Feliz Ano Novo? Que cinismo!

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de dezembro de 2005

O Brasil entra em 2006 nas seguintes condições:

(1) O governo federal está nas mãos de um partido que, subindo ao poder sobre os cadáveres das reputações de seus adversários, usou de sua fama de restaurador da moralidade como camuflagem para poder criar o mais vasto e eficaz sistema de corrupção política já observado neste país.

(2) Ao longo de sua ascensão, apoiada na hegemonia previamente conquistada pela “revolução cultural” gramsciana, esse partido desarmou completamente seus possíveis adversários ideológicos, ao ponto de nas eleições presidenciais de 2002 seu candidato não ter de concorrer senão com imitadores do seu discurso, cada um tentando provar que era o mais esquerdista dos quatro. E tão completo era o domínio exercido pela esquerda sobre a mentalidade pública, que essa disputa em família, com total exclusão de discordância ideológica por mais mínima que fosse, foi celebrada por toda a mídia cúmplice como “a mais democrática de toda a nossa História”. Neurose, dizia um grande psicólogo que conheci, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita. O Brasil continuará doente enquanto não recordar e desmascarar a farsa com que aceitou alegremente colaborar em 2002.

(3) O deslocamento do fiel da balança para a esquerda falseou todo o quadro das opções políticas, ao ponto de que hoje a hipótese mesma de um discurso de direita, na linha do Partido Republicano americano ou do Partido Conservador inglês, se tornou inviável e inconcebível no Brasil. O máximo de direitismo admitido é o do PSDB, partido pertencente à Internacional Socialista e comprometido a implantar no Brasil todas as mutações sociais e culturais defendidas pela esquerda mundial, como o abortismo, o casamento gay, o “direito alternativo” etc. Eliminada a possibilidade de divergências de fundo, sobraram apenas a disputa de cargos e o bombardeio mútuo de acusações de corrupção: a política reduziu-se a um bate-boca entre quadrilhas de ladrões. O PFL, que poderia ter representado a alternativa ideológica ao consenso socialista, abdicou de seu dever e acomodou-se à função de tropa auxiliar de uma das quadrilhas.

(4) Como nem a esquerda petista nem seus adversários tucanos conseguiram conceber nenhuma alternativa viável à política econômica “ortodoxa” do FMI, esta se mantém como orientação dominante desde o governo FHC, sem perspectiva de ser abandonada por qualquer das facções que suba ao poder. À sombra da estabilidade econômica, erigida em único bem digno de ser preservado, a máquina de subversão instalada no governo está livre para transformar o sistema judiciário em instrumento da luta de classes, o ensino público em pregação do ódio anticapitalista, as instituições de cultura em megafones do discurso comunista mais estúpido e grosseiro que o mundo já ouviu. Ninguém liga. A lepra socialista pode se alastrar por todo o corpo da sociedade, dominar as consciências, perverter todas as relações humanas. Enquanto não mexer diretamente nas contas bancárias dos senhores barões, estes continuarão achando tudo lindo. A classe chamada dominante já não domina nada há muito tempo, está cercada e acuada, reduzida a viver de favores mendigados à elite comunista, mas como ainda tem dinheiro para gastar em Londres e Nova York, mantém a pose. E se tentamos lhe explicar o perigo que corre, responde com a clássica reação do covarde orgulhoso: estrangula o mensageiro das más notícias.

(5) A criminalidade triunfante já ultrapassou de há muito os limites dentro dos quais podia ainda se considerar um problema corrigível. Tornou-se um fato consumado, uma constante da natureza, um modo de ser, uma instituição. Segundo dados oficiais da ONU, são 50 mil homicídios por ano. Segundo pesquisas locais do jornalista espanhol Luís Mir, 150 mil. A polícia, intimidada pela superioridade bélica dos narcotraficantes e sobretudo pelo temor que lhe inspira o olhar malicioso da classe jornalística, se ocupa apenas de sobreviver e mostrar-se o mais inofensiva possível. Enquanto isso, o governo continua de namoro com as FARC e a intelectualidade esquerdista clama pela libertação de qualquer agente da narcoguerrilha colombiana que por acaso vá parar na cadeia, onde aliás é poupado de qualquer pergunta comprometedora.

