Ilusões que se desfazem

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 10 de novembro de 2005

Qualquer tomada de posição nos debates do dia a dia depende de três fatores. Antes de tudo, cada indivíduo opinante traz consigo uma hierarquia abstrata de valores genéricos que orienta suas escolhas. Em segundo lugar, ele possui alguma representação esquemática das forças em disputa, de modo a poder identificar quais delas personificam os seus valores e quais os valores opostos. Mas – terceiro fator — essa representação depende do fluxo de informações que ele recebe da cultura em torno. Um fluxo viciado pode levar as pessoas a apostar em forças que destroem os seus valores em vez de realizá-los. Repetidas desilusões não bastam para reorientar as escolhas se o erro básico não é conscientizado e sua correção sistemática não se integra por sua vez na corrente de informações.

Na política, as escolhas dependem, em última instância, da representação geral dos poderes em conflito no mundo. Há décadas o público brasileiro se deixa guiar por uma representação falsa. Isso vem acontecendo desde que a orientação da cultura deixou de refletir o pluralismo espontâneo das idéias e passou a ser moldada hegemonicamente por uma corrente de opinião organizada, investida dos meios de marginalizar as demais e impor a sua própria visão como se fosse a única. Não o fez de maneira unilinear e dogmática, mas de tal modo que as suas próprias contradições internas, de ordem puramente adjetiva, parecessem esgotar o rol das discussões possíveis, tornando difícil apreender e verbalizar qualquer outra alternativa. A disputa presidencial de 2002, protagonizada por quatro candidatos ideologicamente uniformes, foi a cristalização eleitoral de um longo processo de recorte e moldagem do imaginário coletivo, em resultado do qual os cidadãos permaneciam livres para cultuar os valores subjetivos que quisessem, desde que na prática os personificassem nas forças escolhidas para esse fim pela representação imperante.

Durante um tempo, isso produziu um sentimento geral de unanimismo eufórico, infundindo em todos a ilusão de ter encontrado a fórmula da harmonia entre os valores amados e as forças capazes de realizá-los.

Contradições insolúveis não demoraram a aparecer, rompendo o círculo da falsa harmonia. Se a concorrência política normal já custa muito dinheiro, a hegemonia custa muito mais. Para conquistá-la, impondo-se artificialmente como personificação monopolística dos valores mais altos, a organização dominante teve de recorrer aos meios mais baixos. Nem poderia ser de outro modo. Na ética comunista, isso não tem nada de mais. Mas como explicar isso a eleitores que foram levados a enxergar num partido comunista a encarnação da moral no sentido mais usual e burguês do termo?

Pode-se tentar remendar o véu da ilusão, mas uma contradição ainda mais inconciliável, em escala planetária, ameaça rasgar em breve o que reste dele. Em vista dos resultados políticos desejados localmente, a população nacional foi ensinada a conceber o mundo como um cenário dividido, tal como no filme “Guerra nas Estrelas”, entre um Império global — identificado com os EUA — e as forças esparsas das nações sequiosas de liberdade. A disputa pelo poder sobre a internet desfará, num instante, essa representação grotescamente invertida. A República do Irã, a China, a Arábia Saudita e a ONU, que ao lado do Brasil e da burocracia européia lutam contra a “dominação americana” sobre a rede, jurando com isso defender o pluralismo e a democracia, são notórias censoras da internet , ao passo que o controle nas mãos dos americanos tem assegurado justamente a total ausência de censura. Aqueles que odeiam os EUA mas amam o direito de navegar livremente pela rede não demorarão a perceber, diretamente nas telas de seus computadores domésticos, que seu objeto de ódio é a única esperança de salvar seu objeto de amor. A representação vigente, como um vírus pego em flagrante, correrá então o risco de ser repentinamente deletada de todos os HDs.

Os iluminados

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de novembro de 2005

O advento da internet multiplicou de tal maneira as fontes de dados ao alcance do público, que para o estudioso capaz de tirar proveito delas – um tipo raro, admito –, a experiência rotineira de ler os jornais ou ver os noticiários de TV se tornou uma lição de psicopatologia social, a medição diária da distância entre a realidade e o universo subjetivo dos “formadores de opinião”, incluídos nisto não só os jornalistas, é claro, mas o conjunto dos indivíduos e grupos que eles costumam ouvir: políticos, líderes empresariais, professores universitários, gente do show business etc.

