Consciências deformadas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2005

Semanas atrás, escrevi aqui que as denúncias contra Tom De Lay não passariam na Justiça; que eram apenas um truque sujo concebido para afastar de seu cargo na Câmara o líder republicano que constituía um pesadelo para os democratas. Dito e feito: as acusações principais já caíram. De Lay agora prepara o contragolpe judicial contra o promotor Ronnie Earle e provavelmente vai acabar com a carreira do distinto. Mas nem por isso conseguirá voltar à liderança em tempo de reconquistar seu prestígio antes das eleições parlamentares de 2006. O golpe baixo acertou em cheio. Uma coisa é estar limpo perante os tribunais; outra é lavar uma imagem coberta de infâmia pela vasta e persistente campanha de mídia que secundou (até no Brasil, para vocês verem como essas coisas vão longe) a investida de Ronnie Earle, tarimbado difamador judicial de inimigos políticos. Não que a palavra dos jornalistas pese alguma coisa nas eleições: uma recente pesquisa da Gallup mostra que apenas 24 por cento dos americanos acreditam um pouco neles ( http://www.mediainfo.com/eandp /news/article_display.jsp?vnu _content_id=1001614003 ). Mas pesa no ambiente social em torno, que pode oprimir com todo o peso do inferno. A prova de inocência não remove esse peso um só milímetro. De Lay continuará com a fama de escroque, e a esquerda ainda ganhará mais um mártir: Ronnie Earle.

Ninguém, como o pessoal da mídia e da intelligentzia esquerdista, tem a capacidade de continuar fingindo crença numa mentira longo tempo depois de desmascarada. Vejam, por exemplo, o último filme de George Clooney, Good Night, and Good Luck , que glorifica um jornalista medíocre, Edward R. Murrow (personificado por David Strathairn), por haver combatido o senador Joe McCarthy. A velha choradeira antimacartista ainda funciona, mais de uma década depois de provado que nenhum dos investigados do famoso Comitê McCarthy era vítima inocente, que todos eram mesmo devotados colaboradores secretos de uma ditadura genocida, usando dos direitos democráticos para destruir a democracia. Depois da abertura dos arquivos de Moscou e da publicação dos comunicados entre a embaixada soviética e o Kremlin no período da Guerra Fria, pode-se acusar McCarthy de tudo, inclusive de melar a campanha anticomunista por inabilidade afoita, mas não de ter errado os alvos. Se têm dúvidas, leiam Joseph McCarthy, de Arthur Herman (Free Press, 1999), e Venona: Decoding Soviet Espionage in America , de John Earl Haynes e Harvey Klehr (Yale Univ. Press, 2000). O filme é tão besta que, falando o tempo todo de inocentes acusados, não é capaz de mostrar um só deles. Mas a República Popular de Hollywood é capaz de ver nisso mesmo a prova de que eles existiam aos milhares. Um só chavão vale mais do que mil imagens que o desmintam.

O hábito da mentira e do auto-engano está de tal modo arraigado na elite esquerdista que se tornou como que sua segunda natureza. A amplitude do fenômeno está tão bem documentada hoje em dia que ninguém pode se considerar bem informado se ainda se surpreende com ele. Para quem está habituado ao assunto, é até redundante, por exemplo, a proposta do livro, no mais interessantíssimo, Do As Say, Not As I Do (“Faça o que eu digo, não o que eu faço”, New York, Doubleday, 2005), em que o jornalista Peter Schweitzer, autor de uma maravilhosa biografia de Ronald Reagan, compara os discursos do beautiful people esquerdista aos seus feitos na vida real. A maldade que Paul Johnson fez com os gurus clássicos do pensamento esquerdista em Intellectuals , Schweitzer faz com seus seguidores na política, na academia e no show business . O resultado, como não poderia deixar de ser, é arrasador. O enfatuado Michael Moore, fiscal número um da moralidade alheia, demoniza a Hallyburton, acusando a empresa de petróleo de lucrar com a guerra. Quando se vai ver, o próprio Moore é acionista da Hallyburton – e, tal como os demais acionistas, não ganhou coisa nenhuma com a guerra. Aliás ele vivia declarando que não tinha ações da bolsa: Scweitzer publica a lista de todas elas, extraída da sua declaração de rendimentos, com a assinatura do declarante. Al Franken, assanhado comentarista da estação clintoniana Radio America e pretendente a adversário do conservador Rush Limbaugh, chama a América inteira de racista e posa de entusiasta da lei de quotas — mas, entre seus empregados, a quota de negros é de menos de um por cento. Nancy Pelosi, enfezadíssima líder democrata na Câmara, é tão famosa como defensora dos direitos sindicais que suas campanhas eleitorais se tornaram recordistas de contribuições dos sindicatos – mas suas empresas vinícolas, hoje entre as mais prósperas dos EUA, não aceitam empregados sindicalizados. Noam Chomsky, acusador emérito do Pentágono, vive de um discreto contrato milionário com… o Pentágono. Já nem falo nada de Ted Kennedy, dos Clintons e de George Soros. Não vou tirar de vocês o prazer de ler o livro – em inglês, é claro, pois obras dessa natureza não furam o cinto de castidade que protege a virgindade intelectual brasileira.

