War of Religion?

Olavo de Carvalho
Época, October 20, 2001

For Bin Laden, the Koran was always a pretext

On September 24, Osama Bin Laden said that American forces were entering Afghanistan under the “flag of the Cross.” Two days later, he called George W. Bush the “leader of the unfaithful.” This should be enough to show that his allegation of “holy war” was never more than a smokescreen, an ideological disguise.

According to the Koran, no one can be Christian and unfaithful at the same time. Christians and Jews are clearly included in the Koranic category of “people of the Book” (ahl al-kitab), recognized as a type of Muslim avant la lettre. Their salvation is assured, in unequivocal terms in Sura V:69: “Those who believe [in the Koran], those who follow Jewish scripture, and the Christians – and those who believe in God and on Judgment Day – should fear nothing, for they will not be harmed.”

A conscious Muslim can say that the message received from God by the “people of the Book” is incomplete, that they don’t follow it correctly, but not that they’re “unfaithful” or “idolaters.”

In truth, Islam is accused of strict sectarianism but is the most ecumenical of religions: the succession of prophets, from Adam to Mohammed, includes and legitimizes all monotheistic religions conceived as historical peaks of a single revelation culminating in “Laylat-al-Qadr,” the “Night of Power,” when the archangel Gabriel began to dictate the verses of the Koran to Mohammed. “Unfaithful,” strictly speaking, applies only to atheists, polytheists, and monotheists who in bad faith extort the differences between their respective doctrines and the Koranic message to denigrate the Koran instead of cherishing the mystery of unity in diversity.

In calling Bush one time a Christian and the other unfaithful, Bin Laden showed himself incapable of speaking as a serious religious person, instead as someone trying to speak against his adversary and who, enraged, chooses, any old thing, which shows a clear contradiction.

Is anything else necessary to show that this man’s opposition to the West was never based on valid Koranic justification, rather something else, which employed Koranic propaganda to ornament his rhetoric and cover up an evil political ambition in religious semblance?

At the same time, these considerations discredit historian Paul Johnson’s anti-Muslim tirade which gave involuntary support both to enemies of Islam as those of Israel and the West. In trying to show the radical hostility of Islam against other religions, especially Christianity, Johnson cited Sura IX:5: “Kill the idolaters wherever they are found, and capture them, and surround them, and use traps against them.” Even in the most general sense, the term “idolaters” does not apply to monotheistic cultures. This passage especially refers to the polytheists of Mecca mentioned in the earlier verse who “signed a pact with you [Mohammed] and later failed to respect it.” These are the ones Mohammed should pursue, capture, and kill, as he did according to historical record. But, even the use of force was not unlimited in this case, because Mohammed immediately halted any persecution of his enemies when he entered Mecca, condemning to death only the five key figures and forgiving all others – certainly the lightest war reparation of all time. So, one of them has misinterpreted the verse: Mohammed or Paul Johnson. It’s true that a reading similar to Johnson’s was used by Muslim chiefs to incite violence against Christians, but obviously they were far from the Prophet’s interpretation and, since the acts and words of the Prophet are the highest source of authority in Koranic code, clearly these men, like Bin Laden, were not very orthodox Muslims.

Guerra de religião?

Olavo de Carvalho


Época, 20 de outubro de 2001

Para Bin Laden, o Corão sempre foi apenas um pretexto

Em 24 de setembro Bin Laden disse que as forças americanas entravam no Afeganistão “sob a bandeira da Cruz”. Dias depois, chamou George W. Bush de “chefe dos infiéis”. Só isso já basta para evidenciar que sua alegação de “guerra santa” nunca passou de um subterfúgio, de um disfarce ideológico.