(6) As Forças Armadas, enfraquecidas por sucessivos cortes de verbas, humilhadas e aviltadas por mentiras escabrosas alardeadas na mídia, começam a reagir como vítimas da síndrome de Estocolmo: distribuem condecorações a seus acusadores e buscam lisonjeá-los mediante efusões de anti-americanismo pseudopatriótico (o brigadeiro Ferola e a ESG em geral são ótimos nisso), na esperança de desviar contra um inimigo comum a hostilidade do establishment esquerdista ante o qual generais de inumeráveis estrelas tremem como dozelas assustadas.

(7) Os tribunais são dominados por juízes semi-analfabetos que abertamente desprezam a lei em nome de suas convicções políticas improvisadas, achando que a mais alta missão da Justiça é punir os capitalistas como exploradores do proletariado e libertar os assassinos e narcotraficantes como vítimas da sociedade malvada.

(8) Curiosamente, a maioria da população permanece apegada aos ideais proibidos: moral judaico-cristã, propriedade privada, direito de portar armas etc. Mas já não há ninguém que fale em nome dessa maioria. Mesmo os que compartilham das crenças populares não ousam defendê-las abertamente. O imenso espaço que a decadência de tudo o mais abre para o ingresso de um autêntico partido conservador no cenário nacional não tem quem o preencha. Conservadorismo significa fidelidade, constância, firmeza. Não é coisa para homens de geléia.

(9) Culturalmente, o Brasil está morto e enterrado. Já não tem nada em comum com aquele país dos anos 30-60, que se espelhava numa geração de escritores, pensadores e artistas capazes de ombrear-se aos de qualquer nação do mundo. Na época, “cultura” significava Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Annibal M. Machado, José Guilherme Merquior, Nelson Rodrigues, Heitor Villa-Lobos, Herberto Sales, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva, Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux, Gustavo Corção. Álvaro Lins, Augusto Meyer. Hoje cultura é o sr. Gilberto Gil, um pseudo-intelectual de miolo mole segundo ele próprio admite, não sem certo orgulho. Os discípulos da grande geração – Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro – esgotam-se na indecisão entre a fidelidade à consciência literária, que requer a sinceridade das “impressões autênticas”, como as chamava Saul Bellow, e o desejo de agradar os amigos bem situados na vida. Escritores e poetas autênticos – Alberto da Cunha Melo, César Leal, Ângelo Monteiro — vegetam na província, mais ignorados nos grandes centros do que o seriam nos tempos da Colônia. E o gênio fulgurante de Bruno Tolentino, sumido dos debates públicos, desprezado por suplementeiros literários que não seriam dignos de lhe amarrar os sapatos, vai se conformando com um papel obscuro, esquecido da missão de educador literário do Brasil, que um dia lhe coube por natureza e direito.

(10) Espiritualmente, a alma nacional oscila entre o oportunismo sociopático transformado em Ersatz do senso prático e o ódio político transfigurado em sucedâneo da moralidade. Ensinado nas escolas a papaguear slogans politicamente corretos, obrigado por lei a considerar que o canibalismo, os sacrifícios humanos ou rituais para tornar os inimigos sexualmente impotentes são expressões religiosas tão respeitáveis quanto a fidelidade judaica e a piedade cristã, o povo ainda não abdicou de seus velhos sentimentos morais, mas só os vive na esfera dos sonhos, incapaz de lhes dar a menor expressão concreta na vida real. O Papa João Paulo II acertou na mosca quando disse que “os brasileiros são cristãos na emoção, mas não na fé”. Quando querem expressar sua emoção religiosa em atos e palavras, a única linguagem que lhes resta é a da teologia da libertação ou a daquela velha mistura, tipicamente brasileira, de mística positivista-evolucionista, ocultismo vulgar e pseudomessianismo nacionalisteiro.

O mais impressionante de tudo é que a chamada elite, diante dessa destruição completa das bases civilizacionais do país, se recusa a tomar consciência da gravidade da situação e se apega desesperadamente à ilusão de que tudo se resolverá por si, sem nenhuma ação da parte dela.

O cinismo brutal de um lado, a irresponsabilidade covarde de outro – eis os dois pilares da sociedade brasileira do futuro, na qual só mesmo os cínicos e os irresponsáveis podem esperar sentir-se bem.