Se depois de saber dessas coisas vocês ainda tiverem estômago para agüentar lixo esquerdista de maior tonelagem, sugiro a leitura de Stalin: The Court of The Red Tsar , de Simon Sebag Montefiore (Vintage Books, 2003), de Mao: The Unknown Story , de Jung Chang e Jon Halliday (Knopf, 2005) e de Fidel: Hollywood’s Favorite Tyrant , de Humberto E. Fontova, já citado aqui (Regnery, 2005). Estão, na opinião geral, entre os melhores estudos biográficos dos três líderes esquerdistas mais conhecidos do mundo. E o traço mais saliente das vidas dos três é a sua total inescrupulosidade, sadismo, crueldade, com doses de malícia e covardia quase inimagináveis para o cidadão comum. Tudo isso aliado, é claro, à pretensão de personificar a autoridade da presciência histórica, habilitada a julgar os vivos e os mortos desde as alturas de uma virtude quase angélica. Sem dúvida, o movimento esquerdista mundial criou um tipo humano característico, marcado pela presunção de impecabilidade, pela licença ilimitada para praticar o mal com consciência tranqüila e sobretudo pela compulsão autovitimizante que leva cada um desses indivíduos, no alto do poder despótico, a sentir-se um pobre menino incompreendido pelo coração duro dos pérfidos conservadores.

Junte todo esse material na sua cabeça e depois medite o seguinte ponto: quem conhecesse essas coisas em 2002 teria caído no engodo da “ética” petista, mesmo não possuindo nenhum indício concreto de corrupção no partido? A resposta é um decidido “Não”.

Mas, saltando por cima da atualidade, os dados também sugerem a pergunta sobre as origens: como foi possível, historicamente, o surgimento e a ascensão de tipos humanos tão formidavelmente ruins, perto dos quais qualquer tirano da antigüidade, qualquer inquisidor da Idade Média, qualquer corrupto do Renascimento ou, mais ainda, qualquer líder conservador como Disraeli, Churchill ou a sra. Thatcher, por mais estragado que seja, fica parecendo São Francisco de Assis?

A resposta tomaria vários volumes, mas um fator incontornável é a mudança do eixo da auto-imagem moral íntima dos indivíduos humanos, inaugurada pelo movimento revolucionário entre os século XVIII e XX. Os documentos mais vivos dessa mudança são, evidentemente, as narrativas autobiográficas, que se tornam abundantes nessa época e, a partir das Confissões e Devaneios de Jean-Jacques Rousseau, contrastam agudamente com suas precursoras antigas e medievais, cujo modelo são as Confissões de Sto. Agostinho. Todo discurso, ensina a arte retórica, tem um destinatário ideal. Sto. Agostinho faz por escrito o traslado ampliado do que seria uma confissão sacramental. Seu ouvinte, por definição, não pode ser enganado, porque é onissapiente. A consciência da sua presença permanente defende Agostinho contra a tentação da mentira interior, mas defende-o também do desespero, da autocondenação radical, da dramatização excessiva dos próprios males, porque aquela presença é também a do perdão universal.