Segundo o Corão, ninguém pode ser ao mesmo tempo cristão e infiel. Cristãos e judeus estão claramente incluídos na categoria corânica de “povos do Livro” (ahl al-kitab), reconhecidos como uma espécie de muçulmanos avant la lettre. Sua salvação está assegurada, em termos inequívocos, na Sura V:69: “Os que crêem (no Corão), os que seguem as escrituras judaicas, e os sabeanos e os cristãos – e quem quer que acredite em Deus e no Dia do Juízo e faça o bem –, esses nada temam, pois não serão afligidos”.

Um muçulmano consciente pode alegar que a mensagem recebida de Deus pelos “povos do Livro” é incompleta, que eles não a seguiram corretamente ou até que a deturparam, mas não que são “infiéis” ou “idólatras”.

Na verdade, o Islã, acusado de sectarismo estreito, é a mais ecumênica das religiões: na sua doutrina da sucessão dos profetas, de Adão a Maomé, estão incluídas e legitimadas todas as religiões monoteístas, concebidas como patamares históricos de uma revelação única que culmina na “Laylat-al-Qadr”, a “Noite do Poder”, quando o Arcanjo Gabriel começa a ditar a Maomé os versículos do Corão. “Infiéis”, a rigor, são aí somente os ateus, os idólatras (politeístas) e aqueles monoteístas que, de má-fé, radicalizem as diferenças entre suas doutrinas respectivas e a mensagem corânica para denegrir esta última, em vez de reverenciar o mistério da unidade por trás da diversidade.

Ao chamar Bush ora de cristão, ora de infiel, Bin Laden mostrou não falar como um religioso sério, mas como alguém que quer dizer algo contra seu adversário e, na fúria, escolhe qualquer coisa a esmo, acabando por apelar a rótulos que se contradizem.

Seria preciso mais para provar que a oposição desse homem ao Ocidente nunca foi inspirada em motivos corânicos válidos, mas sim em alguma outra coisa, em cuja propaganda o Corão foi chamado a servir de ornamento retórico para encobrir sob altas motivações religiosas uma ambição política soberbamente má?

Porém, na mesma medida, essas considerações impugnam a tirada antimuçulmana com que o historiador Paul Johnson deu substancial ajuda involuntária tanto aos inimigos do Islã quanto aos de Israel e do Ocidente. Pretendendo demonstrar a radical hostilidade do Islã às demais religiões, especialmente ao cristianismo, Johnson citou a Sura IX:5: “Matai os idólatras onde quer que os encontreis, e capturai-os, e cercai-os e usai de emboscadas contra eles”. Mesmo em seu sentido mais geral possível, o termo “idólatras” não se aplica aos povos monoteístas. Nessa passagem em especial, ele se refere aos politeístas de Meca mencionados no versículo anterior, que “fizeram um pacto contigo (Maomé) e depois faltaram ao combinado”. A esses Maomé deveria perseguir, capturar e matar, como de fato ele fez e é fato historicamente bem conhecido. Porém, mesmo nesse caso a autorização para o uso da força não era ilimitada, pois Maomé, ao entrar vitorioso em Meca, fez cessar imediatamente qualquer perseguição aos inimigos, condenando à morte apenas os cinco principais e perdoando todos os outros – com certeza a mais branda reparação de guerra de todos os tempos. Portanto, um dos dois interpretou errado o versículo: ou Maomé, ou Paul Johnson. É verdade que uma leitura parecida com a de Johnson foi usada às vezes por chefes muçulmanos para incitar à violência contra os cristãos, mas é óbvio que então se afastaram bastante da interpretação dada em atos pelo Profeta e, como no Islã as ações e palavras do Profeta são a fonte máxima de autoridade na exegese do Corão , é claro que esses homens, como Bin Laden, não eram muçulmanos muito ortodoxos.