Votos de Ano Novo? Ora, façam-me um favor! Quem pode fazer votos de que tudo o que está acontecendo pare de acontecer, de que tudo o que não acontece, mas deveria, comece a acontecer? O Brasil não precisa de um milagre. Precisa da mais extraordinária conjunção de milagres que se poderia imaginar. E milagres, mesmo individualmente, jamais acontecem quando os possíveis interessados estão pedindo exatamente o contrário.

Tarados

Um sintoma miúdo, mas revelador, pode ilustrar o estado presente da alma nacional, tal como descrito acima.

Há um grupo de tarados na comunidade Orkut, da internet , que já escreveram mais de trinta mil páginas contra mim e, para cúmulo, esperam que eu leia tudo — como se eu me achasse tão interessante quanto eles me imaginam. Não criticam propriamente minhas opiniões, pois não chegam a apreendê-las com clareza bastante para isso. Fixam-se em detalhes que, por motivos ignorados, os irritam e desconcertam, entre os quais o meu penteado, não sei se demasiado provocante ou inócuo, a minha idade, que consideram um vício moral revoltante, e o fato insólito de eu ter filhas bonitas sem preencher as condições ideológicas requeridas para isso. Descritos com abundância de minúcias, meus defeitos ali apontados abrangem aparentemente toda a gama das possibilidades humanas, pois apareço ao mesmo tempo como gay e homofóbico, anti-semita e fanático sionista, moralista auto-reprimido e putanheiro assanhado etc. etc. Tendo-me colocado assim no centro da coincidentia oppositorum , os redatores do site chegaram a um ponto em que já nada podiam dizer contra mim que não fosse desmentido por alguma acusação anterior. A solução encontrada para essa dificuldade foi inventar-me de novo, moldando a minha figura segundo os requisitos apropriados para uma esculhambação em regra, sem contradições ou ambigüidades. Criaram então uma página especial do Orkut, usando o meu nome e fotografia e fazendo-se passar por mim. Preencheram a página com uma confissão de nazismo e espalharam convites para que os trouxas a freqüentassem, constatando com seus próprios olhos e até cérebros, caso os tivessem, a minha militância nazista em ação. Ficou assim provado ser eu um completo F. D. P., quod erat demonstrandum . Com base em evidências tão sólidas, tornou-se mesmo imperativo reeditar ali uns velhos e já quases esquecidos apelos à supressão física da minha execrável pessoa, acompanhados de indicações, infelizmente um tanto desatualizadas, dos lugares onde os interessados na minha execução sumária podem mais facilmente me encontrar e me pegar de jeito.

Há mais de mil pessoas envolvidas nesse empreendimento, a maioria delas portadora de diplomas universitários e pertencente, destarte, à parcela mais esclarecida da população, pela qual não se chega sequer a formar uma vaga idéia do que poderiam ser as menos esclarecidas.

Nenhuma dá sinal de perceber algo de criminoso nas ações do grupo, e suspeito que muitas, ou quase todas, se informadas de que estão sujeitas às leis brasileiras como quaisquer outras criaturas residentes no país, se mostrariam sinceramente indignadas ante essa pretensão intolerável.

Bem ao contrário, todas se acreditam movidas pelos mais altos sentimentos humanos, pairando angelicamente acima de mesquinharias penais que só um grosseirão inconveniente como eu seria capaz de querer introduzir numa conversação tão sublime.

Somente umas duas ou três vezes examinei o material ali publicado, comentando-o da maneira que me pareceu esteticamente mais adequada ao ambiente, isto é, mediante qualquer gozação sarcástica e cabeluda que me ocorresse no momento.

Eu queria só que vocês vissem a expressão de susto e revolta com que aquelas almas delicadas reagiram às minhas vulgaridades! Nunca vi tanta dignidade ofendida, tanta santidade aviltada, tantas lágrimas de autopiedade coletiva, tantas efusões de consolação mútua, carinho reparador e juras de vingança acompanhadas de menções pejorativas aos membros da minha família. Uma coisa comovente mesmo.

Se eu quisesse inventar essa situação, não conseguiria. Não sou nenhum Franz Kafka, nenhum Karl Kraus, nenhum Eugène Ionesco para conceber personagens como esses. Só a realidade brasileira do momento, moldada por quatro décadas de “revolução cultural”, pode criá-los. E até a capacidade de descrevê-los me falta, como faltaria talvez até àqueles três autores, cuja imaginação do absurdo tinha limites.