Jean-Jacques, por seu lado, fala para a “opinião pública”, cujos favores solicita. Não é de espantar que procure enganá-la por todos os meios, enganando-se a si próprio por tabela. Quando fala de seus pecados, ele ou os esconde por completo ou, ao contrário, os exagera histrionicamente, deleitando-se nas suas próprias misérias, quase ao mesmo tempo que admite, com modéstia exemplar, ser portador de qualidades morais jamais superadas e, pensando bem, a alma mais linda e pura da Europa. Substituída a onissapiência amorosa do ouvinte pela extensão quantitativa de um “público” que o autor ao mesmo tempo corteja e despreza, a imagem da alma refletida também se modifica proporcionalmente, deformando-se à medida da ilusão coletiva, móvel e incerta, na qual o autor busca um espelho onde enxergar-se objetivamente, sem lembrar-se que é ele mesmo que a está criando pela influência que exerce sobre o público.

Nenhum homem alcança a onissapiência, mas saber que ela existe o ajuda a não se enganar, quando ele, ao ingressar na aventura do autoconhecimento, se sente observado por olhos eternos que “sondam os rins e os corações”. Durante séculos a disciplina do exame de consciência, à luz dos Dez Mandamentos, deu a cada homem o máximo de objetividade possível no julgamento de si. Já os olhos da platéia se movem conforme os gestos do ator, que a manipula ao mesmo tempo que se submete às suas preferências do momento.

A modernidade começa com essa mutação fraudulenta da consciência de si. Que ainda levasse dois ou três séculos para que monstros de falsa consciência como Stalin, Mao e Fidel fossem considerados modelos de virtude, é algo que se deve, é claro, à subsistência discreta do antigo critério de julgamento no seio mesmo da cultura que o nega e que desejaria extingui-lo para sempre.

Se ainda há um pouco de moral e dignidade no mundo, é porque algo da consciência de ser visto por um observador onissapiente, imune às flutuações da alma individual e da platéia coletiva, subsiste no coração humano. Em plena apoteose do laicismo moderno, ainda há muitos seres humanos que caminham diante dos olhos do Senhor. Eles são a única régua e medida para o julgamento dos demais. Por isso o Evangelho diz que vão julgar o mundo. O que os outros pensem ou deixem de pensar não pesa nisso no mais mínimo que seja.

Perdidos no espaço

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 8 de dezembro de 2005

Os juízes da Primeira Turma Recursal de Brasília que semanas atrás impuseram uma pesada multa ao Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz por chamar uma abortista de abortista já mostraram, só com isso, sua falta do mínimo de capacidade lingüística requerido para um cargo no qual ler, ouvir e compreender são noventa por cento do serviço. A sentença só agora foi publicada, e lida por inteiro fica ainda pior do que aos pedaços.

Afinal, nenhum termo do idioma pode ser pejorativo ou insultuoso quando não há outro supostamente mais amável para substituí-lo. A palavra “abortista” é a única que existe para designar o adepto do aborto e distingui-lo tanto do “aborteiro”, que pratica o que ele prega, quanto do “anti-abortista” que se opõe a ambos. Aplicá-lo, numa polêmica anti-aborto, a alguém que dedicou anos de sua vida à promoção do abortismo, é não somente um direito, mas um dever. Um dever de precisão vocabular. A reverência ao termo próprio corresponde, na língua escrita e falada, à retidão na prática judicial. Mostrando-se, por unanimidade, desprovidos de uma coisa e da outra, e ademais inclinados a punir um inocente pelo delito de ter as duas, aqueles magistrados nada provaram contra o réu, mas contra si mesmos: não compreendem o sentido das palavras nem podem, por isso mesmo, julgar com justiça os fatos que elas enunciam.

Mas, então, com que direito permanecem nas altas funções que ocupam sob estipêndio do Estado? Com o direito — respondo eu — ao analfabetismo doutoral, o qual nunca existiu mas foi consagrado neste país desde que um governante disléxico se tornou doutor honoris causa sem precisar ter para isso a causa nem muito menos a honra. Se o presidente pode resolver os destinos da nação inteira sem entender o que lê nem o que diz, por que não poderia aquele punhado de excelências decidir, com igual privação de entendimento, o destino de um mísero cidadão brasileiro?

