Direito Sinistro

Diógenes Coimbra

14 de julho de 2001

“O Sancta simplicitas! Em que mundo mais estranhamente simplificado e falsificado vive a humanidade! É infinito o assombro diante de tal prodígio.”

 NIETZSCHE

ALÉM DO BEM E DO MAL

     A busca pelas essências, norteada por métodos que se exigiam rigorosos, constituiu, desde o dealbar da filosofia ocidental, o cerne de todo pensamento racional.  “Uma lei constitutiva da mente humana, todavia, parece conceder ao erro  — lembra o eminente filósofo Olavo de Carvalho — o privilégio  de poder ser mais breve do que a sua retificação”. [1]

      Desse modo, o professor Roberto Lyra Filho, em seu opúsculo “O que é Direito”, consegue lançar o leitor incauto, na exígua extensão de menos de uma centena de pequenas páginas,  ora num indestrinçável emaranhado de conceitos lassos, ora num paul de sofismas sorrateiros. Fazendo-se valer dos mais avelhantados lugares-comuns do marxismo, o autor procura, nesse panfleto, menos conceituar de modo preciso o fenômeno jurídico, que reputa tarefa de fácil labor, do que desanuviar da realidade as brumas que a encobrem.

      A tese lyriana, com efeito, deixa-se cingir por reduzidas e retumbantes linhas, a saber: uma classe dominadora serve-se do Direito para manter a dominação sobre outra classe, a dos espoliados — em que desce a porrada (sic) toda vez que as leis não resolvem o caso. Esse Direito espúrio origina-se e assenta-se em leis naturais, de cunho metafísico — e, se metafísico, ideológico e falso —, a partir das quais, num estágio posterior de usurpação do poder, a burguesia irá formular leis positivas, que, contraditoriamente àquelas naturais, tenderiam a preservar o status quo da classe burguesa, a qual não dá a menor bola (sic) para os dominados. A tal classe espoliada, sem ter um estalão crítico (sic), vai tendo que engolir estes e outros sapos (sic), o que constitui, não há negar, grande sacanagem (sic), uma vez que os dominadores só os pegam com as calças arriadas (sic). Relevado o estilo simplório — afinal, de gustibus et coloribus disputandum non est —, eis a síntese do pensamento lyrista. Por fim, fechando a fenda aberta com agigantada pedra filosofal, conclui que  “o Direito não ‘é’; ele ‘vem a ser’”, afinal, de acordo com fina ontologia, “nada é, num sentido perfeito e acabado; que tudo é, sendo”.

      O leitor apressado pode querer ligar essas ralas alusões metafísicas àqueloutras do Estagirita, mas a conexão é impossível, o abismo, instranspulável. Mais provável é estarem assentes as bases da metafísica lyrica — da qual tenta a todo custo livrar-se, a fim de cumprir os ditames do catecismo marxista — no solo palúdico do chauísmo.  A origem não seria despropositada. A senhora Chauí, pessoa tão íntima do autor — di-lo, na dedicatória, sua colega, sua irmã, sua amiga — não poderia ter obtido tão veneranda admiração sem que igual influência não houvesse exercido sobre ele. Senão, veja-se a teoria ontológico-marilênica:

“O real não é constituído por coisas. Nossa experiência direta e imediata nos leva a imaginar que o real é constituído por coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto é, de objetos físicos, psíquicos, culturais oferecidos à nossa percepção e às nossas vivências.” [2]

      Não explica a autora de que método ou sortilégio valeu-se para alterar a composição íntima da matéria, objetivo tão almejado pelos alquimistas. Na terminologia do senhor Lyra, valendo-se de uma espécie de mágica besta (dir-se-ia melhor: dialética canhestra), D. Marilena fundiu, refundiu e confundiu as categorias de substância e de paixão [3] — claras para qualquer leitor iniciante do aristotelismo. Transforma, com isso, a constituição essencial do ser em meros acidentes seus, de molde que o pau-de-segurar-a-barraca-do-circo perde por encanto sua substância de pau, uma vez que o mero acidente de ser mastro de circo, de galeão espanhol ou trave de campo de futebol modifica sua substância de paulidade. Para empregar, mais uma vez, o estilo lyrico-chauíno: chutaram o pau-da-barraca.

      Não menos místico é o tour de force que faz eqüivaler, por um lado, causa final, inteligência contemplativa e classe dominante, e, de outro lado, causa eficiente, inteligência prática e classe dominada. Transpondo os limites da argumentação lógica, conclui com esmero:

“temos, portanto, uma teoria geral para a explicação da realidade e de suas transformações que, na verdade, é a transposição involuntária para o plano das idéias de relações sociais muito determinadas. Quando o teórico elabora sua teoria, evidentemente não pensa estar realizando essa transposição, mas julga estar produzindo idéias verdadeiras que nada devem à existência histórica e social do pensador.” [4]

      Não sendo possível atingir o grau de iluminação, aparentemente próprio dos adeptos deste método engenhoso, que permite chegar ex nihilo a conclusões e mesmo a teorias gerais tão abrangentes e revestidas de alto grau explicativo e probante, fique-se com as dúvidas, bem expressas, a propósito, por Olavo de Carvalho:

“Se um homem está pensando sobre fenômenos da natureza física, como se explica que o interesse de classe, tão alheio ao assunto de seus pensamentos, se imiscua neles e acabe por determinar o seu curso, de maneira até mais decisiva do que o objeto sobre o qual discorrem? Como será que, pensando por exemplo na embriologia dos gatos ou na lei de queda dos corpos, posso produzir um discurso que, no fim das contas, nada diz sobre gatas prenhes ou bolas que caem, mas apenas afirma o direito que minha classe social tem de viver no bem-bom à custa da exploração das outras classes? Como se dá, enfim, a “transposição inconsciente”? Que processos psíquicos, lingüísticos, neurológicos, determinam que todo teórico do que quer que seja nunca saiba precisamente do que está falando, mas sempre, imaginando falar de animais, de mares, de montanhas, de pedras ou de anjos, esteja sempre falando de outra coisa, sem ter disto a menor idéia? Por quais mecanismos causais se produziu esse monstruoso fenômeno do equívoco universal, do qual veio libertar-nos D. Marilena?”

      Frise-se que tais ponderações não são absolutamente despropositadas, porquanto nada mais legítimo do que o perguntar ao teórico das bases de seu sistema. Se o autor de “O que é Direito” não no diz, busque-se algures, porque a ninguém se pede aceitar  sem mais algaravias alheias.  Não diz o autor em que fonte foi limpar-se das impurezas do mundo burguês, de modo que retorna de tão imaculada fonte com olhos límpidos, capazes de vislumbrar por entre a baça neblina das ideologias a verdadeira realidade das coisas.

      Há de bom grado supor-se que o autor conheça os membros constituintes dos conjuntos dos dominadores e dos dominados, dado que os cita a mais não poder. Ao contrário do que se espera de um escritor intelectualmente honesto, não se fica a saber, ao fim e ao cabo, quem integra aqueles conjuntos. A saber não se fica, tampouco, em que categoria incluir o egrégio professor universitário que por sextuplicados lustros lecionou tantos e tão abastados jovens, sob o amparo generoso do erário, e, ainda post mortem, viu seu nome homenageado por pupilos uspianos em publicação universitária, de novo a expensas do dizgraziatto Estado liberal-burguês. Bem de se ver que os conceitos e categorias que vestem o discurso do Doutor Lyra correm mesmo à frouxa, deles não se extraindo nenhum conhecimento da realidade nem sequer do fenômeno jurídico.

      Doutor Lyra, ademais, pressupõe a dialética de Marx, com Aufhebung de ponta-cabeça incluída, como critério científico para alcançar conclusões apodícticas, mas não lembra que tal método, ou antes, artifício sofístico, nada tem de científico nem muito apresenta conclusões verdadeiras. A esse respeito, bem observa Eric Voeglin que

“Hegel debate se a realidade empírica é apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como filósofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela não cabem. A dialética da Ideia é a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filosófico da realidade precisamente antes de praticar a inversão; não inverte a dialéctica: recusa-se sim, a teorizar.”

      Seguindo, pois, as profecias de seu visionário guru, o Doutor Lyra emprega igualmente o mesmo estilo oblíquo, eivado de lugares-comuns, verdadeiros bondes do transporte intelectual, como diria Ortega y Gasset, valendo-se mais de maleabilidades metafóricas que de assertivas precisas, a fim de ocultar em imagens o que não ousa expor em conceitos. Destarte, ao em vez de considerar o marxismo, e o comunismo que dele deriva, como corrente ideológica sobre cujas bases se erigiram os movimentos mais sanguinários de que já se teve notícia na face da terra, prefere referir-se a tais movimentos como traição à causa, todas as vezes em que, como na Revolução Bolchevique de 1917, o poder se “deitou na cama (estatal) e dormiu sobre o colchão de instituições domesticadas, acordando assustado toda vez que algum socialista herege e contestador berrava que ali (ou na casa do vizinho) havia algo de errado”. O expediente usado é antigo, embora haja ainda quem dele se engane. Vejo meus colegas de curso sob o fetiche das dulcíssimas propostas marxistas. Nada menos estranhável, já que recém deixados o secundário, durante o qual foram exaustivamente catequizados pela cantilena dos livros marxistas. Agora, levados pelo encanto de mais elevados estudos, encontram guarida no discurso melífluo dos acólitos do Direito Alternativo. Escusado o trocadilho, cito Catão: Fistula dulce canit dum Lyra dulcisono carmine prodit aves (A flauta toca suavemente, enquanto o doce som do Lyra engana os pássaros — com a devida adequação).

