reino Unido (7), Holanda (8) e Suíça (9). O Brasil está em 93º lugar, bem pertinho da China (114). A prevalecer a atual semântica, devemos nos libertar da exploração globalista adotando os métodos de desenvolvimento da Índia (133), do Haiti (137), de Cuba (152) e da Coréia do Norte (155). Teremos de viver de esmolas do Banco Mundial, mas isso então se chamará “soberania”- e quem serei eu para dizer que não?

O anti-horizonte

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 1o de março de 2001

A geração que hoje domina o cenário mental brasileiro não recebeu, na juventude, senão uma única influência formadora: a das ideologias de esquerda. Digo “ideologias”, no plural, porque nela confluíam o marxismo-leninismo tradicional, o social-nacionalismo e a New Left (mitologia cubana inclusa). Mas no fundo diferiam muito pouco: cada uma oferecia pretextos diferentes para convalidar a busca obsessiva da mesma finalidade, elevada ao estatuto de sentido último da existência: a destruição do capitalismo.

Duas subcorrentes que poderiam ter aberto vias alternativas – o pensamento católico e a New Age – foram facilmente neutralizadas, castradas, absorvidas na corrente geral, perdendo toda substância própria e reduzindo-se a excipientes da fórmula socialista: o catolicismo forneceu o arremedo de Evangelho que inspira as comunidades de base, a New Age perverteu-se em protesto cocainófilo, pansexual, gay e feminista contra a “moral burguesa” (entre nós identificada, por um prodigioso rodopio semântico, com o pensamento católico conservador). Documentos históricos dessas absorções redutivas são, respectivamente, os escritos da dupla Betto & Boff e os do hoje quase esquecido Luís Carlos Maciel.

A cabeça da minha geração foi moldada na supressão e na mutilação. Autores, livros, idéias, fatos eram selecionados segundo um recorte prévio destinado a confirmar o discurso pronto. Isso não quer dizer que fosse proibido ler livros “de direita”. Podíamos lê-los, sim – mas só aqueles que confirmassem a imagem estereotipada que fazíamos da direita e contra os quais a esquerda tivesse um contraveneno retórico na ponta da língua. Os autores para os quais não se tinha resposta dividiam-se em duas classes: aqueles cujo nome, jamais mencionado, ia sendo esquecido até desaparecer por completo, e aqueles que eram guardados fora do alcance dos nossos olhos pela precaução asséptica de um rótulo infamante, quase sempre o inverso simétrico do que eram na verdade.

Não era só pregação ideológica. Era todo um sistema de reações e percepções que se automatizavam como reflexos e acabavam por engolir totalmente a nossa personalidade. E a ênfase do sistema estava menos em nos passar determinadas crenças do que em infundir-nos a repulsa prévia e temerosa a idéias, coisas e pessoas que desconhecíamos por completo e que assim perdíamos todo desejo de conhecer.

Dos 25 anos de idade até hoje, não fiz senão abrir minha alma a todas as influências, a todos os interesses, a todas as riquezas culturais e espirituais que a coerção mental esquerdista, até então, me havia tornado inacessíveis. Quanto mais vivo e aprendo, mais me espanto de como era acanhado, mesquinho, somítico, regressivo o anti-horizonte no qual os mestres da minha geração quiseram me prender. Anti-horizonte no qual estão presos, ainda, quase todos os meus coetâneos, mesmo aqueles que imaginam ter “passado para o outro lado”, como se uma tão profunda mutilação espiritual pudesse ser curada por uma simples troca de carteirinha e como se aliás a própria definição estereotípica dos dois lados não fosse ainda a mesma de sempre, apenas com os valores nominalmente invertidos (digo nominalmente porque a efetiva renúncia ao socialismo é tão dolorosa quanto a recuperação de um drogado, e a pressa indecente com que uns quantos anunciam sua mutação prova que ela não ocorreu senão in verbis).

Mas, quanto mais me espanto com isso, mais me horrorizo com a mutilação ainda mais funda, com o estreitamento duplamente compressivo que, num repasse infernal, essa geração está impondo aos jovens de hoje. Os cinqüentões criados num quarto escuro não se contentam com transmitir a seus filhos sua ojeriza à luz, ao sol, ao espaço aberto. Não. Furam-lhes os olhos e os tapam no fundo de uma caverna, para privá-los da possibilidade mesma de conceber que exista luz, sol, espaço aberto no mundo real.