Mas nem tudo é deficiência naquele tribunal. Em compensação talvez de sua inépcia jurídica e linguística, Suas Excelências excelem no dom da comédia e da farsa em medida raramente igualada não só no mundo real mas em todo o universo da ficção. Pois, além de punir a expressão perfeita de uma verdade óbvia como se delito fosse, ainda vetaram ao réu todo uso futuro da mesma palavra. Ora, o silêncio seletivo, a proibição de dizer certas coisas, é figura inexistente no direito civil ou penal brasileiro. Encontra-se apenas no direito canônico. Faz parte da disciplina clerical. Para aplicá-la, portanto, os magistrados brasilienses tiveram de fantasiar-se mentalmente de superiores eclesiásticos do réu e, ao mesmo tempo, atribuir ao seu tribunal cardinalício imaginário uma prerrogativa da justiça civil e penal, que é a de impor multas. Após terem assim sintetizado em suas pessoas os poderes eclesial e estatal, usando-os para tapar a boca de um cidadão sem poder nenhum, ainda proclamaram que ele – e não o tribunal que o condenava – era a Santa Inquisição rediviva.

Esses magistrados, portanto, não falham somente em compreender o sentido das palavras, por falta de sensibilidade lingüitica. Falham também, por excesso de imaginação, em perceber a situação real, imediata, concreta, na qual eles próprios vivem e atuam. Com a maior desenvoltura e segurança, entendem-na às avessas, como aquele maluco do filme de Woody Allen que, recebendo no hospício a visita diária da médica, acreditava ser o psicólogo clínico atendendo a paciente em mais uma sessão de análise. Em psiquiatria, isso chama-se “delírio de interpretação”. Suas excelências não se contentam com não saber o que dizem. Não sabem onde estão nem o que fazem. A exemplo do mineiro da piada, bem poderiam despertar de um traumatismo craniano perguntando: Docovim? Oncotô? Pocovô? (“De onde vim? Onde estou? Para onde vou?”). A diferença é que o mineiro despertou. Não creio que este artigo ajude Suas Excelências a fazer o mesmo.

Papai Noel em depressão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de dezembro de 2005

Quem, no Brasil, convidado a assistir a um show de Natal com elenco amador numa igreja evangélica de província, seria louco o bastante para ir lá com a expectativa de encontrar um espetáculo artisticamente relevante? Pois bem, acabo de sair da Assembléia de Deus do West End de Richmond, Virginia, ainda mal refeito de um choque cultural. Sincerely Yours , comédia musical natalina com script de Kathy Craddock baseado numa idéia de Pat Bragg e equipe, música e regência de Ron Klipp e direção de Bob Laughlin, é um espetáculo digno da Broadway, mais caprichado do que tudo o que já vi nos palcos brasileiros. São mais de duzentos atores cantando, dançando e fazendo acrobacias, numa coreografia complexíssima dirigida por mão certeira. A platéia vibra com a ação rápida, e a música entusiasticamente alegre se impregna na sua alma deixando uma impressão inesquecível.

SÁTIRA – O enredo é uma sucessão de situações cômicas absurdas, no melhor estilo Frank Capra, concebidas a partir da pergunta: como reagiria Papai Noel (Santa Claus, para os americanos) diante da atual campanha dos ateus, materialistas e anticristãos para escorraçar o Natal da vida pública? Sátira de um conflito muito real que põe em risco o destino de toda a sociedade americana, a história começa na véspera do Natal, com os ajudantes do velhinho, na maior excitação, enchendo o trenó de presentes e esperando a partida para mais uma viagem através do mundo. Mas o chefe não aparece: está trancado em casa, mortalmente deprimido, diante de uma pilha de cartas de meninos e meninas modernizados, insolentes, que desprezam o nascimento de Jesus e só querem saber de brinquedos caros – um deles prefere até sua parte em dinheiro. Um show de egoísmo e insensibilidade. Dar presentes, nessas circunstâncias, só serve para fomentar a vaidade e o orgulho. Sentindo-se um corruptor involuntário da infância, Papai Noel se condena: “Todo o trabalho da minha vida foi um tiro que saiu pela culatra”.