Sobre a moralidade de Karl Marx

Por Ipojuca Pontes


Jornal da Tarde (São Paulo), sábado, 20 de outubro de 2001

Ao criticar Apelo aos Eslavos – escrito em que Bakunin (1814/65), a propósito da criação de uma federação eslava, invoca a fraternidade entre os povos e o respeito as fronteiras entre os Estados soberanos –, Karl Marx (1818/83) afirmou, em 1849, na Nova Gazeta Renana:

“Justiça, liberdade, igualdade, fraternidade, independência: nada mais encontramos no manifesto pan-eslavista além destas categorias mais ou menos morais que, é certo, soam bem, mas não têm nenhum sentido no domínio histórico e político. Os Estados Unidos e México são dois povos soberanos, duas repúblicas. Como é possível que entre duas repúblicas que, segundo a lei moral, deveriam estar unidas por elos fraternos e federais, tenha eclodido uma guerra por causa do Texas, e que a vontade soberana do povo americano tenha empurrado uma centena de milhas mais adiante as fronteiras naturais em razão das necessidades geográficas, comerciais e estratégicas? Bakunin censura os americanos por fazerem uma guerra de conquista que é um duro golpe na teoria fundada na justiça e na humanidade, mas que é conduzida no interesse da humanidade. É uma infelicidade se a rica Califórnia foi arrancada dos mexicanos preguiçosos que não sabiam o que fazer dela? Se os enérgicos yankees, graças a exploração das minas de ouro daquela região, aumentam as vias de comunicação, concentram sobre a costa do Pacífico uma população densa e um comércio em expansão, abrem linhas marítimas, estabelecem uma via férrea de Nova York a São Francisco, abrem pela primeira vez o Pacífico à civilização e pela terceira vez na história dão uma nova orientação ao comércio mundial? A independência de alguns californianos pode sofrer com isso, a justiça e outros princípios morais podem ser feridos – mas isto conta, diante de tais realidades que são o domínio da história universal?”

Para Marx, claro, não contava, e a resposta a Bakunin expressa, com espantosa nitidez, a questão da ética e da moral na doutrina marxista. Não é necessário aqui nenhum esforço para reconhecer que Marx, em nome da real politik, justifica e admite, sem a menor cerimônia, a pilhagem, a exploração e o massacre de “povos preguiçosos” (os mestiços mexicanos) em nome de presumível “domínio histórico universal” empreendido pelos norte-americanos. O que é para o líder anarquista um ato imoral, para Marx não ultrapassa os limites de simples decorrência histórica, pois, segundo entende, os fins justificam os meios.

Analistas costumam ressaltar, repetindo o próprio Marx, que o “socialismo científico” não se ergue sobre uma exigência moral subjetiva, mas em torno de uma teoria objetiva da história – dialética e progressista –, que aceita a expansão colonialista como uma etapa historicamente necessária para a formação do sociedade socialista: a história se faz de contradição, o feudalismo é suplantado pelo capitalismo e o capitalismo, por sua vez, não é o fim da história. Assim, a exigência moral, ou de qualquer conjunto de regras de conduta, seria no capitalismo uma excrescência, embora seja perceptível uma postura moral inseparável à teoria marxista da história: nela tudo é permitido desde que o seja em função da emancipação da classe operária.

Trata-se de um contra-senso, mas só a partir dele poderia aceitar-se o entendimento da moral como mera “ideologia” subordinada a “interesses particulares de classe”, cujas formas “não podem desaparecer a não ser com o desaparecimento total dos antagonismos de classe”, ou seja, com o advento do comunismo e da moral proletária, que se tornaria a moral definitiva da humanidade.

À margem o fato de ampliar o abismo entre a conduta ética e o comportamento político – assunto polêmico e de crescente atualidade –, a instrumentalização da ética no contexto da teoria marxista nos leva ao incontornável questionamento dos meios utilizados para se chegar aos fins revolucionários (o poder) e, por extensão, à necessária pergunta: se os fins justificam os meios, quem justifica os fins quando os meios utilizados são maus?