      Com efeito, o que disse Voeglin de Marx, diga-se também de seu pupilo brasileiro:

Marx criou um meio específico de expressão: quando atinge um ponto crítico, apresenta metáforas que forçam as relações entre termos indefinidos como se viu no já citado passo do Prefácio, p.xvii “o ideal nada mais é que o material transformado e traduzido na cabeça do homem”. Seria uma afirmação brilhante se condensasse numa imagem o que já fôra dito de modo crítico. Mas o problema é que não existe esse contexto crítico. O que é “pôr na cabeça”? É milagre fisiológico? Actividade mental? Acto cognitivo? Processo cósmico?”

      Finalmente, não há senão concluir que a obra do professor Lyra segue à risca os mandamentos de seu outro mestre, Antonio Gramsci. De fato, intelectual orgânico par excellence, o autor do panfleto “O que é Direito” mais procura convencer pelo expediente propagandístico, valendo-se daquele princípio da economia do erro acima aludido, que pelo confronto direto de argumentos, bem ao gosto grasmsciano que exige “que toda atividade cultural e científica se reduza à mera propaganda política, mais ou menos disfarçada”, bem recorda Olavo de Carvalho. Não engenhou obra de filosofia do Direito ou de sociologia jurídica, senão que buscou convencer ad baculum et populum da necessidade de se construir uma nova sociedade que venha a comportar a vaga idéia de direito apresentada. Contra as teses lyricas já advertia Ortega y Gasset: “No vazio social não há nem pode nascer direito. Este requer como substrato uma unidade de convivência humana, da mesma forma que os usos e costumes, dos quais o direito é o irmão mais novo, porém mais enérgico”. [5]

      Diga-se uma vez mais: “O que é Direito” não é obra de filosofia do Direito nem de qualquer outra matéria que se repute científica, senão objeto de propaganda político-ideológica, posto o aspeto formal que lhe emprestam o estarem as palavras organizadas e impressas em formato de livro, e encimadas por título que o apresenta com vestes de seriedade.

NOTAS


[1] A Nova Era e a Revoulução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994.

[2] O Que é Ideologia? (São Paulo, Brasiliense, 31a. ed., 1990).

[3] Tópicos, 103  b  20.

[4] idem, p. 10.

[5] A Rebelião das Massas, São Paulo, Martins Fontes, 1987.

Mensagem do sr. Fedeli, através de um seu menino-de-recados

Olavo de Carvalho

12 de julho de 2001

Esse menino, Felipe Coelho, andou freqüentando meus cursos e ali cumpriu seu papel de alcoviteiro a serviço de seu guru Orlando Fedeli, acreditando que com isto alcançaria a salvação da alma. Por isto julguei conveniente publicar aqui mais esta sua fofoca eletrônica, distribuída em 15 de julho de 2001 a seus ex-colegas doSeminário de Filosofia. Não imagine o leitor que o signatário entre na peleja como alguém que, tendo-a observado de longe e com neutralidade, finalmente toma partido. Se fosse isso, sua opinião poderia até valer alguma coisa, e essa é a impressão que ele talvez procure dar aqui, mas desde o início este garoto foi o principal instrumento de ação do sr. Fedeli, tendo na sua folha de serviços alguns notáveis feitos de difamação bem conhecidos de seus ex-colegas. Sem grave imprecisão ele poderia até declarar: “Orlando Fedeli, c’est moi.” Esta mensagem, de fato, não é a primeira. É apenas a seqüência do renitente assédio de e-mailscom que os agentes do sr. Fedeli cercam meus alunos, a mando dele, no intuito declarado de tirá-los do Seminário de Filosofia e levá-los àquilo que ele imagina ser o céu. O empreendimento não obteve grande êxito, pois só foram para os braços do sr. Fedeli os dois ou três que tinham vindo de lá. Durante um tempo representaram o papel de meus alunos só para depois poderem encenar uma “ruptura” escandalosa. No ambiente de cursos livres, em São Paulo, “operações” desse tipo são coisa endêmica, mas, por mais que as veja repetir-se desde a década de 70, não me acostumo com elas, e sempre me pegam desprevenido. Segue, pois, a amostra, com alguns comentários meus em vermelho. – O. de C.

Carta aberta de um ex-aluno a Olavo de Carvalho, sobre sua gnose

Felipe Coelho

Enquanto meu professor, Orlando Fedeli, não comenta o último protesto do Sr. Olavo de Carvalho contra a denúncia de sua gnose, eu, Felipe Coelho, Católico, ex-aluno deste último, comentarei brevemente alguns pontos de sua tentativa de resposta, entitulada “Mais um golpe de teatro do charlatão Orlando Fedeli”.

O texto do Prof. Orlando Fedeli, como o próprio título indica, não trata apenas do Sr. Olavo de Carvalho, mas também de René Guénon, de modo que o Sr. Olavo não deveria ter ficado tão lisonjeado com sua extensão. O que o Prof. Fedeli de fato fez foi aproveitar a deixa para dar uma mini-aula de gnose, a partir dos “quatro itens da gnose” do “Aviso 2” do Sr. Olavo, com o objetivo principal de esclarecimento dos alunos deste que porventura sejam ou possam vir a ser Católicos.

A incapacidade de distinguir sentido reto e oblíquo é característica do leitor enlouquecido pelo ódio e pelo medo. A lisonja a que me referi foi dita cum grano salis, mas a sutileza escapou tanto a Fedeli quanto ao fedelho.

Acrescente-se ainda uma citação do próprio Sr. Olavo de Carvalho corroborando este procedimento: “Não discuti com eles em meu livro nem vou fazê-lo agora, porque vigarice (intelectual ou qualquer outra) é coisa que não se discute: vigarice se denuncia, e pronto” (Olavo de Carvalho, “Por uma Esquerda Melhorzinha”, inO Imbecil Coletivo, 2ª ed., Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade, p. 390). Foi o que fez o Prof. Fedeli: desafiado, denunciou e provou a gnose de Guénon e Carvalho.

Chegamos assim ao cerne da questão: afinal, do que o Sr. Olavo de Carvalho está sendo acusado? É óbvio que não é de ser um seguidor das doutrinas de Valentino, Basílides, do gnosticismo dos primeiros séculos.

Há aí duas definições da Gnose. Uma, a do gnosticismo dos primeiros séculos, corresponde a um fenômeno histórico definido e a uma heresia condenada pela Igreja. A outra, a de uma Gnose em sentido amplíssimo que abrange praticamente todas as expressões espirituais e religiosas não cristãs (e mesmo as cristãs que apresentem algum parentesco mesmo remoto com elas), é um conceito interpretativo possível, mas a Igreja nem subscreve esse conceito nem emitiu jamais qualquer decreto que condenasse como herética a entidade hipotética aí definida. Logo, sou acusado de que?

(Um terceiro conceito possível de gnose é o de Voegelin. O gnosticismo ou gnose, aí, corresponde a um fenômeno histórico contínuo, especificamente ocidental, cuja evolução se estende desde o gnosticismo dos primeiros séculos até as ideologias totalitárias do século XX. Este conceito, que me parece o único razoável, obviamente exclui do âmbito da gnose-heresia as tradições orientais que o sr. Fedeli nela inclui.)

O próprio estudo do Prof. Fedeli mostra a gnose presente no sufismo, na cabala, no hinduísmo, e em vários autores de diversas origens apontados pelo Sr. Olavo como grandes homens espirituais, ficando claro portanto que a acusação não é de pregar a heresia cristã dos primeiros séculos.

Sempre a confusão entre a “presença” de elementos soltos e a identidade da forma total.

A insistência do Sr. Olavo neste ponto tão evidente é no mínimo estranha. É óbvio também que não se trata de “gnose” como mero sinônimo de “conhecimento”, pois neste caso não haveria razão para se utilizar o primeiro termo em vez do segundo.

Falsificação do sentido de minhas palavras. Uso em geral gnosepara designar o conhecimento especificamente espiritual e não como sinônimo de conhecimento em geral; e gnosticismo para designar o fenômeno apontado na definição de Voegelin. Quando quero me referir ao gnosticismo dos primeiros séculos, uso mais freqüentemente “heresia gnóstica”. Se o sr. Fedeli e seu fiel escudeiro consentissem em interpretar meus termos no sentido que estes têm nos meus textos, e não naqueles que sua própria imaginação projeta sobre eles, tudo ficaria mais claro. Mas isso não serve para quem só pretenda jogar lama na água e tirar proveito da confusão.

A gnose de que o Sr. Olavo de Carvalho é acusado é uma modalidade de conhecimento específica: trata-se da doutrina herética do conhecimento direto e unitivo de Deus pelo homem – ou melhor, por aquilo que haveria de divino no interior do homem -, realizado por meio de uma intuição que eliminaria a distinção entre sujeito cognoscente e objeto conhecido – entre o homem, o mundo e Deus -, pois no fundo só Deus existe, e tudo que há de individual é ilusório.

É absurdo o Sr. Olavo querer dizer que Santa Teresa tinha este tipo de conhecimento de Deus quando lhe aparecia Nosso Senhor. É claro que, ao vê-Lo, ela permanecia Teresa, e Ele, Jesus.