DOUTORZINHO – A sra. Claus tenta animá-lo, juntando um grupo de crianças para fazer uns afagos no ego do velho, mas as crianças só dão gafes freudianas e reforçam a impressão de que a infância está mesmo estragada. Erguendo placas para formar o nome “Santa”, conseguem até trocá-lo por “Satan”. Papai Noel afunda no total desespero. A esposa, atendendo à sugestão de tagarelas da vizinhança, vai ao cabelereiro se embonecar toda para ver se desperta algum ânimo no marido, mas enquanto isso ele é removido a um hospital pelo Social Security. Em vão ele protesta que não há nada de errado com ele, que o problema é com as crianças. Em cenas de uma comicidade alucinante, o paciente é submetido a todas as humilhações radiológicas, dietéticas, sexológicas e psiquiátricas de que é capaz a medicina moderna, personificada num doutorzinho de dez anos de idade. Quando volta, com a bunda doendo das injeções, Santa Claus nem repara no penteado da mulher, que então lhe passa um sabão em regra, acusando-o de ter perdido seu antigo entusiasmo visionário e se transformado num egoísta senil, rabugento, intoxicado de autopiedade, como o Scrooge de Conto de Natal de Dickens (leitura proibida em escolas “politicamente corretas”). Quanto mais ela fala, mais o marido piora. No fim, ele está decidido: não vai a parte alguma, as crianças do mundo que se danem. A sra. Claus resolve então entregar ela própria os presentes, mas os ajudantes não parecem considerá-la muito convincente nas funções de Papai Noel.

CONSPIRAÇÃO – Nesse ínterim, um investigador nomeado pela comunidade descobre que por trás de tudo há uma conspiração para desmoralizar o Natal sob argumentos hipócritas. A trama vem de uma ONG internacional do crime que reúne os piores tipos de todos os tempos: Lex Luthor, o Pingüim, Cruela, a Rainha Malvada, o Capitão Gancho e outros da mesma laia – uma caricatura cruel da ACLU, a União Americana dos Direitos Civis, cujo nome encobre uma quadrilha de puxa-sacos de Saddam Hussein, Bin Laden, Fidel Castro e Hugo Chávez, empenhados em proibir árvores de Natal, monumentos religiosos e qualquer menção pública ao nome de Deus (exceto, é claro, para os muçulmanos). Só que os bandidos da peça foram mais inteligentes que a ACLU: em vez de atacar diretamente o Natal, empreenderam contra ele uma campanha de desinformação, trocando as cartas de crianças para Papai Noel por mensagens forjadas para desorientar o velhinho.

Mas, antes mesmo que lhe chegue a revelação da trama, ele recebe uma carta atrasada, que escapou à falsificação geral. O remetente, Aaron Williams, de Richmond, Virginia, não quer nada para si: pede apenas algum consolo para sua mãe, entristecida pela morte de um cãozinho doméstico. Ao ler as palavras de despedida, “Sincerely yours”, “sinceramente seu”, Papai Noel se dá conta de que o sentido do Natal não está perdido enquanto subsistir numa só alma viva. É a lembrança de um Deus que se oferece em sacrifício a cada pessoa numa mensagem de amor: “sincerely yours”. Reencorajado pelos bons sentimentos do menino, ele já começa a voltar atrás na sua recusa de viajar, quando chegam os mensageiros do detetive e, contando tudo, lhe mostram que, por trás da imagem de um mundo totalmente materialista e descristianizado, fabricada de propósito pelos conspiradores para denunciá-la em seguida e culpar o capitalismo, ainda existem milhões de Aarons Williams. O sr. e a sra. Claus partem então para entregar os presentes, e a primeira casa em que param é, evidentemente, a de Aaron. Junto à cama do menino adormecido há um presépio que se transfigura em realidade. Jesus Cristo está nascendo naquele momento.

Já é o terceiro Natal em que a Assembléia de Deus do West End, com uma nova peça a cada ano, mostra o poder da sua inventividade teatral e musical. Vale a pena uma espiada no site do grupo, http://www.gloriouschristmasnig hts.com .

LEX LUTHOR – O espetáculo, porém, não é um fato isolado. Por toda parte pipocam as reações tardias mas vigorosas da sociedade americana contra quatro décadas de “revolução cultural” planejada para expulsar o cristianismo da cena pública. A tropa-de-choque anticristã, financiada em grande parte por George Soros, o Lex Luthor do mundo real, bem como por governos estrangeiros interessados na destruição cultural dos EUA, atua nas universidades, no show business, na grande mídia e nas corporações milionárias, mas sua arma decisiva é o ativismo judicial, que permite mudar o sentido das leis sem ter de passar pela fiscalização democrática. “Os juízes – confessou cinicamente Leo Pfeffer, um dos mentores da campanha anticristã – podem obrigar o povo a aceitar o que eles julgam melhor para ele, mas que ele não aceitaria de legisladores eleitos.”