As conversações dessas pessoas constituem o foco da atenção pública. Tudo o que escape ao interesse habitual delas é, para o povo em geral, como se não existisse. Mesmo realidades patentes que o cidadão comum observa e comprova na sua vida de todos os dias podem ser relegadas a um segundo plano e desaparecer por completo do seu campo de visão consciente  quando a importância delas não é legitimada pelo reconhecimento comum dos bons de bico. Se a coisa não aparece nos jornais e não é debatida na TV, não pesa na hora de tirar conclusões. No mínimo, aquilo que não entra nos debates das classes “cultas” não tem uma linguagem estabilizada na qual expressar-se, e seria ridículo esperar que o homem da multidão, desprovido do apoio de chavões consagrados, conseguisse inventar na hora os meios de transmitir impressões pessoais diretas. O que não se consegue falar acaba-se esquecendo. O homem medíocre não acredita no que vê, mas no que aprende a dizer.

A premissa geral que fundamenta a tremenda autoridade das “classes falantes” — como as chamava Pierre Bourdieu — é que, pela lei das probabilidades, dificilmente algo de muito relevante pode escapar aos olhos de lince das parcelas supostamente mais esclarecidas da população. O problema é que estas acreditam na mesma premissa, e portanto só recebem informações do seu mesmo círculo, ignorando tudo o mais e imaginando que sabem tudo. Toda verdade relativa, quando se torna crença geral, acaba se revestindo de um sentimento de certeza absoluta que a transforma, quase que automaticamente, em erro mais que relativo.

Um mínimo indispensável de prudência recomendaria a essas pessoas duvidar um pouco das suas crenças grupais e tentar dar uma espiada no subsolo da conversação dominante, nas zonas mais humildes da realidade, onde germinam as sementes do futuro. Toda gestação é envolta em sombras. Quem só olha para onde todo mundo olha condena-se a ignorar poderosas forças históricas que estão subindo desde as profundezas neste mesmo momento e que arriscam, de uma hora para outra, irromper no palco destruindo brutalmente o sentido usual do espetáculo. Quando vocês ouvirem algum figurão expondo com superior tranqüilidade as certezas do momento, lembrem-se disto: a máquina de corrupção petista, a maior já montada ao longo de toda a epopéia da safadeza nacional, foi negada pelos onissapientes durante mais de dez anos, por mais que gente de dentro do partido oferecesse informações de primeira mão a respeito. Negavam-na no mesmo tom de autoridade superior com que hoje negam a ajuda ilegal de Fidel Castro à campanha de Lula. O tal do Cervantes, enquanto isso, tratou é de dar no pé. Uma só opinião expressa em atos vale mais que mil em belas palavras.

Nem vale a pena discutir as alegações dessa orquestra de silenciadores. Cuba não tem dinheiro? Fidel Castro tem. As Farc têm muito mais. A operação é tosca demais para o alto nível da estratégia cubana? Só acredita nessa desculpa quem não conhece a biografia militar de Fidel Castro, uma sucessão de erros pueris transmutados em vitórias publicitárias. Cuba está quietinha no seu canto, sem mexer na política de outros países? Leiam as atas do Foro de São Paulo. Cuba governa o continente.

Os subterfúgios bobos só pegam porque respaldados em três décadas de fantasias transfiguradas em senso comum pela mágica da mídia. Não há um só luminar do jornalismo brasileiro que não acredite, por exemplo, na balela das “conquistas de la revolución”. Em 1957, dois anos antes de Fidel Castro chegar ao poder, Cuba já tinha duas vezes mais médicos per capita do que os EUA (e não com o atual salário de trinta dólares por mês), sua taxa de mortalidade infantil era a mais baixa da América Latina (a décimo-terceira no mundo, inferior à da França, da Alemanha Ocidental, da Bélgica e de Israel), sua renda per capita era o dobro da espanhola, a participação dos trabalhadores cubanos no PNB era proporcionalmente maior que a dos suíços e a taxa nacional de alfabetização era de 80 por cento. E Cuba era lotada de imigrantes, não de virtuais fugitivos.

Esses dados jamais aparecem nos jornais e na TV. Sem eles, parece mesmo que Fidel Castro fez alguma coisa pelos cubanos. Não fez nada, além de enviar à morte uns cem mil deles, aprisionar outros quinhentos mil e atormentar tanto a população que a quinta parte dela fugiu para Miami, onde hoje forma uma das comunidades mais prósperas dos EUA, enquanto os que ficavam na ilha alcançavam os dois únicos recordes espetaculares que podem ser atribuídos ao regime comunista: a quota de vigilantes, policiais e olheiros subiu para 28 por cento da população, enquanto a taxa de suicídios chegava a 24 para cada mil cubanos em 1986 (tendo desde então desaparecido das estatísticas oficiais).