Parte da resposta talvez venha a ser encontrada no exame da própria conduta de Marx, à luz de dados biográficos reais e longe da imagem mítica partidariamente cultivada, na maneira como se comportava com amigos e familiares e, em especial, nos métodos que empregava no confronto com adversários para impor a doutrina comunista e sua ética de resultados.

A primeira coisa a ressaltar em Marx diz respeito ao caráter impositivo. Marx não pedia, mandava. Não se desculpava, justificava-se. Não dialogava, impunha ou aliciava. Um dos poucos homens com quem conviveu sem brigar, o poeta Heinrich Heine, escreveu que “Marx se julga um Deus Ateu autonomeado”. Quando, por qualquer razão, se impacientava com um circundante – como no caso em que humilhou publicamente o operário Weitling –, partia para explosão verbal. Um observador, Pavel Annenkov, traçou-lhe o perfil: “Falava sempre com palavras imperiosas, que não admitiam contradição, e que se tornavam ainda mais incisivas pela sensação quase dolorosa do tom que perpassava tudo o que dizia. O tom expressava a firme convicção de sua missão de dominar a mente dos homens e de lhes ditar suas leis. Diante de mim erguia-se a encarnação de um ditador democrático.”

Boa demonstração do seu caráter revela-se na polêmica que travou com P. J. Proudhon (1809/65), o socialista francês que o acolheu no exílio, antes de Marx ser expulso de Paris, em 1844. Proudhon tinha se tornado o mestre do socialismo europeu com a publicação de O Que é a Propriedade?, ao ponto de Marx reverenciá-lo, em A Sagrada Família, como criador de “obra que revoluciona a economia política, tornando possível, pela primeira vez, uma verdadeira ciência da economia política”.

Mas Proudhon, desconfiando do caráter de Marx, impregnado de virulência, recusou o convite deste (feito por carta) para ingressar no Comitê Comunista de Correspondência, sediado em Bruxelas. Ponderou, profético, Proudhon:

“Faço profissão pública de um antidogmatismo econômico absoluto. Se o sr. quiser, investiguemos juntos as leis da sociedade, o modo como essas leis se realizam, o processo segundo o qual chegaremos a descobri-la – mas, por Deus, depois de demolir todos os dogmatismos a priori, não pensemos em doutrinar o povo, não caiamos na contradição do v. compatriota Lutero, que, depois de haver derrubado a teologia católica, colocou-se logo, através de anátemas e excomunhões, a criar uma teologia protestante… Façamos uma boa e leal polêmica; demos ao mundo o exemplo de tolerância sábia e previdente, mas não nos tornemos os chefes de uma nova intolerância, não nos coloquemos como apóstolos de uma nova religião, mesmo que essa religião seja da lógica, da razão… Com essa condição entrarei na v. associação – senão, não!

“Devo ainda fazer algumas observações à expressão “momento de ação” (revolucionária) de v. carta. Eu creio que não temos necessidade disso para vencer, e que, conseqüentemente, não devemos colocar a ação revolucionária como meio de reforma social, porque esse meio seria simplesmente um apelo à força, ao arbítrio; em suma, uma contradição.”

A resposta de Marx veio em 1847, com Miséria da Filosofia, depois que Proudhon lançou Sistema das Contradições Econômicas, uma construção antitética que propõe o entendimento da propriedade – a lado de ser uma apropriação indébita – como uma forma de liberdade. No opúsculo, Marx, irado com a recusa e os comentários de Proudhon, reduz a quem antes considerava “o mais notável socialista francês” à mera condição de “socialista utópico”, um “pequeno burguês oscilante entre o capital e o trabalho”.

Sabe-se hoje que o “socialismo científico” de Marx revelou-se tão utópico quanto o do “pequeno burguês” Proudhon, que, a rigor, jamais encarou o socialismo como uma ciência e repudiou sempre qualquer forma de ditadura, em especial a do proletariado. Depois de ler o arrazoado marxista, o francês resumiu-se a anotar num canto de página: “Um tecido de grosserias, calúnias, falsificações e plágios. Marx é a tênia do socialismo.”