SUPERSTIÇÕES – O momento decisivo da revolução cultural foram os anos 60 -70 – uma época de estupidez sem igual, em que, com seus nomes trocados para eufemismos publicitários encantadores, a escravização da humanidade ocidental aos traficantes de drogas, a elevação do banditismo às alturas de uma força político-militar de escala mundial, a transformação do processo educacional num sistema de repressão sistemática da inteligência, a liquidação em massa dos bebês no ventre de suas mães, o abandono dos valores judaico-cristãos e sua substituição pelas superstições grotescas da “Nova Era”, a destruição generalizada dos laços familiares e, por fim, a entrega da Indochina à sanha assassina dos comunistas (que aí acabaram matando em dois anos de paz cinco vezes mais gente do que a guerra havia matado em quase duas décadas) foram celebrados como vitórias imorredouras da liberdade e da civilização contra a barbárie e as trevas. Todos esses jihads demoníacos eclodiram juntos, com um sincronismo e uma unidade de fontes que já deveriam bastar para desmoralizar a crença numa transformação cultural espontânea, infundida na população pelos próprios regentes dessa orquestração de campanhas, com o propósito de camuflar sua autoria e dar ao processo, postiçamente, a autoridade avassaladora de uma fatalidade histórica ou de um desígnio da Providência.

Os efeitos de longo prazo do ataque multilateral foram devastadores. Seus frutos mais maduros são a recente universalização do terrorismo e a farsa mundial das ditaduras sangrentas da China e do mundo islâmico prometendo libertar a humanidade da “opressão americana” com a ajuda do narcotráfico internacional, dos sanguessugas da ONU e das fundações Soros, Ford e Rockefeller, financiadoras de tudo o que não presta no mundo. O mero discurso dessa gente soaria grotesco se a capacidade de discernimento da platéia ocidental não tivesse sido embotada por quatro décadas de intoxicação cultural. A aliança de comunistas, radicais islâmicos e burocratas globalistas é demasiado parecida com um conluio entre o Pingüim, o Coringa e a Mulher-Gato para não ser notada logo à primeira vista, exceto por um Batman de porre.

Na ocasião em que as coisas começaram, foi tudo tão rápido que a impressão de uma origem impessoal e espontânea se tornou difícil de evitar. Mas hoje sabe-se muito mais sobre a meticulosa – e caríssima – engenharia da revolução cultural. Quem, tendo uma boa retaguarda de conhecimentos sobre estratégia revolucionária e marxismo cultural, leia os livros de E. Michael Jones ( Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control e John Cardinal Krol and the Cultural Revolution ), Charlotte Thomson Iserbyt ( The Deliberate Dumbing Down of America ), Lee Penn ( False Dawn ), Janet L. Folger ( The Criminalization of Christianity ), Pascal Bernardin ( Machiavel Pedagogue ) e Ricardo de la Cierva ( Las Puertas del Infierno ), não terá dificuldade em juntar os pontos e perceber como tudo isso foi montado, quem montou e quanto custou (mais que o suficiente para eliminar a fome de muitos Terceiros Mundos). A internet colocou uma infinidade de materiais preciosos à disposição dos interessados em compreender o processo (creio já ter recomendado aqui os siteswww.discoverthenetwork.org e www.activistcash.com), cuja unidade estratégica e financeira já não se pode negar nem muito menos ocultar mediante o surrado apelo ao carimbo de “teoria da conspiração”.