Ora, se citei o exemplo da visão de Sta. Teresa é porque é precisamente esse tipo de conhecimento que tenho em vista ao falar de gnose, e não algum outro tipo de “conhecimento unitivo” hiperbólico e, a rigor, autocontraditório, que não sei onde esse moleque pode ter encontrado nos meus escritos (a não ser que ele confunda o tipo de conhecimento a que me refiro em meus estudos de gnoseologia — como por exemplo “Ser e Conhecer” — com o conhecimento de Deus! Mas isto já seria loucura demais.) Na verdade, essa noção hipertrófica de conhecimento unitivo não se encontra nem mesmo na linha mestra do sufismo, a de Mohieddin Ibn Arabi, metafísico “da unidade absoluta” que, no entanto, proclama claramente que no ápice de todo conhecimento unitivo subsiste a dualidade do fiel e de seu Senhor, unidos tão somente pelo vínculo do amor. Exatamente como na visão de Sta. Teresa. Se essa visão é chamada “unitiva”, é no preciso sentido em que aqueles que se unem pelo amor são um só embora permaneçam existencialmente distintos. Tal é o motivo pelo qual, aliás, Teresa nesse instante diz a Jesus (não lembro se são precisamente as palavras textuais): “Tu és Aquele que é – eu sou aquela que não é” – declaração que afirma, ao mesmo tempo e inseparavalmente (“dialeticamente”, para horror do sr. Fedeli), a dualidade de criatura e Criador e a nulidade da criatura ante o Criador. Não há rigorosamente diferença nenhuma entre essa perspectiva e a de Ibn ‘Arabi, embora haja muita entre ambas e uma perspectiva gnóstico-herética (real ou suposta) na qual a “unidade” fosse interpretada como “identidade”.  

Mas, como o Coelhinho só conhece do sufismo o que lhe diz o sr. Fedeli, é possível que ele imagine que o sufismo é outra coisa.

(Num outro documento, o sr. Fedeli, querendo por toda lei lançar a pecha de herético sobre o esoterismo islâmico, reduz este ao ismaelismo, que é apenas uma seita dentro de uma seita (isto é, do shi’ismo) e nada tem a ver com as ordens sufis tradicionais, que o condenam explicitamente. Mas isto é assunto para outra ocasião.)

Quanto ao demônio, conhece apenas a existência de Deus, não suaessência, e como se viu acima é justamente a essência de Deus que os gnósticos pretendem conhecer.

Curioso. Então por que no sufismo o hadith do Profeta, “Meditai as qualidades, jamais a essência”, é considerado uma regra áurea da prática espiritual? (Por “qualidades”, entendem-se os 99 nomes de atributos de Allah que constam no Corão.)

Quanto à salvação, o Sr. Olavo de Carvalho disse recentemente: “Isso não quer dizer que o Papa esteja errado ao afirmar que o cristianismo é a única via de salvação. Como poderia estar errado, se o conceito mesmo de ‘via de salvação’ não se aplica ao Islã ou ao judaísmo?” (Olavo de Carvalho, “Mensagem de Natal”, O Globo, 23.12.2001). Das duas uma: ou o Sr. Olavo aqui admite que, não sendo vias de salvação, o maometismo e o judaísmo levam ao inferno, e neste caso seria Católico; ou então, como é evidente, o Sr. Olavo adere a uma escatologia não-Católica e gnóstica, e defende também a doutrina de que nem todos precisam ser salvos, que a salvação não exige uma fé determinada e certa, pois bastaria o conhecimento. E isso é gnose.

Non sequitur: “se” não são vias de salvação, “portanto” levam ao inferno. Esse menino é mesmo um traslado fiel da lógica fedélica.

Aliás, Frithjof Schuon, que até muito recentemente o Sr. Olavo de Carvalho considerava “homem espiritual de primeiro plano e formulador do único método válido já concebido para a comparação e aproximação das religiões” (in O Jardim das Aflições, 2ª ed., É Realizações, São Paulo, 2000, p. 308),

(considero ainda, mas, ao contrário de Fedelis e Felipes, compreendo a distinção entre respeitar um homem espiritual e ser seu discípulo)

trata a fé exatamente como o Sr. Olavo, como caminho para a gnose: “A Fé não poderá opor-se ao Conhecimento [de Deus, ou seja, a gnose] da qual é, ao contrário, como vimos, um modo iniciático…” (Frithjof Schuon, Da Unidade Transcendente das Religiões, Trad. Fernando Guedes Galvão, Livraria Martins Editora S.A., São Paulo, 1953, p. 184).

Completa distorção do sentido do texto de Schuon: “modo iniciático” não quer de maneira alguma dizer “caminho para a Gnose”, no sentido em que o caminho deve ser abandonado uma vez atingida a meta.

E, sobre a natureza do conhecimento gnóstico, o mesmo autor afirma: “Acrescentamos que no ponto de vista iniciático esta visão [a Visão Beatífica] pode, e deve até, obter-se ainda nesta vida…” (ibid., p. 179). E ainda: “…até existem métodos para obter esta graça que equivale, em suma, a uma ‘concretização’ da ‘visão beatífica’.” (ibid., p. 157). (O Sr. Olavo deve lembrar-se de ter lido isto, pois, no parágrafo anterior a este último trecho citado, encontra-se detalhada por Schuon a comparação blasfema entre a Virgem Maria e Maomé que o Sr. Olavo resumiu em seu artigo “Mensagem de Natal”, O Globo, 23.12.2000). Registre-se ainda que, como tudo isso é condenado pela Igreja Católica, Schuon refere-se a Ela com total desprezo: “A Igreja latina, com seu idealismo sentimental e irrealista…” (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, p. 189).

Reconhecer na Igreja o seu elemento de idealismo sentimental e irrealista não é de maneira alguma “referir-se a Ela com total desprezo.” Páginas e páginas de apologia da Igreja escritas por Schuon são aí suprimidas pela tesoura deixada nas mãos de um moleque.

Continuando, é notável que o Sr. Olavo de Carvalho confesse aqui não renegar nada do que escreveu antes de 1995, com exceção de seu artigo sobre a “gnose de Princeton”. Isto significa que não renega o artigo citado pelo Prof. Fedeli em que apóia as doutrinas defendidas por Guénon em O Demiurgo (Cf. Olavo de Carvalho, “O Homem e sua lanterna. René Guénon o Mestre da Tradição contra o Reino da Deturpação”, in Revista Planeta, nº 107, agosto de 1981, p. 17), doutrinas estas que se enquadram até naqueles seus quatro itens da gnose, feitos para mascarar a sua própria gnose.

Afinal, o Sr. Olavo de Carvalho confessa mais uma vez que é gnóstico. Abaixo vai o texto do Prof. Fedeli, seguido da mais atual confissão do Sr. Olavo de Carvalho, ao comentá-lo (o sublinhado é meu):

“Até hoje, ele afirma que há algo superior à fé e às crenças de todas as religiões – a ‘Tradição’ primordial – núcleo comum a todas elas. Esse núcleo ele mesmo o chamou de Gnose. E é esse suposto núcleo que permite a ele dizer-se, ao mesmo tempo, católico-judeu-islâmico.”

Até aqui o Prof. Orlando Fedeli. A seguir, a nova confissão de gnose de Olavo de Carvalho:

“A existência desse núcleo não é uma doutrina: é um simples fato empírico, facílimo de comprovar (cf. Whitall N. Perry, A Treasury of Traditional Wisdom, Pates Manor, Bedfont, Perennial Books, várias edições). Chamá-lo gnose, tradição, sabedoria perene, filosofia perene ou qualquer outra coisa é absolutamente indiferente. Todo homem que, além de conhecer esse fato, admita a veracidade intrínseca e essencial do referido núcleo de princípios é um “gnóstico”, no sentido lato em que porventura caiba chamar-me assim, e por isto mesmo não pode ser um gnóstico no sentido específico em que o sr. Fedeli me acusa de sê-lo, de vez que a heresia gnóstica, por seu dualismo e sua revolta prometéica contra a ordem divina, nega frontalmente esses mesmos princípios.”

Como já se viu, é precisamente da gnose que o Sr. Olavo reconhece defender, e não da heresia dos primeiros séculos, que o Prof. Orlando Fedeli o acusa. Ademais, já foi demonstrado pelo Prof.  Fedeli que todos os especialistas no assunto consideram o gnosticismo (a heresia dos primeiros séculos) uma espécie do gênero gnose (substrato ou núcleo de várias heresias). O argumento do Sr. Olavo para negar este fato e defender a “boa gnose”, por meio da alegação de que o gnosticismo seja um “falso conhecimento”, é semelhante ao argumento dos comunistas — que o Sr. Olavo de Carvalho tanto condena, e faz bem de condenar — ao afirmarem que o “verdadeiro comunismo” permanece bom após as experiências genocidas de Stálin, Lênin, Mao e cia., pois estas seriam “falso comunismo”…

A comparação é simplesmente calhorda. O “bom comunismo” é apenas uma promessa jamais cumprida, ao passo que uma gnose sem qualquer comprometimento com a heresia existe há milênios. Nenhum historiador sério aceitou jamais a tese do sr. Fedeli, que identifica hinduismo, budismo, islamismo, judaísmo etc. como o tronco geral de onde sai a espécie de gnosticismo conhecida nos primeiros séculos da era cristã. O sr. Fedeli é que, partindo da definição geral que os historiadores dão, a manipula e a aplica indevidamente a todas essas religiões, criando um elo hipotético entre elas e a gnose-heresia. Ao apelar à autoridade desses historiadores, o sr. Fedeli nada mais faz do que falsificar o sentido do que eles dizem, como falsifica o sentido dos meus textos.