O Natal não é para os covardes

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 22 de dezembro de 2005

Na constituição americana não há nenhum “muro de separação” entre religião e Estado. Quando Thomas Jefferson criou essa expressão, foi para proteger as igrejas contra o Estado. É só num mundo pós-orwelliano que ela pode ser usada como pretexto para legitimar a repressão estatal da religião.

Mas o confinamento mesmo de Deus na esfera “religiosa”, Sua exclusão dos debates científicos e filosóficos, que hoje até mesmo os religiosos aceitam como cláusula pétrea da ordem pública, já é uma herança mórbida da estupidez iluminista. O “muro de separação” entre conhecimento e fé é uma farsa kantiana erguida entre dois estereótipos.

Afinal, por que um sujeito tem fé na Bíblia? Tem porque acha que ela é a Palavra de Deus. Mas por que ele acha que ela é a palavra de Deus? É porque tem fé nela? Esse círculo vicioso exigiria uma capacidade de aposta no escuro que transcende os recursos da média humana. A fé não surge do nada, muito menos da própria fé. É preciso um indício, um sinal, um motivo racionalmente aceitável para acender na alma a chama da confiança em Deus. A definição mesma da “fé” como crença numa doutrina é perversão do sentido da palavra. A doutrina cristã formou-se ao longo dos séculos. Os primeiros fiéis confiaram em Jesus antes de saber nada a respeito dela. Não acreditavam numa doutrina, confiavam num homem. E por que confiavam nele? Ele próprio explicou isso. Quando João Batista, da cadeia, manda perguntar se Ele é o enviado de Deus ou se seria preciso esperar por outro, Jesus não responde com nenhuma doutrina, mas com fatos: “ Vão e contem a João as coisas que vocês ouvem e vêem: os cegos enxergam, e os paralíticos andam; os leprosos ficam limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e os pobres recebem boas notícias. E bem-aventurado é aquele que não se ofende comigo .” O que esses versículos ensinam é que a fé é apenas a confiança em que Aquele que devolveu a vida a alguns mortos pode devolvê-la a muitos mais. É um simples raciocínio indutivo, um ato da inteligência racional fundado no conhecimento dos fatos e não uma aposta no escuro. A única diferença entre ele e qualquer outro raciocínio indutivo é que a conclusão a que ele conduz traz em si uma esperança tão luminosa que toda a tristeza e o negativismo acumulados na alma se recusam a aceitá-la. A alma prefere apegar-se à tristeza e ao negativismo porque são seus velhos conhecidos. São a segurança da depressão rotineira contra o apelo da razão à ousadia da confiança. O que se opõe à fé não é a razão, é a covardia. Para legitimar essa covardia ergueram-se masmorras de pseudo-argumentos. No fundo delas, o leproso lambe suas chagas, o cego adora sua cegueira, o paralítico celebra a impossibilidade de caminhar. Os pobres, imaginando-se reis e principes, festejam a rejeição da boa notícia. Orgulhosos da sua impotência, adornam com o nome de “ciência” a teimosia de negar os fatos.

Mas seu exemplo não frutifica. Setenta e cinco por cento dos médicos americanos acreditam em curas miraculosas. Acreditam não só porque as vêem, dia após dia, mas porque sabem ou ao menos pressentem que atribui-las à auto-sugestão ou à coincidência seria destruir, no ato, a possibilidade mesma da pesquisa científica em medicina, que se baseia inteiramente no pressuposto de que auto-sugestão e coincidência não têm um poder maior que a intervenção terapêutica fundada no conhecimento racional das causas.

O maior escândalo intelectual de todos os tempos é a fraude constitutiva da modernidade, que, excluindo do exame todos os fatos que não tenham uma explicação materialista, conclui que todos os fatos têm uma explicação materialista.

A dose de miséria mental em que um sujeito precisa estar mergulhado para gostar desse lixo não é pequena. O Natal é o lembrete cíclico de que esse destino não é obrigatório, de que existe a esperança racional de alguma coisa melhor. Por isso há quem deseje eliminá-lo: para que o chamado da esperança não fira o orgulho dos covardes.