SUPREMA CORTE – Na escala local dos EUA, o processo, por trás da inabarcável vastidão dos seus efeitos, foi até bem simples na sua concepção estratégica. O ataque, desferido desde várias fontes, começava com propaganda de massas e guerra psicológica, e culminava em decisões judiciais que, atendendo a pressões do ativismo, consagravam em obrigação legal propostas imorais e criminosas que jamais passariam no Congresso. Os tribunais e especialmente a Suprema Corte, usurpando sistematicamente as atribuições do Legislativo, foram o instrumento encarregado de dar, em cada batalha da revolução cultural, o tiro de misericórdia, (o livro-padrão a respeito é Men in Black. How the Supreme Court Is Destroying America , de Mark R. Levin). Assim foi, por exemplo, com as decisões da Suprema Corte que proibiram a prece nas escolas públicas, suprimiram a ajuda estatal às escolas religiosas, liberaram a indústria da pornografia e, no processo fraudulento “Roe vs. Wade”, legalizaram o aborto. Essas batalhas continuam: sob a liderança da ACLU, as tropas da revolução cultural buscam agora remover monumentos religiosos dos edifícios públicos e proibir que as árvores de Natal sejam chamadas de árvores de Natal (devem ser “holyday trees”, “árvores de boas-festas”, genericamente, para não ferir os sublimes sentimentos dos ateus, dos materialistas e principalmente dos muçulmanos, cuja religião tem cada vez mais direitos especiais.

HUMANISMO LAICO – Nas primeiras décadas do ataque, a intelectualidade cristã, auto-intoxicada pelas esperanças insensatas do Concílio Vaticano II (intensamente manipulado desde dentro e desde fora pela KGB – v. o livro citado de Ricardo de La Cierva), estava justamente tratando de abrir os braços para seus inimigos sem nem de longe imaginar que tramavam a sua morte iminente. Deslumbrados pelos avanços da ciência econômica, os liberais clássicos e conservadores, por seu lado, começavam a embebedar-se de entusiasmo mágico pelos poderes da economia de mercado e passaram a apostar tudo nela, unilateralmente, descuidando da luta cultural e até permitindo-se aderir ao “humanismo” laico e materialista que, nos EUA e na Europa, se disseminou entre as classes ricas como o principal aliado do comunismo e do radicalismo islâmico na guerra contra a civilização ocidental. Só muito recentemente começaram a emergir desse estado de idiotice útil e a colaborar na reação dos cristãos ao cerco opressivo que os torna marginais no país que fundaram.

Essa reação tem crescido muito nos últimos anos. Não há nenhum Soros ou Rockefeller por trás dela, mas a massa dos cristãos provou ser capaz de mobilizar recursos formidáveis e atacar nos pontos certos. Milhares de livros, revistas, jornais e sites da internet defendem hoje os direitos dos religiosos. Um militante cristão colocou a ACLU em palpos de aranha com um processo pela sonegação de milhões de atestados de estupro em abortos de meninas menores de idade. O direito de rezar em público foi devolvido em centenas de escolas por via judicial. O jornalismo pró-cristão (Foxnews, WorldNetDaily, Newsmax, Rush Limbaugh) ocupa um espaço cada vez maior, aproveitando a vaga aberta pela desmoralização de gigantes “politicamente corretos” como a CBS e o New York Times. E muitas cadeias de lojas que haviam suprimido de suas propagandas de fim de ano a expressão “árvores de Natal” acabaram cedendo à pressão de milhões de cartas de cristãos indignados, mobilizados por uma campanha da American Family Association. A Lowe’s e o Walmart já afinaram. A Walgreens pediu desculpas e prometeu que no ano que vem o bom e velho Natal estará de volta nos seus cartazes.

PRÓ-CRISTÃOS – Mas, é claro, toda essa mudança não surgiu do nada. A recuperação começou na esfera da intelectualidade superior, muitos anos atrás, quando a cena pública parecia definitivamente seqüestrada pelo materialismo militante. Entre as décadas de 80 e 90, discretamente, o pensamento cristão e pró-cristão já havia conquistado uma superioridade intelectual inegável. Nada no campo adversário se comparava às obras de Bernard Lonergan, Eric Voegelin, Thomas Molnar, Roger Kimball, Hilton Kramer, John Ellis e muitos outros. Enquanto os materialistas perdiam até mesmo o embalo do pensamento marxista e voltavam às fórmulas simplistas do século XIX (darwinismo, materialismo não-dialético, etc.), os cristãos se mostravam capazes de uma criatividade sem par na filosofia, nas ciências humanas, na crítica cultural. Entre os liberais clássicos da economia, uma retomada da consciência dos fundamentos morais e religiosos do capitalismo (v. Alejandro Chafuen, Faith and Liberty ) tende cada vez mais a neutralizar o apelo do humanismo laico. E um fenômeno particularmente auspicioso foi o surgimento de uma intelectualidade judaica fortemente pró-cristã. Com o tempo, escritores judeus como Michael e David Horowitz, Don Feder e o rabino Daniel Lapin acabaram se destacando entre os mais eloqüentes defensores dos direitos dos cristãos nos EUA. A situação, no conjunto, tende a melhorar muito.