O Sr. Olavo de Carvalho citou recentemente Hans Jonas como “o mais famoso historiador da gnose”, numa breve nota na qual fala em “o rótulo de gnose (no sentido estrito de Hans Jonas)” (Olavo de Carvalho, nota a “A face oculta do mundialismo verde”, de Pascal Bernardin, in<http://www.olavodecarvalho.org/convidados/bernardin2.htm>). Logo, o Sr. Olavo aceita que Hans Jonas usa gnose no sentido estrito, sentido que é condenado pela Doutrina Católica. Veja-se então o que diz Hans Jonas: “Na verdade, houve apenas alguns grupos cujos membros se denominaram expressamente ‘gnósticos’, ‘os que conhecem’; mas já Sto. Irineu, no título de sua obra, usou o nome ‘gnose’ (com o acréscimo de ‘falsamente chamada assim’) para abranger todas as seitas que compartilhavam com eles esta ênfase [no conhecimento como meio de obter a salvação ou ele mesmo como forma de salvação] e certas outras características.

1) Quem usa o termo gnose nesse sentido – que Sto. Irineu considera falso – é o sr. Fedeli, não eu. Sinceramente: essa manipulação de significados já passou de todos os limites do tolerável.

2) Que eu reconheça ser Jonas “o mais famoso historiador da gnose” não implica que eu use os termos no sentido que ele lhes dá.

3) De novo: onde foi que defendi o “conhecimento como meio de obter a salvação”?

Se, de um lado, não sou acusado de pregar a heresia dos primeiros séculos e, de outro, nunca preguei o “conhecimento como meio de obter a salvação”, então, pergunto de novo: de que raio de coisa afinal me acusam?

Neste sentido podemos falar de escolas, seitas e cultos gnósticos, de escritos e ensinamentos gnósticos, de mitos e especulações gnósticas, e mesmo de uma religião gnóstica em geral. Seguindo o exemplo dos autores antigos que primeiro extenderam o nome [gnose] para além da autocomposição de alguns grupos, não somos obrigados a parar onde parou seu conhecimento ou interesse polêmico, e podemos tratar o termo como um conceito classificatório, que se aplica onde quer que as propriedades definidoras estejam presentes.” (Hans Jonas, The Gnostic Religion, 2nd edition, Beacon Press, Boston, 1991, p. 32, sublinhados meus).

Sim, mas uma propriedade definidora essencial – a tal “salvação pelo conhecimento” – está completamente ausente das minhas supostas “confissões”. Quantas vezes será preciso pedir a esses tenazes difamadores que provem esse ponto, que eles mesmos dizem essencial e de cuja demonstração vêm fugindo há mais de 160 páginas?

Não só os especialistas, mas também o já citado Frithjof Schuon, que faz a mesma distinção entre gnose e gnosticismo, admite que o gnosticismo pode ser chamado validamente de gnose — e da gnose que defende! — conforme cita-o o Prof. Fedeli em seu trabalho: “Se nós não ‘reduzimos’ o sentido da palavra [Gnose] a este sincretismo, nós admitimos entretanto que, de toda evidência e por razões históricas, que se chamem de ‘gnósticos’ também os hereges designados convencionalmente por esse termo” (F. Schuon, Comprendre l‘Islam, Ed. du Seuil, Paris, 1976, p. 137, nota 1; apud Orlando Fedeli, A Gnose “Tradicionalista” de René Guénon e Olavo de Carvalhoin<http://www.montfort.org.br/cadernos/guenon.html>).

Manipulação de frases, de novo. Se Schuon admite que se use o termo gnóstico também para designar a heresia dos primeiros séculos cristãos, é óbvio que ele dá ao termo, em geral, outro sentido.

Ao mesmo tempo em que agora tenta se desvencilhar de Schuon, o Sr. Olavo de Carvalho aponta a obra principal de Whittal N. Perry como probante da doutrina herética do núcleo comum das religiões, que seria a “boa gnose”. Justo este livro de Perry que o editor da revista guénoniana Symbolos, ao resenhá-lo, diz ser nada menos que “una especie de biblia schuoniana”! (Cf. Federico González, in <http://personal5.iddeo.es/jmrio/libfg26.htm>). E ainda acrescenta: “Este libro es tomado como una enciclopedia casi sagrada de sabiduría por los estudiantes schuonianos de habla inglesa. (…) Sin entrar en la vida privada de nadie diremos que el mismo M. Koslow señala a Perry como el colaborador directo de Schuon y a su esposa como íntimamente allegada a su familia, con quien todo lo comparten; por lo que deben ser considerados como sus portavoces autorizados o los asociados más íntimos del suizo; incluso viven en casas vecinas.” Aí está: Perry é porta-voz de Schuon, e o trabalho citado pelo Sr. Olavo como evidência para seu “ecumenismo radical” é nada menos que uma “bíblia schuônica”. Além disso, o próprio nome da editora do livro de Perry, Perennial Books, é significativo e mostra sua ligação com a seita “perenialista” de Schuon. Acrescente-se ainda que o mesmo Perry afirma que este seu livro foi inspirado no desejo de Ananda Coomaraswamy, amigo de Guénon, de um dia ter uma suma do pensamento gnóstico, obviamente para se contrapor à Suma Teológica, de S. Tomás, pilar da Igreja Católica.

Característica aplicação do método fedélico: mil e tantas páginas de fatos concordantes reunidos no livro de Perry são impugnadas, num estalar de dedos, por meio de fofoquinhas sobre as ligações de família do autor! Mais ainda, o menino aí se revela um bom aprendiz do fabricante de “confissões” que lhe serve de guru. No texto referido, Perry não diz nada do que Felipe Coelho o faz dizer. Ele nem fala em “suma do pensamento gnóstico” nem manifesta qualquer intenção, muito menos uma intenção “óbvia”, de “se contrapor à Suma Teológica de S. Tomás”, da qual, bem ao contrário, vários textos são incluídos na coletânea.

Finalmente, o Sr. Olavo cita dois pretensos erros do Prof. Fedeli, que supostamente trocaria o sujeito de suas frases. Vejamos. No primeiro caso, Olavo afirma: “Digo, por exemplo, que com tal ou qual argumento ele ‘cortou seu próprio pescoço’ – e ele entende que eu estou ameaçando cortar o seu pescoço”. Ora, em seu “Aviso 1” Olavo dissera: “Por enquanto, não há mal em que o sr. Fedeli vá curtindo sua ilusão de ser um novo S. Jerônimo, de ter cortado a língua a um infiel (sic). Logo ele verá que cortou mais é seu próprio pescoço”. E isso não é uma ameaça? Se eu digo a alguém: “Você, ao me acusar, assinou sua própria sentença de morte”, não o estou ameaçando? Por favor.

Nova manipulação, agora do sentido de uma figura de linguagem. O fato é que escrevo para pessoas que têm sensibilidade para as nuances de estilo, mas sempre me arrisco a ser lido por um Felipe Coelho qualquer, cuja cultura literária é a de quem escreve “entitular” em vez de “intitular” e “extenderam” em vez de “estenderam”.  Duas metáforas em contraponto, sobretudo se compostas de termos que designam um mesmo tipo de objetos e reforçadas por uma alusão literária, são obviamente complementares e têm de ser compreendidas uma em função da outra. À expressão de Léon Bloy, “cortar a língua”, fazem pendant, quase na mesma linha, as minhas palavras “cortar o pescoço”. É evidente que, se a primeira dessas expressões não promete nenhum dano físico, mas apenas desprover o adversário de sua força de agressão retórica, no mesmo sentido, mutatis mutandis, deve ser interpretada a segunda. Mais enfaticamente ainda, a expressão não anuncia que eu vá cortar o pescoço do sr. Fedeli, mas que este vai cortar seu próprio pescoço, o que, no contexto, quer dizer obviamente que vai fazer um suicídio argumentativo. Que se trata de uma alusão literária é coisa que se torna mais patente ainda pelo fato de que as mesmas palavras de Bloy já foram citadas como epígrafe de meu livro O Imbecil Coletivo. Para interpretar isso como ameaça de agressão física, mediante uma comparação descabida com uma sentença imaginária, é preciso uma dose extraordinária de má-fé, aliada à ignorância presunçosa e ao fanatismo cego – ou seja, tudo aquilo que esse menino aprendeu na escolinha do sr. Fedeli.

Nesses detalhes de interpretação é que se revela melhor o tipo de olhar – malicioso, perverso e delirante – com que essa gente lê os meus escritos.

Em contrapartida (veja-se o depoimento anexo de Amilcar Nadu), como haverá o garotinho de interpretar a ameaça fedélica de me “dar um pau”, proferida oralmente e sem nenhuma alusão literária possível? Alegará que ela é “apenas um modo de dizer”, enquanto um elaborado jogo de metáforas deve ser interpretado segundo um literalismo grosso, malicioso e redutor?

E veja-se que o Sr. Olavo, em seu “Aviso 2”, diz ainda que a denúncia do Prof. Fedeli “não habilita o sr. Fedeli a receber outra resposta senão uma que o Código Penal me proíbe: um tapa na cara”. Para piorar, o segundo “erro” consegue ser ainda mais tolo, pois o Sr. Olavo afirma: “Digo que seus alunos estão assustados e perplexos – e ele entende que o estou acusando, a ele, de assustar os meus alunos”. Reparem bem que foi exatamente isso que o Sr. Olavo disse em seu “Aviso 3” (os negritos e o sublinhado são meus): “Respondi às suas acusações, de fato, não por mérito delas ou de seu autor, mas apenas em atenção a dois ou três garotos que, sendo alunos dele, também são meus, e que enquanto o forem terão o direito de obter de mim, na medida em que eu possa dá-las, as explicações necessárias a tirá-los do estado de perplexidade e confusão em que tipos como o sr. Fedeli os jogam para dominá-los.”