De fato, para anular os adversários o pensador alemão tratava a moral comum aos pontapés. O exemplo dos métodos que empregava para neutralizá-los pode ser avaliado no seu desforço contra Bakunin, por quem, segundo o minucioso historiador inglês Robert Payne (Marx, Londres, 1968), nutria inveja acalentada pelo ódio. O anarquista russo (que, no dizer de Bernard Shaw, inspirou Wagner a compor o Siegfried), dono de personalidade incandescente e oratória libertária, desestabilizou, enquanto pôde, o controle que Marx detinha sobre o operariado europeu e, mais tarde, sobre a Associação Internacional de Trabalhadores. Em desacordo com a política ditatorial levada adiante por Marx, Bakunin articulou a formação de uma federação de associações de trabalhadores que logo ganhou adeptos na França, Itália, Espanha, Suíça e outros países europeus.

Sem condições de destruir o prestígio de Bakunin e temendo o seu poder de liderança, Marx, com o objetivo de desmoralizá-lo, publica na Nova Gazeta Renana informação de que o líder russo era um agente secreto da polícia czarista, dando como fonte suposta documentação em mãos da escritora Georg Sand. Ao tomar conhecimento da calunia, Sand, indignada, exigiu imediata retratação. Marx justificou-se afirmando que assim procedia “para defender o movimento socialista dos governos capitalistas”.

Mas não ficou por aí. Durante o congresso da Internacional em Haia, em 1872, ressabiado pela avassaladora atuação de Bakunin e suas idéias desestatizantes, denuncia-o por atos irresponsáveis de fato cometidos pelo terrorista Netchaiev (uma carta de ameaça ao editor de O Capital), sem que Bakunin tivesse participação direta no episódio – o que determina sua exclusão da Internacional.

Reconhecendo, no entanto, a força de Bakunin e certo de que na Europa, cedo ou tarde, a Internacional cairia em mãos deste, Marx, então conhecido como o “Doutor do Terror Vermelho”, numa manobra maquiavélica transfere a sede do seu Conselho Geral para Nova York – o que, em termos práticos, significou o fim da Internacional.

Outro traço do caráter de Marx é o que aponta para a completa falta de escrúpulos quando se tratava de alterar dados e informações que, de algum modo, servissem a causa do “socialismo científico”. No discurso inaugural da Internacional, em 1864, Marx, como registra o historiador Leslie Page (K. Marx and Critical Examination of his Works, Londres, 1987), para impressionar os trabalhadores adultera deliberadamente mensagem orçamentária de Gladstone (várias vezes primeiro ministro inglês), de 1863. Na oração, escreveu Gladstone sobre o crescimento da riqueza nacional: “Veria quase com apreensão e dor este inebriante crescimento da riqueza e poderio se acreditasse que está circunscrito a classe conservadora. A condição média do trabalhador inglês, é uma felicidade sabê-lo, melhorou nos últimos 20 anos, a um grau que sabemos extraordinário e que podemos qualificar como sem paralelo na história de qualquer país e de qualquer época.” Marx, mutilando e invertendo tudo, fez Gladstone dizer: “Este crescimento inebriante de riqueza e poderio está totalmente circunscrito a classe dos proprietários.”

Na manipulação de dados estatísticos contidos nos Livros Azuis de Biblioteca do British Museum, publicados pelo governo e fonte para a elaboração dos capítulos XIII e XV de O Capital, a conduta do pai do “socialismo científico” chega a ser, segundo analistas da Universidade de Cambridge (apud Paul Johnson, em Intellectuals, W&N, 1988) de “assombrosa temeridade”, concluindo que “há um desapreço quase criminoso no uso das fontes”, o que coloca “qualquer parte da obra de Marx sob suspeita”. Para comprovar sua verdade, Marx, que durante toda vida jamais entrou numa fábrica, usa material sabidamente desatualizado e elege como exemplo indústrias pré-capitalistas, com mais de 40 anos de atraso, que não tinham condições para incorporar novas maquinarias.