O espetáculo da Assembléia de Deus do West End de Richmond é apenas um entre inumeráveis sinais dessa mudança. Santa Claus ainda sofre dores na bunda, mas já saiu da depressão.

Vindo quase juntos como vieram, a rejeição nacional do desarmamentismo, a CPI da Terra que condena as invasões de fazendas como crimes hediondos, a espetacular cassação de José Dirceu e a crescente reação anti-aborto entre os parlamentares – criando a esperança de que o projeto-fraude da deputada Jandira Feghali venha a ser rejeitado – talvez indiquem algo mais do que a simples desmoralização geral do petismo. Talvez sejam o sintoma de uma mudança mais profunda. O que me leva a pensar isso é que tudo se produziu sem a interferência de nenhuma oposição conservadora politicamente organizada (nunca as acusações de “conspiração” soaram tão forçadas) e até sem nenhuma campanha cultural anti-esquerdista. Ao contrário: o establishment inteiro – partidos, universidades, mídia, movimento editorial – continua impregnado de esquerdismo até à medula, e completamente ignorante das idéias conservadoras, que ele facilmente substitui por suas caricaturas esquerdistas tomadas como realidades. Como é possível que opiniões ignoradas, sem qualquer representação pública e sem um só canal de atuação política, terminem por prevalecer sobre a ideologia dominante sustentada em verbas praticamente sem fim?

O que me parece é que o sucesso da revolução cultural gramsciana alcançou seus limites naturais quando a longa preparação da mentalidade popular para que aceitasse qualquer proposta vinda da elite esquerdista cedeu lugar à conquista ativa e ao exercício do poder de Estado. A pura sedução dos “corações e mentes” não faz senão criar predisposições vagas, simpatias hipotéticas, a confiança da boca para fora em mudanças futuras só nebulosamente vislumbradas. É fácil manter o povo num estado de apatetado deslumbramento ante os ideais esquerdistas enquanto estes não têm nenhuma tradução prática e não sofrem o teste da realidade. Uma vez que se passa da simples hegemonia psicológica à conquista e exercício do poder, é preciso usar de meios concretos de ação que, fatalmente, não se parecem em nada com a imagem rósea da pureza socialista. Qualquer militante sério sabe disso perfeitamente bem. Um José Dirceu jamais caiu na esparrela de achar que poses de Madre Teresa fossem um substitutivo eficaz do maquiavelismo gramsciano ou da amoralidade leninista. Ele é de certo modo um herói das esquerdas. Foi o homem que se incumbiu da tarefa indispensável de sujar as mãozinhas “éticas” para transfigurar possibilidades etéreas em armas efetivas. Um partido revolucionário sem roubo, fraude, propinas, dinheiro ilícito do Exterior, é uma impossibilidade pura e simples. Desde os tempos em que garganteava superioridade ética o PT já sabia que teria de mergulhar fundo na delinqüência para realizar suas ambições políticas maiores, e já se preparava para isso pelo menos desde a fundação do Foro de São Paulo, em 1990. O que não sabia é que, na passagem, podia se atrapalhar ao ponto de quebrar a pata como um jumento na travessia de um mata-burros.

Ao contrário do que aconteceu nos EUA, onde a revolução cultural entrou em refluxo sob os golpes de uma intelectualidade cristã e conservadora diligente e criativa, no Brasil quarenta anos de maquiavelismo gramscista estão sendo abortados simplesmente desde dentro, pela mágica inexplicável da burrice. O problema é que, quando a força hegemônica se extingue a si mesma, sem um único adversário para sequer remover o seu cadáver, o mau cheiro da sua decomposição pode se impregnar por muito tempo no campo de batalha vazio.

P. S. — Vocês não se iludam com as aparências. Aquele velhinho maluco com a bengala, em Brasília, não era o Yves Hublet. Era eu. Não saí da Virginia, mas, juro, era eu. Esse prazer ninguém me tira. E acho que alguns milhões de brasileiros sentem o mesmo.