Novamente, distorção do sentido das minhas palavras, para produzir uma contradição que não existe. Não foi enquanto meusalunos que esses meninos puderam ser assustados pelo sr. Fedeli, e sim, obviamente, enquanto alunos dele. Aliás o próprio Felipe – o mais perplexo e assustadinho de todos, tão cioso de salvar sua alminha que por ela não hesita em jogar ao lixo as mais patentes verdades – já nem era mais meu aluno, mas, por polidez, fiz questão de tratá-lo como se ainda o fosse.

De qualquer forma, isto é uma questão de pouca importância; fundamental é que ficou provado que o Sr. Olavo de Carvalho não é Católico, nem judeu, nem muçulmano. É gnóstico.

Diante da qualidade de seus argumentos, não surpreende que o Sr. Olavo encha sua “defesa” de “adjetivos” ao Prof. Orlando Fedeli. A mim, quanto mais o Sr. Olavo de Carvalho desce o nível da discussão, mais lamento ter sido um dia seu aluno.

       In Iesu et Maria,

       Felipe Coelho.

       12.07.2001

A mentira proferida em nome de Jesus e Maria, com fé e obstinação, é o caminho que o sr. Fedeli ensinou esse menino a trilhar.

Dois estudos sobre Aldous Huxley

Olavo de Carvalho

10 de julho de 2001

Prefácios a Admirável Mundo Novo e A Ilha, escritos para a reedição dessas obras pela Editora Globo, São Paulo, 2001.

1. Admirável Mundo Novo

         Se houve no século XX um escritor que nunca cedeu ao cansaço e ao tédio, que conservou até o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo conhecimento, que não cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos de compreensão, até chegar, em seus últimos dias, às portas de uma autêntica sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley.

         Como artista, é cheio de imperfeições. Nenhuma de suas obras dá a medida integral da riqueza da sua personalidade ou da solidez de seus recursos intelectuais. Ao contrário, cada uma delas, se tem o brilho de um achado literário premiado por um êxito retumbante, desperta em seguida a suspeita de ter sido apenas um golpe de sorte. Por isto Huxley, amado pelo público, foi com freqüencia visto com certo desdém pelos críticos eruditos (o nosso Otto Maria Carpeaux, por exemplo). Mas a crítica erudita julga livros e não almas. O homem Aldous Huxley, visto na perspectiva integral de sua vida e de suas obras, é bem melhor do que a crítica deste ou daquele livro em particular pode revelar. Nessa escala, o público o enxergou melhor que os críticos. Poucos homens de letras souberam honrar tão bem, pela seriedade de sua luta pelo conhecimento, o amor que o público lhes devotou.

         Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que ele empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visáo a aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente o seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e autopiedade, ocasião de especulações vãs sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade de um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percepção, mergulho que acabou por fazer dele o autor de reflexões epistemológicas bem mais interessantes do que muitas obras de filósofos acadêmicos sobre o assunto.   Algumas dessas reflexões surgiram ao longo de sua experiência com os exercícios do Dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano cujo sucesso na cura de Huxley veio a tornar célebre. O Dr. Bates era um inimigo dos óculos. Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade que são estrangulados pela camisa-de-força de uma lente de grau fixo. Muito de sua técnica consistia apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual  e o amor à luz. Talvez ele nunca tenha atinado com a formidável importância filosófica de sua técnica. Mas Huxley, à medida que recuperava a visão graças aos exercícios de Bates, ia fazendo duas descobertas filosóficas fundamentais.        A primeira delas estava sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxleu o soubesse, pelo filósofo basco Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes filosóficas deste e de muitos séculos. Segundo Zubiri, não existe aquela coisa kantiana de dados sensíveis brutos, caóticos, colhidos pelo corpo e sintetizados na mente segundo padrões a priori. A percepção humana é, inerentemente, percepção intelectiva ou, na fórmula zubiriana, “inteligência senciente”. Isto tapava, de um só golpe, o abismo que três século de idealismo filosófico haviam cavado entre conhecimento e realidade. “Realidade”, diz Zubiri, é o aspecto formal que o ser oferece à percepção humana. Não há uma “coisa em si” a ser apreendida para além da percepção, porque, precisamente, o que o ser oferece à nossa percepção é o seu “em si” e nada mais, ou, como diria Zubiri, aquilo que ele é “de suyo”, de seu, de próprio, de real.

         Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do filósofo só vieram a difundir-se no mundo a partir da década de 70, após a morte de romancista), chegou, pela experiência pessoal da luta pela visão, a conclusões similares. A “arte de ver” (The Art of Seeing, 1943) não consistia no esforço interrogativo que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz de instrução que inquire ativamente a testemunha em vez de deixá-la falar o que quer. Bem ao contrário, consiste numa aceitação passiva e gentil daquilo que as coisas, “de suyo”, queiram nos mostrar. A redução da libido dominandi intelectual às suas justas proporções fazia do ato de ver uma devoção contemplativa ante a realidade do mundo.

         A segunda descoberta filosófica de Huxley, no curso de seus exercícios ópticos, filia-o a uma tradiçao ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e praticamente desconhecida no mundo acadêmico do seu tempo. A natureza do mundo objetivo, nas suas experiências, revelava-se essencialmente como luz — luz no sentido físico, sustentada, porém, desde o íntimo, pela luz espiritual. A ativação desta última, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida objetiva sob a forma da luz inteligível que se revelava nas coisas vistas, simultaneamente à sua revelação pela luz física. A meditação deste ponto remonta à “filosofia iluminativa” de  Shihaboddin Sohrawardi (1155-91) filósofo persa cujas descobertas só encontraram, no Ocidente, um eco acidental e longínquo em observações casuais de Robert de Grosseteste (c. 1170-1253). Huxley soube algo de Sorawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem em algum ensaio. Mas, na época em que fazia as experiências relatadas em The Art of Seeing, já estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera inconfundivelmene sohrawardiana.

         Esses pontos já bastam para mostrar a intensidade filosófica do mundo interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem superior ao da média dos romancistas do seu tempo.

         Mas a especulação vivenciada dos mistérios da percepção levou-o a algumas interessantes experiências no campo da técnica ficcional. Em “Contraponto” (1923), ele esboça a reconstituição da unidade de uma atmosfera emocional pela justaposição de detalhes aparentemente separados. Isso poderia fazer pensar, à primeira vista, na síntese kantiana. Mas, lida com mais atenção, cada cena do romance já traz em si, como em miniatura, o tônus emocional do conjunto. Não se trata, pois, da unificação intelectual de um significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma realidade vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que “dados” atomísticos kantiano, os episódios de “Contraponto” são mônadas de Leibniz, cada uma refletindo, desde o seu ângulo próprio, a forma do conjunto.

         Algo dessa técnica repete-se nas primeiras páginas do “Admirável Mundo Novo”. Flashes da produção de bebês in vitro, do doutrinamento de crianças para a cidadania padronizada, das diversões programadas como parte da disciplina civil, vão recompondo, aos poucos, a imagem global  de um mundo do qual a liberdade de escolha foi excluída e onde as criaturas repousam confortavelmente na submissão hipnótica à ordem estatal perfeita. A sociedade futura aí descrita, que o autor situa no século VII d. F. (“depois de Ford”, ou às vezes “depois de Freud”) é aparentemente uma utopia, no sentido definido por Goethe: “Uma série de idéias, pensamentos, sugestões e intenções, reunidos para formar uma imagem de realidade, embora no curso ordinário das coisas dificilmente venham a se encontrar juntos.” Um universo assim construído teria uma constituição nitidamente kantiana: síntese mental de dados que, na realidade, se encontram dispersos. Mas essa não é, definitivamente, a estrutura do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem Mundial que ele nos apresenta pode ser concebido separadamente. Não se pode controlar administrativamente as emoções humanas sem a ajuda química (as pastilhas de soma), nem habituar as multidões à satisfação bovina de uma auto-hipnose permanente sem controle laboratorial de suas predisposições genéticas; nem, muito menos, fazer tudo isto ao mesmo tempo na escala limitada de um Estado nacional, sem o controle simultâneo de todo o globo terrestre. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma utopia: são órgãos solidários e inseparáveis de um mesmo e único sistema. Onde quer que apareça um deles, os outros o seguirão, mais cedo ou mais tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História.

         Por isso mesmo o “Admirável Mundo Novo” é menos uma utopia, uma especulação sobre um futuro possível, do que a percepção imediata do nexo interna por trás de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que floresciam na época em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz unificada, não somente do mundo possível no século VII d. F., mas do mundo em que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi perceber  a unidade subjacente às idéias dominantes do seu tempo, que geraram nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato, determinada pelas concepções de Lenin e Ford, Margareth Mead e H. G. Wells, Malinowski e Pavlov. As referências, sutis ou abertas, a estes e a muitos outros “maîtres à penser” da década de 20 abundam nas páginas deste livro, que portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do que como um diagnóstico da unidade de sentido por trás de tendências de pensamento que se ignoravam umas às outras no instante mesmo em que, às cegas, concorriam para erguer as paredes de um mesmo edifício: o edifício da Nova Ordem Mundial.