Esses dados, repito, jamais aparecem na mídia popular brasileira. Suas fontes são muitas: o Livro Negro da Revolução Cubana , relatórios da ONU e da Anistia Internacional, os livros de Armando Valladares, Carlos Alberto Montaner, Humberto Fontova, Guillermo Cabrera Infante, Luís Grave de Peralta Morell, a imprensa cubana exilada em Miami. Quem, na mídia nacional, lê essas coisas? Jamais. Fontes confiáveis em assuntos cubanos, para os jornalistas brasileiros, só as que vêm com o imprimatur de Fidel Castro. O resto descarta-se com três palavras: “Máfia de Miami”. Acompanhada de um muxoxo de desprezo, essa expressão tem efeito probante imediato. Como se a Máfia não estivesse em Havava, como se sucessivos traficantes cubanos presos nos EUA já não tivessem delatado o papel central de Fidel Castro no banditismo continental, como se um promotor federal americano não tivesse declarado ao Miami Herald , em julho de 1996, possuir “mais provas contra Fidel Castro do que aquelas que levaram ao indiciamento de Manuel Noriega em 1988”. Tudo propaganda da CIA, é claro.

Mas não pensem que a cegueira das classes falantes se limite a fatos sucedidos num país sem imprensa livre, onde a informação extra-oficial é inexistente. Elas não sabem nem o que se passa nos EUA. E não o sabem porque, nesse ponto igualmente, só confiam em seus semelhantes: a grande mídia americana e os “intelectuais públicos” tipo Chomsky e Michael Moore. Por isso acreditam, por exemplo, que o vazamento de informações sobre a identidade de uma agente da CIA seja mesmo um caso sério, daqueles de derrubar governo. De dentro dos EUA, a coisa se mostra bem menor. Tudo o que o feroz promotor Fitzgerald conseguiu até agora foi indiciar o assessor de um assessor do vice-presidente. E indiciá-lo por perjúrio, crime pessoal que não tem como envolver os superiores do acusado. Fitzgerald apegou-se a isso justamente porque, na questão central do inquérito, nada podia fazer além de barulho na mídia. Milton Temer, um dos sábios de plantão na taba, diz que o vazamento “é episódio considerado dos mais graves, na legislação dos Estados Unidos, um ato de traição abominável, punido com 30 anos de cadeia, mais multa pesada”. Haja paciência. Dar o nome de um agente só é crime quando o sujeito está no exterior, em missão confidencial, protegido pelo governo sob recomendação expressa de sigilo. A dona estava em casa, sem missão nenhuma. Juridicamente, ninguém pode fazer com isso nada contra Dick Cheney, Karl Rove ou o próprio Lewis Libby. Resta tentar dar uma bela impressão de crise para ver se vira crise de verdade. Sei que o que estou dizendo não é o que aparece no New York Times . Mas quem, aqui nos EUA, leva a sério o New York Times ? Isso é leitura para pseudo-intelectuais do Terceiro Mundo. Uma pesquisa recente do próprio jornal mostrou que só trinta por cento dos seus leitores confiam nele. E trinta por cento de quanto? De um milhão e pouco de exemplares, num país de trezentos milhões de habitantes. É um crente contra mil céticos. Se você quer saber no que acredita o eleitorado americano, sintonize no programa de Rush Limbaugh: trinta e oito milhões de ouvintes diários. Ou o do Sean Hannity: dezoito milhões. Os grandes jornais americanos são como a elite intelectual brasileira: um punhado de idiotas que se esfregam uns aos outros como drogados numa orgia, desprezando tudo do mundo em volta e se imaginando, por mera loucura, no topo da hierarquia universal.

O auto-engano coletivo que, partindo da grande mídia americana, penetra nos cérebros brasileiros como uma carga maciça de cocaína, chega ao ponto de abafar, com renitência obstinada e criminosa, os fatos mais essenciais da época, substituindo-os por frases-feitas que, depois de umas quantas repetições, se tornam dogmas da opinião pública e premissas incumbidas de sustentar com sua solidez inabalável as conclusões mais bobocas e mecânicas que um cérebro galináceo poderia produzir. Exemplo de silogismo:

Premissa maior : Não havia armas de destruição em massa no Iraque.