O direito de insultar

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 22 de dezembro de 2005

Raros presidentes americanos tiveram planos tão ambiciosos como George W. Bush, e a razão pela qual ele é tão odiado é que esses planos, aparentemente inviáveis mesmo a longuíssimo prazo, estão se realizando com velocidade alucinante. A consolidação da democracia no Iraque é tão irreversível que a minoria sunita desistiu de boicotar o processo e até os terroristas abdicaram de tentar anarquizar as últimas eleições (o número de ataques baixou em setenta por cento). Os países em torno improvisam reformas, não querendo ser passados para trás pela onda democratizante, enquanto as tropas americanas continuam firmes no apoio às metas do presidente, resistindo a todas as chantagens e seduções que, na guerra do Vietnã, debilitaram tão facilmente o seu espírito de combate.

Espalhar a democracia no Oriente Médio é uma realização que não fica abaixo da vitória de Ronald Reagan na Guerra Fria. A diferença é que esta se tornou visível da noite para o dia, com a queda do muro de Berlim e a autoliquidação da URSS, ao passo que os resultados visados pelo presidente Bush só podem aparecer aos poucos, espalhados em diversos países e diluídos no fluxo de notícias desfavoráveis que a oposição democrata, firmemente encastelada na grande mídia, produz diariamente para encobri-los.

“Notícias” não é bem a palavra. “Factóides” seria mais apropriado. No começo, impressionaram muito. Chegaram quase a persuadir a opinião pública de que gritos, sustos e gozações humilhantes, impostos a terroristas presos em Guantanamo ou Abu-Ghraib, eram crimes contra a humanidade comparáveis às torturas físicas hediondas que levam os prisioneiros políticos de Cuba, da China ou das ditaduras islâmicas ao desespero e à morte. Aos poucos, a diferença escamoteada acabou aparecendo naturalmente. A orquestra de exageros premeditados conseguiu mesmo é dissolver o impacto da palavra “tortura”, fazendo dela uma mera figura de linguagem.

Houve também as denúncias escabrosas contra figurões do Partido Republicano. Mas os lucros fabulosos da Hallyburton no Iraque acabaram se mostrando inexistentes, enquanto a acusação de “ruptura de sigilo” jogada contra o vice-presidente Dick Cheney vai se revelando cada vez mais uma pegadinha montada pelo marido mentiroso de uma agente da CIA. E, vendo que as imputações criminais lançadas contra Tom De Lay não vão mesmo dar em nada, os democratas já passaram ao plano B: espalhar na mídia que o ex-líder republicano na Câmara gasta muito dinheiro de campanha passeando de avião e hospedando-se em hotéis de cinco estrelas. Mesmo que nisso De Lay não ficasse muito abaixo da gastadora Hillary, restaria ainda a pergunta: E daí?

Revoltados de ter de contentar-se com resultados jornalísticos, sem trazer dano judicial substantivo ao entourage do presidente, os democratas voltaram seu ódio contra os jornalistas conservadores. Queriam vingar-se das revelações desmoralizantes que acabaram com a carreira de Dan Rather e baixaram as vendas do New York Times . Gastaram uma nota preta em investigações para queimar alguma reputação, mas tudo o que conseguiram foi descobrir que o radialista Rush Limbaugh, desde uma operação na coluna, ficara viciado em analgésicos. Rush passou umas semanas entalado numa confusão judicial, mas emergiu mais perigoso e aplaudido do que antes.

Então os frustrados, no auge do desespero, resolveram vingar-se em alguém mais fraco: saltaram sobre Michele Malkin, uma linda colunista filha de imigrantes vietnamitas, que escreve artigos arrasadores contra o esquerdismo chique do establishment democrata. Mas, não descobrindo nada contra ela, espalharam na internet o grito de dor da impotência enraivecida: “Alguém precisa dar um tiro entre aqueles dois olhinhos puxados.”

A própria Michele, notando os progressos da apelação entre as fileiras da esquerda, dedicou a eles seu último livro, Unhinged: “Destrambelhados”. É a palavra que melhor descreve o estado de espírito de uma facção que, vendo desfazer-se um a um seus ideais, seus argumentos, sua razão de ser, já não dispõe senão do último consolo: o direito de insultar.

Mas o esvaziamento moral não significa, ainda, derrota publicitária ou eleitoral. As realizações de Bush, complexas e abrangentes, precisam de tempo para consolidar-se e ser compreendidas pelo público. Enquanto isso, a confusão favorece o adversário. A curto prazo, o xingamento puro, sem pé nem cabeça, pode ainda ser uma arma mortífera.