         O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido, é mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de hoje se dão conta de quanto ele contribuiu para formá-la, coisa que no entanto já estava óbvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro “A Revolução Invisível” (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de uma Nova Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os Srs. Clinton e Blair. Que feito de tão magna importância fosse obra de um autor que representa mais do que ninguém a mediocridade satisfeita do progressismo moderno, é coisa que não deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus clones, seus tribunais mundiais e seu controle da internet, não é outra coisa senão a mediocridade materializada em escala global — o mundo onde o Sr. Wells se sentiria tão à vontade quanto Bouvard e Pécuchet.

         As contribuições menores não devem porém ser desprezadas. Nossas concepções atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o Estado deve assegurar o acesso igualitário das massas não teriam sido possíveis sem o relativismo antropológico de Margaret Mead. Se enquanto cientista ela foi tão precária quanto é minguado o talento literário do Sr. Wells, nada mais justo: somente a pseudociência e a pseudoliteratura podem gerar mundos. Sua função, como já dizia Karl Marx, não é a de compreender o real, mas a de mudá-lo. Mas as idéias não precisam ser inteiramente falsas para esse fim. Basta que sejam infladas para além de seus limites razoáveis. Pavlov, por exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos cães. O homem não pode ser compreendido integralmente à luz da psicologia canina, mas pode ser integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser, transformando-se em algo praticamente indiscernível de um cão, o que dará à psicologia de Pavlov, na prática, um alcance que ela jamais poderia ter em teoria. De modo análogo, todos podemos ser levados a comportar-nos como pacientes psicanalíticos, militantes proletários ou peças de uma linha de produção, dando uma espécie de “segunda realidade”, como diria Robert Musil, às ideologias de Freud, Marx e Henry Ford. Depois disso, contestar essas teorias se tornaria tão difícil quanto tentar provar o valor da vida a um suicida que, tendo saltado do décimo andar, já se encontrasse à altura do sexto ou quinto. A dificuldade que os personagens deste livro encontram para perceber a irrealidade do mundo social que as rodeia é dessa mesma índole: elas constroem essa irrealidade a cada instante, com suas próprias vidas, e se aprisionam nela no ato mesmo de tentar contestá-la em pensamento.

         A unidade maciça do pesadelo descrito neste livro não é um produto da mente, construido com indícios esparsos, um vulgar “silogismo imaginativo” eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador contrói uma terceira, fictícia, e nela crê. É antes a visão real da unidade da atmosfera cultural dos anos vinte e trinta condensada em imagens e projetada — erroneamente — num século futuro. Erroneamente, digo eu, porque o próprio Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: “As profecias feitas em 1931 estão para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava”, afirmou ele em Brave New World Revisited, uma atemorizante coletânea de ensaios sobre lavagem cerebral, persuasão química, hipnopédia, influência subliminar e outras técnicas de manipulação comportamental que,  previstas para o século VII d. F., já estavam prontas para o uso na segunda metade do século XX. Passado mais meio século, porém, já transcendemos a época das descobertas técnicas e entramos, em cheio, na da sua aplicação rotineira em escala mundial. Uma boa descrição parcial desse estado de coisas encontra-se no livro de Pascal Bernardin, Machiavel Pedagoge ou le Ministère de la Réforme Psychologique (Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1998), que analisa as técnicas educacionais hoje padronizadas em todo o mundo sob os auspícios de governos e de prestigiosos organismos internacionais. As conclusões do seu exame são duas. Primeira, a educação das crianças no mundo de hoje despreza a sua formação intelectual e se dedica quase que inteiramente ao adestramento comportamental dos perfeitos cidadãozinhos da Nova Ordem Mundial. Segunda: as técnicas usadas para esse fim pouco têm a ver com o que que se denominava tradicionalmente “pedagogia”, mas se constituem essencialmente de manipulação pavloviana. Que isso ocorra simultaneamente a experimentos de clonagem humana, à formulação de uma ética padronizada para abolir todas as diferenças culturais e religiosas, à instauração de um poder médico global incumbido de receitar e vetar condutas a pretexto de higiene e saúde, à criação de tribunais mundiais para impor à toda a humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e Pécuchet — nada disso é coincidência, nada disso é síntese mental de dados esparsos. É a unidade de um sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagnósticos.

         No entanto, o mundo em que vivemos ainda não se parece, no seu todo, com o Admirável Mundo Novo. A diferença principal é que neste os “selvagens”, isto é, as pessoas que rejeitavam a existência antisséptica na sociedade perfeita e continuavam presas de hábitos bárbaros como ler a Bíblia, rezar e educar seus próprios filhos em vez de entregá-los ao Estado, se encontravam isoladas geograficamente, vivendo em reservas a milhares de quilômetros dos centros civilizados. No mundo de hoje, elas vivem soltas nas grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que só acreditam nos noticiários da TV e que entregam não só seus filhos como também seus pais à guarda do Estado. Por isto a vida moderna não tem a uniformidade tediosa das cidades de Huxley.

         Mas isso não quer dizer que, no domínio da estrutura social, ao contrário do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja atrasado. Nas últimas quatro décadas, a elite bem-pensante inventou meios tão eficazes de isolar psicologicamente, culturalmente e socialmente os indesejáveis, que separá-los geograficamente tornou-se uma despesa desnecessária. A presença de um crente nas altas cátedras universitárias ou nos cargos de destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se tão inconcebível, que todos os selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente à disposição dos bons cidadãos. A secretária de Estado Madeleine Albright foi até explícita: qualquer americano que contribuísse regularmente para uma igreja e se preparasse ativamente para o Juízo Final se tornariam um virtual candidato a ter sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de “selvagens” não estão nos confins da Terra como no romance. Elas estão entre nós.

         Nas suas últimas décadas de vida, Aldous Huxley adotou decididamente uma escala de valores “selvagem”. Mergulhou no estudo das literaturas sapienciais e místicas, adquirindo uma antevisão daquilo que Fritjof Shuonn viria a chamar “unidade transcendente das religiões”, tão diferente do ecumenismo burocrático de hoje quanto  as visões de Sta. Teresa ou Jacob Boehme diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se estranho e incompreensível, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells e aos paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa tentativa — falhada — de descobrir nas drogas alucinógenas a rota de fuga para fora da percepção padronizada. Mas a experiência fracassada não foi estéril. Se não abriu para quem quer que fosse “as portas da percepção”, despertou Aldous Huxley para a temível realidade da manipulação química do comportamento, que ele denuncia corajosamente em Brave New World Revisited, e para os aspectos falazes e ilusórios da democracia, que ele caricatura impiedosamente em seu último romance, A Ilha, espécie de contrapartida dialética do Admirável Mundo Novo.

         Da observação microscópica do mecanismo da percepção até a intuição global dos rumos da história humana, o olhar de Huxley jamais perdeu de vista a unidade do real e, em conseqüência, o senso da integridade humana, que tantos romancistas, seus contemporâneos, cedendo à suprema tentação, não fizeram senão dispersar numa poeira de estilhaços.

         Nenhum de seus livros dá conta integral da riqueza de sua experiência do mundo. Mas em nenhum deles está ausente a tensão entre o apelo unificante do alto e as brutais forças centrífugas que tentam dissolver a unidade da consciência para mais facilmente amoldá-la à mera uniformidade exterior de um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do espírito em seus reflexos no mundo exterior — eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley. Poucos escritores, no século XX, souberam colocar a ocupação literária a serviço de finalidade tão alta e tão nobre. Por isto a obra de Aldous Huxley, malgrado seu múltiplos defeitos, sobreviverá. Ela tem o interesse permanente de tudo aquilo que se volta para “a única coisa necessária”.

26/3/01    

2. A Ilha

         Os críticos acusaram freqüentemente os personagens de Huxley de não ser propriamente seres humanos, mas apenas símbolos de idéias.

         Contra essa censura posso levantar de imediato três objeções:

         1) Mesmo que ela fosse certa, não bastaria para arrasar de vez a reputação de Huxley como ficcionista, de vez que crítica semelhante já se fez a Swift e Voltaire.

         2) Ela não é propriamente uma censura, mas a definição mesma do gênero “sátira”, no qual se incluem, de algum modo (já veremos qual), as principais obras de Huxley. Não é possível satirizar os seres humanos naquilo que têm de pessoal e autêntico, mas só no que têm de exterior, de típico, de copiado e de mecânico.

         3) Mas as histórias de Huxley escapam mesmo às limitações intrínsecas do gênero satírico. É verdade que Lenina Crowne ou Bernard Trotsky, em O Admirável Mundo Novo, assim como Will Farnaby, Robert MacPhail ou o embaixador Bahu, em A Ilha, não são realmente pessoas de carne e osso: são encarnações das utopias, sonhos e ilusões da intelectualidade ocidental. Mas se malgrado essa sua origem puramente intelectual seus destinos nos interessam e nos comovem como os de gente de verdade, é pelo fato de que, no século XX, o poder enormemente ampliado da mídia cultural fez com que as idéias passassem a ter uma influência formadora mais direta e decisiva sobre os corações humanos. Símbolos, frases-feitas, emoções e trejeitos mentais criados pelos intelectuais fincaram raízes tão profundas no subconsciente das pessoas, que se tornaram, em muitos casos, indiscerníveis das reações pessoais autênticas. É olhar e ver: muitas personalidades em torno de nós são realmente, literalmente, traslados de modas intelectuais. Esses tipos só são cômicos e artificiais quando vistos do exterior, e nossa reação perante eles é ambígua: não conseguimos nem compartilhar de seus sentimentos ao ponto de sofrer por eles, nem desidentificar-nos deles o bastante para torná-los definitivamente cômicos. Pois todos nós, uns mais, outros menos, macaqueamos as modas culturais, e este é um destino inescapável do homem moderno: nem possuímos mais aquele fundo comum de valores e símbolos que permitia ao camponês da Idade Média ser ele mesmo justamente porque era igual a todos, nem nos tornamos tão prodigiosamente individualizados que possamos inventar nossa própria linguagem. A única autenticidade possível ao homem moderno é um arranjo mais ou menos pessoal de modelos mais ou menos copiados.