Premissa menor: Bush disse que havia.

Conclusão : Logo, Bush mentiu para matar criancinhas e encher a Halliburton de dinheiro iraquiano.

Bem, quem disse que não havia armas de destruição em massa no Iraque? A côrte dos iluminados. Os relatórios militares dizem que foram encontrados até agora:

  • 1,77 toneladas métricas de urânio enriquecido;
  • 1.500 galões de agentes químicos usados em armas;
  • 17 ogivas químicas com ciclosarina, um agente venenoso cinco vezes mais mortal que o gás sarin;
  • Mil materiais radiativos em pó, prontos para dispersão sobre áreas populosas.
  • Bombas com gás de mostarda e gás sarin.

Se essas coisas não são armas de destruição em massa, são o quê? Peças do estojo “O Pequeno Químico”?

Não há no Pentágono quem as ignore. Mas o Pentágono, na guerra de mídia, é nada. Só fiquei sabendo dessas descobertas porque as li no livro de Richard Miniter, Disinformation: 22 Media Myths That Undermine the War on Terror . Miniter, veterano jornalista investigativo, foi colunista do Wall Street Journal e do Washington Post . Escreveu também no New York Times , que hoje pode não gostar muito do que ele diz mas não pode tirá-lo da sua lista de best-sellers , onde ele está entrando pela terceira vez (as duas anteriores foram com Shadow War: The Untold Story of How Bush Is Winning the War on Terror e Losing Bin Laden: How Bill Clinton’s Failures Unleashed Global Terror).

Miniter também reduz a pó dois artigos-de-fé das classes falantes: mostra que Bin Laden não foi treinado pela CIA e que a Halliburton não está ganhando dinheiro no Iraque.

Mas nem de longe pensem que, nos EUA, só a esquerda vive se intoxicando com seus próprios mitos. O entourage de George W. Bush conseguiu convencer o presidente de que, na América Latina, a única cobra venenosa é Hugo Chavez e de que o antídoto para a mordida da bicha é… Luís Inácio Lula da Silva. Os espertinhos chegaram a essa conclusão analisando o estado de coisas com olhos de mascates. Acham que não há encrenca que um bom acordo comercial não resolva. Pena que não contaram isso a Lenin, a Hitler, a Mao Dzedong, a Pol-Pot e ao próprio Fidel Castro. Não entendem sequer que a política latino-americana não se faz Estado por Estado, mas desde uma aliança continental forjada por Fidel Castro, a qual precedeu e criou a ascensão de Lula, Chavez, Kirchner e tutti quanti , sobre os quais tem autoridade absoluta sedimentada no poder financeiro e militar das Farc. O economicismo insano que sai festejando uma vitória econômica quando fornece armas atômicas aos generais chineses que prometem destruir a América (v. http://www.olavodecarvalho.org /semana/050620dc.htm) é também a orientação básica da política de Washington para a América Latina há mais de uma década, e seus resultados são visíveis: todo o continente sob o domínio da esquerda e embriagado de ódio americano como nunca se viu no mundo. Bush foi persuadido a continuar na mesma linha, e o irrealismo da sua posição é tal que ele se obriga, num ritual masoquista, a tomar como amigo do peito o líder máximo do partido que organiza contra ele as mais vastas manifestações anti-americanas já observadas no Brasil.

Karl Marx, autor de tantas bobagens, disse uma coisa certíssima: “A maioria, quase sempre, está errada.” Esqueceu-se de ressalvar que essa observação não se aplica à maioria das pessoas em geral, mas especialmente à maioria dos “intelectuais”, no sentido ampliado que Gramsci deu ao termo. Eles criam a “opinião pública” e depois apelam à autoridade dela para sentir-se seguros. Pintam um deus-asno na parede e se ajoelham diante dele, pedindo-lhe a verdade revelada.

Foram esses sujeitos que meteram na cabeça de Chamberlain que Hitler era um perfeito cavalheiro, na de Roosevelt que Stalin era um honrado homem do povo e Mao Dzedong um reformador cristão. Foram eles que convenceram a América de que as tropas soviéticas sairiam da Europa quando os soldados americanos voltassem para casa. Foram eles que anunciaram ao mundo que Fidel Castro iria restaurar a democracia em Cuba e que os comunistas vietcongues seriam gentis com as populações do Vietnã do Sul e do Camboja quando vissem os malditos ianques pelas costas. Foram eles que persuadiram a humanidade de que a África, bastando livrar-se do “imperialismo”, se tornaria uma potência industrial em poucas décadas. Foram eles que, entre nós, criaram a lenda do “partido ético” e repeliram como insinuação maldosa cada denúncia de corrupção petista entre 1990 e 2005. São eles que asseguram, agora, que Fidel Castro não deu a Lula nenhum dinheiro por baixo do pano.