O tucano de duas cabeças

Olavo de Carvalho


Época, 24 de fevereiro de 2001

O problema é que são duas cabeças ocas

Não há criatura mais tipicamente dúbia e bicéfala que o revolucionário que, perdida por decurso de prazo sua oportunidade de fazer a revolução, sobe ao poder por vias legais e anuncia governar segundo as mesmas normas que professava destruir. Que temível situação a do ator que muda de personagem sem poder mudar de script! Otelo com as idéias de Iago, Júlio César com as intenções de Brutus, por mais que tente ser coerente, não escapará da dupla lealdade que o induz a apagar com uma das mãos o que escreveu com a outra, a fazer do Estado o instrumento da destruição do Estado e a desempenhar por fim, no patíbulo da História, o duplo papel da corda e do pescoço.

O leitor há de ter percebido que acabo de enunciar a definição mesma da tucanidade.

O sucesso político dessa entidade equívoca não se deve senão ao fato de que ela encarna, em escala nacional, a autocontradição da própria Nova Ordem Mundial, empenhada em realizar com os meios do liberalismo a sociedade mais coletivista e dirigista que já se imaginou e em preservar a propriedade privada mediante a regulamentação socialista de tudo o mais. Por onde quer que ande semelhante criatura, não cessará de fazer o mal às outras por meio do dano que traz a si mesma, nem de sugar o próprio sangue mediante o derramamento do alheio. Ai de quem caminhe a seu lado! Ai de quem fique contra ela! Ai de quem não ligue! Ai de todos nós, pela simples existência de tal monstruosidade sobre a face da Terra!

Um exemplo de seu modo de ser é a peculiar articulação lógica que montou entre economia e educação, apostando os destinos da nação no futuro do capitalismo ao mesmo tempo que adestra as crianças para viver no socialismo. Será de espantar que os jovens absorvam essa lição como um convite a espojar-se nas deleitações do hedonismo permissivista ao mesmo tempo que se arrogam a autoridade moral de juízes austeros e reformadores do mundo? Será de espantar que cada um deles creia poder ser ao mesmo tempo o Marquês de Sade a emergir lívido de sua alcova de prazeres e Moisés a descer do Sinai com a tábua das Leis nas mãos e a ira divina estampada na face?

Tomemos outro exemplo, os “direitos humanos”. A hipótese de que devotos servidores locais do regime de Cuba pudessem estar seriamente empenhados na defesa dos direitos humanos pode ser afastada in limine por absurdidade intrínseca. A bandeira dos direitos humanos teve para eles função simplesmente tática, de usar os bons sentimentos da população para fomentar nos governantes uma escrupulosidade paralisante, inibindo toda ação policial. Ao mesmo tempo, infundiam em traficantes, ladrões, assassinos e estupradores a estimulante ilusão de não serem a escória, mas a elite da espécie humana, provisoriamente trancafiada nos porões da História pela injusta ordem burguesa.

Porém hoje são eles próprios o governo. Condenados a reprimir a desordem pelos mesmos meios com que solapam a ordem, a fomentar rebeliões pelos mesmos meios com que as reprimem, oscilam entre a brutalidade sádica e a rendição masoquista, ora deixando fuzilar a esmo presidiários amotinados, ora convidando a assembléia dos meliantes a governar em seu lugar, não sabendo se mandam matá-los a pau como cachorros loucos ou se se prosternam diante deles em rapapés abjetos, derramando-se em juras de obediência como escravos ante seu senhor.

A tucanidade, enfim, resume e simboliza o próprio desencontro nacional, a condensação emblemática de todas as inépcias de um povo. Emergida de um grupo de cérebros confusos que julgavam poder abrir caminho para suas ambições por entre as páginas de O capital, terminou mergulhando numa dialética abissal em que a síntese, em vez de absorver tese e antítese, desaparece no entrechoque delas. Como um Mercúrio mentecapto que, em vez de dominar com mão de ferro as duas cobras do caduceu, fosse mordido por ambas.