         É nessa zona indistinta entre o discurso coletivo e a emoção autêntica, entre a macaquice intelectual e a vida pessoal efetiva que Huxley colhe seus personagens. Daí sua maior originalidade como ficcionista – sua capacidade de fazer o leitor vivenciar o jogo das idéias estereotipadas como se fosse um drama humano de verdade. Por isso suas obras não podem rotular-se categoricamente como sátiras, já que participam, a um tempo, da sátira e do drama: sátira das idéias, drama dos erros e sofrimentos humanos que essas idéias geraram ao transformar-se em ações. É precisamente essa visão intermediária entre a sátira e o drama que o habilita a sondar com olhar profético o futuro que se gera no ventre das idéias. Cada um de seus romances é como aquele fantasma do poema de Heine que acordava um homem de madrugada e, de espada em punho, o ameaçava: “Eu sou a ação dos teus pensamentos.”

         Muito do que Aldous Huxley escreveu é a dramatização satírica das idéias que se tornaram vida pessoal e tragédia pessoal entre os intelectuais midiáticos, aqueles seres meio cultos, meio ignorantes, que desfrutam do privilégio maior da mediocridade — falar a linguagem média — e que por isto dão o tom dos debates públicos, encarnando a personalidade das épocas. Essas criaturas são as testemunhas principais que o historiador das idéias interroga. Por exemplo, quem queira conhecer a mentalidade do século XVIII não irá sondar as profundezas abissais da ciência de Leibniz, mas deslizar sobre as superfícies brilhantes de Voltaire e Diderot. Os grandes espíritos não pertencem propriamente à sua época: uma parte do seu ser está mergulhada num passado imemorial, a outra projeta-se num futuro inalcançável, e só uma parcela ou recorte deles é visível a seus contemporâneos. Mas a mente do intelectual médio é o ponto de intersecção dos horizontes de consciência da sua época: o que aparece na sua tela interior é aquilo que todos vêem ao mesmo tempo, a coincidência de todos os recortes, a interconfirmação de todas as percepções e de todas as cegueiras. Por isto seu discurso é tão bem recebido por seus contemporâneos, e por isto é tão fácil, das suas palavras, deduzir o que “o público” pensava.

         O intelectual médio é ao mesmo tempo o porta-voz e o eco das modas culturais. Mesmo quando as critica, não vai além delas, limitando-se a opor uma moda a outra moda, como aqueles que, hoje em dia, opõem ao socialismo a utopia neoliberal, ou vice-versa, sem ter a mínima idéia do parentesco que os une.

         Huxley era um ouvido especialmente atento às conversações dos intelectuais médios, das quais ele não apenas captava com facilidade o “espírito da época”, mas inferia as mais espantosas e acertadas conclusões sobre o rumo que as coisas iriam tomar se aquelas idéias, em vez de esgotar-se como puras futilidades de salão, fossem levadas à prática como modelos do mundo futuro. O Admirável Mundo Novo é o mundo que teria resultado – e que de certo modo resultou – da aplicação das modas intelectuais da década de 30. A Ilha é o mundo criado pelas utopias psicoterapêuticas e orientalistas dos anos 50-60.

         Aldous Huxley morreu antes de que essas idéias tomassem corpo na cultura da “New Age” e, partindo das esperanças utópicas de um novo mundo de sanidade e autoconhecimento, desembocasse na tragédia mundial das drogas, das seitas escravizadoras, das experiências psíquicas autodestrutivas. Não obstante, ele captou antecipadamente a loucura por trás de tudo isso, e é precisamente essa antevisão que dá o tema deste romance.

         Publicado em 1963, este livro foi lido como uma espécie de antítese do Admirável Mundo Novo. Enquanto o romance de 1932 trazia o retrato de uma sociedade opressiva e mecanizada, da qual toda espontaneidade humana tinha sido extirpada em benefício da ordem e da produtividade, a ilha de Pala era como que a materialização dos sonhos de liberdade da geração flower power: amor livre, religiosidade sem dogmas, respeito às diferenças individuais, incentivo à expressão das emoções, tudo num ambiente ecológico de reverência pela natureza.

         Sublinhava essa interpretação o fato de que a utopia fosse, no capítulo final, brutalmente destruída pelos tanques da vizinha ilha de Rendang-Lobo, encarnação de tudo o que a juventude dos anos 60 mais odiava: industrialismo, militarismo, religião tradicional, lei e ordem.

         Compreendido assim, A Ilha não era senão a tradução ficcional de lugares-comuns da retórica esquerdista da época, mista de “New Age” e “New Left”. Daí o imenso sucesso do livro. Ele parecia dizer tudo o que a geração mais pretensiosa de todos os tempos queria ouvir. Mesmo a derrota da utopia, em vez de ter um efeito deprimente, parecia exaltá-la até às nuvens: Pala fôra destruída por ser boa demais para este mundo, como Che Guevara, derrotado pelo mais pífio exército sul-americano, transcendia no mesmo ato os julgamentos humanos e subia aos céus como um Ersatz comunista de Jesus Cristo.

         Êxitos de livraria baseados em equívocos de interpretação não são raros na história da literatura. Na verdade, A Ilha é o mais temível inquérito sobre o auto-engano da geração que o aplaudiu. No ambiente de entusiasmo utópico da época, seria impossível que os leitores o compreendessem. Isso teria exigido deles um realismo cruel, que mesmo à distância de quatro décadas ainda parece difícil de suportar, tão contaminados das ilusões e mentiras dos anos 60 permanecemos hoje. Daí que, deslizando sobre a superfície da narrativa, quase todos os leitores deixassem escapar os detalhes mais importantes, nos quais se esconde o sentido mesmo da última lição de um sábio.

         Em primeiro lugar, a destruição de Pala não vem do exterior. É o próprio príncipe herdeiro, Murugan, quem atrai os estrangeiros para ajudá-lo no golpe militar destinado a romper o equilíbrio do paraíso agrícola e colocar o país, pela força, na modernidade industrial. Os ideais da “geração Woodstock”, com efeito, apenas usavam a linguagem do primitivismo agrícola como veículos de expressão de seu ódio à sociedade industrial, mas essa revolta era, ela própria, um fenômeno da intelectualidade urbana e universitária, e supunha uma dose de liberdade de expressão e meios de comunicação que seriam inconcebíveis em qualquer sociedade agrícola. Quando Murugan acusa os governantes de Pala de “conservadores e reacionários”, ele põe o dedo na ferida: os ideais que produziram Pala jamais poderiam ter surgido numa economia como a de Pala. A utopia não é destruída do exterior, mas explodida desde dentro, pela sua autocontradição congênita.

         Em segundo lugar, os golpistas, tão parecidos com os militares do Terceiro Mundo nos seus métodos de modernização autoritária, nada têm de conservadores e tradicionalistas na sua ideologia. Murugan, bisneto do Velho Rajá, o fundador de Pala e autor do livro sapiencial em que se inspira o regime da ilha, acaba se voltando contra as tradições locais por influência de sua mãe, a rani Fátima, a qual durante sua formação cultural na Europa recebera a influência dos ensinamentos teosóficos de Helena Blavatsky, tornando-se devota dos “Mestres do Astral”, especialmente um tal Koot-Hoomi — figura inconfundivelmente diabólica segundo todos os cânones da religião tradicional — , em cima de cujas concepções se forma a aliança entre a família real de Pala e os militares de Rendang-Lobo. Ora, teosofismo e mensagens de Koot-Hoomi são elementos inconfundíveis da própria ideologia “New Age”. Embora já um tanto velhos na época, foram reaproveitados na onda geral de orientalismo pop com que o movimento dos jovens atacava e corroía as bases cristãs da sociedade Ocidental.

         Os militares de Rendang-Lobo também não são, de maneira alguma, “a direita”. Estão ansiosos para fazer negócios com a Standard Oil só para poder comprar armas do bloco soviético e dar prosseguimento ao seu sonho macabro de “revolução permanente”. Seu chefe, o Cel. Dipa, é uma espécie de Chavez avant la lettre. Seu modernismo revolucionário representa a outra face da ideologia “jovem” dos anos 60: o lado brutal e sanguinário personificado pelos Black Panthers, por Ho-Chi-Minh e Fidel Castro. Pala não é destruída por seus inimigos, mas pela contradição interna da mais mentirosa ideologia de todos os tempos, a ideologia da esquerda norte-americana dos anos 60, que pretendia encarnar o espírito de “paz e amor” ao mesmo tempo que espalhava no mundo “um, dois, três, muitos Vietnãs”.

         Ainda mais significativo é que a origem das concepções utópicas do regime de Pala remontasse à fusão de vagos remanescentes do budismo tântrico com as idéias de evolucionismo biológico trazidas, no século passado, por um médico escocês, meio sábio, meio charlatão, que adquirira prestígio na ilha curando uma misteriosa doença de seu governante por meio do “magnetismo animal”. Essa mistura de budismo heterodoxo, evolucionismo e magnetismo compõe a fórmula inconfundível do teosofismo de Madame Blavatsky. Assim, a raiz do utopismo anárquico de Pala e do modernismo autoritário de seu príncipe golpista é, rigorosamente, a mesma.