Mentalidade criminosa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 3 de novembro de 2005

A estratégia de defesa adotada pela Presidência da República para esconjurar suspeitas por atacado e reprimir nas consciências o direito mesmo de suspeitar é o mais eloqüente sinal não somente das culpas que carrega, mas também de sua total falta de disposição de submeter-se à ordem legal que lhe incumbe representar e defender.

Nenhum dos presidentes anteriores, acusado do que quer que fosse, teve jamais o desplante, o cinismo supremo de negar à mídia o direito de publicar indícios, de pedir investigações, de destampar impiedosamente quantos ralos e latrinas fosse necessário para que a transparência que todos diziam desejar não fosse somente a de um véu de retórica eleitoral por cima de uma montanha de obscuridades criminosas.

Só mesmo o governo chefiado por um semi-analfabeto pode exigir “provas” de uma denúncia de imprensa e ameaçar criminalizá-la por falta delas. Esse homem que se gaba de nunca ter lido um livro só mostra, com essa atitude, que não sabe nem ler jornal; mas seus assessores espertos, que o sabem perfeitamente, prevalecem-se da ignorância presidencial para se fazer eles próprios de ignorantes e impingir à opinião pública critérios de julgamento que nenhum cidadão letrado pode aceitar. Isso é, em sua forma mais pura e evidente, exploração da boa-fé popular. “Provar” a veracidade de uma declaração está infinitamente acima da capacidade e dos deveres do jornalismo. Tudo o que o jornalista pode fazer é mostrar a fonte do que disse e demonstrar que reproduziu suas palavras o mais fielmente possível. Veracidade ou inveracidade do conteúdo dependem da fonte e somente dela. E só a justiça pode confirmar ou negar uma ou a outra. Ao jornalista não cabe antecipar-se à justiça, provando tudo logo na primeira denúncia, mas apenas levantar indícios razoáveis, sob a forma de documentos ou testemunhos — exatamente com fez Veja no concernente à ajuda ilegal de Cuba à candidatura Lula –, para justificar a investigação judicial que, esta sim, dirá se a acusação era verdadeira ou falsa.

Mesmo num processo judicial não se exige que a parte denunciante forneça provas cabais desde o início. Elas são oferecidas no curso do processo, que se chama “processo” justamente por isso e por nada mais. Se fosse preciso provar tudo de cara, não haveria processo nenhum. O processo é o processo da descoberta progressiva da verdade . Dos primeiranistas de faculdade aos juízes do STF não há em todo o universo judicial brasileiro quem ignore isso. O único que o ignora está no Palácio do Planalto: é o sr. Luiz Inácio Lula da Silva. O povo brasileiro precisaria ser tão ignorante quanto ele — ou ser reduzido artificialmente a essa ignorância por uma feroz campanha de desinformação — para aceitar a idéia de que o jornalista, se não pode provar desde logo e por seus próprios recursos a veracidade de declarações colhidas de uma fonte, é um criminoso. Criminosos são os assessores presidenciais que querem enganar a opinião pública, levando-a a acreditar que esgares ameaçadores são justiça, quando são apenas a justiça da Rainha de Copas. Criminoso não é denunciar sem provas cabais: criminoso é exigir provas cabais no início para impedir que elas sejam obtidas no fim.

Tanto mais intolerável é esse procedimento porque vem justamente de indivíduos e grupos que, tendo promovido a cassação do ex-presidente Fernando Collor às pressas, sem esperar por provas judiciais de qualquer natureza, não tiveram sequer a honestidade mínima de retratar-se de seus discursos de acusação quando a própria Justiça, anos depois, sentenciou que essas provas simplesmente não existiam. Se esses mesmos, agora, numa inversão kafkiana da lógica judicial, requerem provas não somente como exigências prévias para a investigação que deveria buscá-las, mas como condições legitimadoras do direito mesmo de pedir uma investigação, revelam com isso o quanto é arraigada e natural, nos seus corações, a crença de que deve haver uma lei dura e exigente para seus inimigos e outra, branda e generosa, para eles próprios. Só que essa crença o traço mais básico e inconfundível da mentalidade criminosa.