No capítulo de apropriação intelectual Marx ultrapassa os limites da pura desonestidade. Para compor seus escritos eivados de metáforas apocalípticas, toma como seu aquilo que foi criado por outros, sem apontar autoria. De Marat, se apropria da frase “o proletariado não tem nada a perder, exceto os grilhões”. De Heine, “a religião é ópio do povo”; e, de Louis Blanc, via Enfantin, sacou a formula “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. De Shapper, tirou a convocação “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”, e, de Blanqui, a expressão “ditadura do proletariado”. Até mesmo sua obra mais bem acabada e de efeito vertiginoso, O Manifesto Comunista (1848, em parceria com Engels), tem-se, entre os anarquistas, como plágio vergonhoso do Manifesto da Democracia, de Victor Considérant, escrito cinco anos antes.

Marx considerava que as leis morais não haviam sido criadas para ele – é o que indica o seu modo de agir em vida. Para além das idéias, os métodos por ele empregados influenciaram de modo catalisador a prática comunista, no século 20: sem eles, dificilmente Lênin, Trotski, Stalin, Mao, Fidel, Pol Pot e congêneres encontrariam respaldo moral para justificar seus crimes contra a humanidade. Depois da derrocada da União Soviética, levantada a cortina do terror, viu-se que mais de 100 milhões de pessoas tinham sido destroçadas em nome de uma absurda “moral proletária”, que, estranhamente, parece ainda pontificar como se nada tivesse ocorrido.

O fim da existência de Marx foi patético. Morreu praticamente só, aos 65 anos, depois de percorrer estações balneárias para mitigar o sofrimento físico, lastimando-se de dores generalizadas na laringe, brônquios, tumores, insônia e suores noturnos. Ao médico que dele cuidava, deixou bilhete, no qual dizia “só encontrar certo alívio numa terrível dor de cabeça – pois a dor física é a único ‘estupefaciente’ da dor psíquica”.

Sua família foi a grande vítima. Dos seis filhos que teve com a mulher, Jenny, uma aristocrata, três morreram na primeira infância, em decorrência do estado de penúria a que foram submetidos, e os outros – as filhas Jenny, Laura e Leonor – terminaram a vida cometendo suicídio. O único sobrevivente, Freddy, filho de Marx com a empregada, Helene, nunca reconhecido pelo pai, foi adotado por Engels para “salvar as aparências”. Jenny, a mulher, prematuramente envelhecida pelo sofrimento, morreu aparentemente sem perdoar o marido por ter engravidado a empregada.

Com os pais, Marx não se comportou de modo menos egoísta. Por ocasião da morte do pai, Heinrich, vítima de câncer no fígado, não compareceu ao enterro porque, segundo ele próprio, “não tinha tempo a perder”. Por conta disso, a mãe, Henriette, saturada de pagar suas dívidas, com ele cortou relações, não antes de adverti-lo: “Você devia juntar algum capital em vez de só escrever sobre ele.”

Mas foi ao cometer grosseria com a amigo e provedor de todas as horas, Engels (1820/95), que Marx concedeu a chave para explicação de sua moralidade. Após a morte da companheira amada Mary Burns, Engels escreve ao amigo dizendo-se arrasado pelo fato (Karl Marx, Francis Wheen, Record, 2001). Marx, por carta, responde que a notícia o surpreendeu, mas logo passa a tecer considerações sobre as próprias necessidades pessoais. Engels, magoado com a frieza do outro, suspende dádivas e correspondência. O que leva Marx, apressado, não propriamente a pedir desculpas pela conduta mesquinha, mas a admitir, com franqueza brutal, que “em geral, nessas situações, meu único recurso é o cinismo”.

Ipojuca Pontes é escritor e cineasta