         Para tornar as coisas ainda mais estranhas, o teosofismo de Blavatsky foi, notoriamente, um instrumento usado pelo imperialismo inglês para corroer as tradições religiosas autênticas das nações orientais e torná-las mais vulneráveis à dominação cultural estrangeira por meio de um entorpecente pseudo-espiritual fabricado em Londres por uma vigarista russa. [1]

         Pelo lado da ideologia palanesa, portanto, o lixo ancestral não é menos fedorento que o teosofismo explícito de Rendang-Lobo. Já no segundo capítulo do livro, o náufrago Will Farnaby, traumatizado pelo perigo recente, é curado de seus males pelo método freudiano da ab-reação no curso de uma psicoterapia improvisada… por uma garota de nove anos. Mary Sarojini MacPhail, a garota, neta do atual guru médico da ilha, resume na sua pessoinha os princípios de educação e ética ali vigentes: são os princípios do sincerismo, do “botar para fora”, que os “grupos de encontro” e as técnicas psicoterápicas de “sensibilização” e “liberação” disseminaram no mundo a partir de Esalen, Califórnia, e que marcaram inconfundivelmente a atmosfera dos anos 60. O festival de experimentos psíquicos e “liberações” desembocou no império mundial dos traficantes de drogas e na transformação da delinqüência juvenil (e infantil) numa catástrofe global de proporções incontroláveis. Na época, porém, prometia um novo mundo de espontaneidade e sanidade. Todas as crianças de Pala são versadas em “auto-expressão”, aquela confissão simplória e cínica dos próprios maus sentimentos que, teoricamente, os tornaria inofensivos. O fato é que a “auto-expressão”, ensinada em grupos-de-encontro por psiquiatras e psicoterapeutas “libertadores” nos conventos católicos, suscitou entre as monjas uma epidemia de lesbianismo e de casos amorosos com seus terapeutas, levando praticamente à destruição de várias ordens religiosas. De braços dados com o pseudo-orientalismo, a “libertação” psicoterápica abriu caminho para que milhões de jovens abandonassem o cristianismo e se entregassem às mais tirânicas manipulações psíquicas nas mãos de seitas delinqüenciais como “Love Family”, que, em nome da expressão espontânea das emoções, obrigava crianças de quatro anos de idade a submeter-se, junto com seus pais, à prática de sexo grupal. A imensidão dos danos psicológicos trazidos a essa geração jamais poderá ser medida exatamente. As tristezas e as vergonhas acumuladas são demasiado profundas para vir à tona. Documentos aterrorizantes acumulam-se, em pilhas, nos milhares de clínicas especializadas em tratamentos de egressos de seitas, sobretudo ao longo da Costa Oeste americana — o lugar onde nasceria, segundo a promessa da época, a nova civilização de sanidade, paz e amor. [2]

         Os efeitos terrificantes, porém, não nasceram do mero acaso. Fruto e raiz têm sua continuidade lógica. Os “grupos-de-encontro” nasceram da pesquisa militar sobre guerra psicológica e controle comportamental. Um de seus pioneiros, Kurt Lewin, já na década de 40 havia chegado à conclusão de que a pressão sutil e disfarçada do grupo era o meio mais efetivo de produzir mudanças de comportamento. A lição foi bem aprendida por Carl Rogers, Fritz Perls, Abraham Maslow e outros criadores dos “grupos-de-encontro” da década de 60. A “liberação”, em suma, não passava de “engenharia do consentimento”. Lewin e seus sucessores haviam descoberto um tipo de controle comportamental infinitamente mais eficiente e irresistível do que todas as técnicas descritas no Admirável Mundo Novo. Como admitiu um dos praticantes do método, Robert Blake, ex-aluno de Lewin no Tavistock Institute de Londres (a principal academia inglesa de guerra psicológica), “não importa quanto o orientador desses grupos tente ser não-diretivo, ele será ainda sutilmente ditatorial e até mais ditatorial (por causa da sua sutileza) do que o mais rígido adestrador, porque todo o controle está escondido”. [3] Por uma coincidência que neste contexto adquire as dimensões de um símbolo, Blake dirigiu um desses grupos justamente na Standard Oil – a empresa com a qual o príncipe herdeiro Murugan está louco para fazer negócios.

         Após presenciar uma sessão de “educação para o amor” das crianças de Pala, Will Farnaby, o visitante trazido pelo naufrágio, protesta: “Isto é puro Pavlov!”. O instrutor, com aquele ar beatífico de tantos lavadores de cérebros da década de 60, responde: “Pavlov usado exclusivamente com bom propósito. Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão.”

         Tanto pelas suas origens blavatskianas quanto pelos métodos de dirigismo sutil, a ideologia palanesa é irmã gêmea do autoritarismo de Rendang-Lobo. A Ilha não é a tragédia de um paraíso de liberdade destruído pela invasão de militares malvados: é a tragédia da autodestruição de uma utopia intrinsecamente má e mentirosa envolta em belas palavras.

         No momento culminante da narrativa, Will Farnaby, finalmente rendido aos encantos da “religião sem dogmas” dos palaneses, resolve experimentar a moksha, a erva alucinógena ritual que, em vez de precipitar somente o consumidor num estado de apatetado bem-estar como o soma do Admirável Mundo Novo, lhe abriria as portas do conhecimento transcendental. Nos primeiros instantes, Will “vê a luz”, ou pelo menos pensa que vê. Mergulha num estado de beatitude indescritível e supõe ter conhecido o próprio Deus. De repente, a visão se transfigura. Abrem-se as portas do inferno: vermes horrendos aparecem misturados à figura de Adolf Hitler que gesticula e berra. A visão de Will mostra a verdadeira natureza da religião palanesa: uma religião de “experiências psíquicas”, incapaz de transcender a dualidade cósmica e elevar-se ao reino da eternidade. É a religião dos “grupos-de-encontro”, o substitutivo postiço que uma estratégia política oportunista quis substituir ao cristianismo. Tão logo Will emerge do transe, ele ouve os primeiros tiros do exército invasor: é a mentira essencial de Pala que se desfaz ao mesmo tempo que a falsa visão espiritual.

         Poucos livros foram tão fundo na compreensão do auto-engano congênito da cultura contemporânea. Perto da pedagogia palanesa da ilusão, as técnicas de controle social do Admirável Mundo Novo parecem ingênuas e rudimentares, assim como perto da engenharia comportamental dos anos 60 o totalitarismo explícito da década de 30 parece coisa de orangotangos. O diagnóstico impiedoso do neototalitarismo mental dos anos 60 não pôde ser compreendido por seus contemporâneos. Eles estavam embriagados na mentira nascente, e a antevisão de Huxley passou léguas acima de suas cabeças. Mas, hoje, vivemos no mundo criado por aqueles malditos “jovens idealistas” dos anos 60. As técnicas de controle social e engenharia do consentimento já não são experiências limitadas, efetuadas na privacidade de grupos-de-encontro: são o dia a dia das escolas públicas, onde nossos filhos se encontram à mercê daquilo que Pascal Bernardin chamou “ministério da reforma psicológica”. [4] Tal como Mary Sarojini MacPhail, cada criança, submetida à pressão sutil do grupo, aí adota alegremente as condutas desejadas, sem ter a mínima idéia de possíveis alternativas. Nos EUA, os resultados da adoção maciça dessas técnicas no ensino já são patentes: os índices assustadores de consumo de drogas e a criminalidade infantil nas escolas públicas levam muitos pais a preferir educar seus filhos em casa, enquanto a Prefeitura de Nova York, admitindo-se incapaz de controlar a violência das crianças, privatiza suas escolas como quem entrega um fardo superior às suas forças. No Brasil, esse processo ainda está no começo, mas basta ler os “Parâmetros Curriculares Nacionais” do Ministério da Educação para perceber que a engenharia de comportamento aí predomina amplamente sobre a formação intelectual e a instrução moral honesta. O espírito dos “grupos de encontro” dos anos 60 tomou conta da pedagogia universal, firmemente decidido a “libertar” as crianças do legado da civilização cristã. Quando a “libertação” mostrar sua outra face, quando Pala revelar sua identidade com Rendang-Lobo, haverá choro e ranger de dentes. Mas, como aconteceu com a geração de 60, nenhum dos autores da tragédia reconhecerá suas culpas: cada um deles se proclamará um idealista traído pelos rumos imprevisíveis da História e, revigorado pelo sentimento de inocência, tirará da cartola um novo projeto de “mundo melhor”.

         Aldous Huxley escreveu este livro para nos advertir da culpa monstruosa que se oculta por trás da inocência dos idealistas.

22/4/01


[1] V. Peter Washington, O Babuíno de Madame Blavatski, trad. Antônio Machado, Rio, Record, 2000, assim como René Guénon, Le Théosophisme. Histoire d’une Pseudo-Réligion, Paris, Éditions Traditionnelles, 1929 (reed. 1978).

[2] Um documentário impressionante da devastação psíquica resultante dos experimentos psíquicos da década de 60 encontra-se em Flo Conway e Jim Siegelman, Snapping. America’s Epidemic of Sudden Personality Changes. New York, Lippincott, 1980.

[3] Cit. em E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control, South Bend, St. Augustine’s Press, 1999.

[4] V. Pascal Bernardin, Machiavel Pédagogue ou le Ministère de la Réforme Psychologique, Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1995.