Raça de víboras, ou: o Marquês de Sader na prisão

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 6 de novembro de 2006

Ninguém deve regozijar-se com a desgraça alheia, mas mostrar ao dr. Emir Sader que ele não está acima das leis era uma questão de saneamento básico. Apenas não concordo com a Justiça catarinense ao desprovê-lo de suas funções oficiais na USP. Onde mais haveria lugar para um tipo como ele? Nas ruas, ele espalhará a mentira e a loucura entre a população. Na cadeia, corromperá os presidiários. Só na Cidade Universitária do Butantã é que ele pode estar entre seus iguais ou piores, sem chance de fazer o mal a quem não o mereça. Prova disso é a solidariedade que seus pares acabam de lhe hipotecar em mais um “Manifesto de Intelectuais”, o único gênero em que a produção literária nacional tem alcançado algum destaque no mundo.

Sabemos como tudo começou. Tendo o senador Jorge Bornhausen dito que o voto era a maneira natural de expelir da vida pública a “raça petista”, o dr. Sader, fazendo-se de criancinha e fingindo ignorar a acepção do termo “raça” como coletivo usado para designar pejorativamente ou laudatoriamente qualquer grupo de pessoas sem o menor parentesco genético (como no xingamento “raça ruim” ou no título do famoso poema de Cassiano Ricardo), acusou o senador de racista e nazista. Sendo o racismo delito inafiançável, a imputação de crime, forçada até o extremo limite do ridículo, era ela própria crime doloso, e tinha de render a seu autor o prêmio judicial merecido.

Talvez se pudesse alegar em favor do réu o fato de que essa micagem semântica, por boboca que seja, é o único procedimento retórico que ele conhece, sendo possível reduzir a ela, por análise estilística, absolutamente todos os argumentos que ele apresenta na sua coluna internética “O Mundo às Avessas”, na qual, como já se vê pelo título, a verdade pode em geral ser obtida mediante simples inversão das assertivas do autor. Se, portanto, ele acusou o senador de racista, foi precisamente por saber que ele não era racista de maneira alguma. No início, o colunista pode ter feito essas coisas com a satisfação sádica da calúnia consciente, mas, com o tempo, parece que o hábito se incorporou de tal modo à sua pessoa que acabou por se tornar um cacoete, um reflexo instintivo e, por fim, uma cosmovisão e um estilo de vida: o mero sadismo transfigurou-se em saderismo.

Mas eu seria injusto se visse nisso uma idiossincrasia pessoal saderiana. “Inversão” é a premissa universal do movimento revolucionário desde muitos séculos.  Apenas, de Diderot e Hegel até Jacques Derrida, o procedimento geral era encobri-la sob alguma aparência requintada de coerência e sensatez, induzindo os leitores a engolir a enormidade sem percebê-la. Foi apenas no Brasil dos últimos anos que, reduzida a nada a capacidade literária por excesso de indulgência no vício do jargão partidário, e devidamente rebaixado o QI do público em iguais proporções, a inversão começou a se exibir em estado puro, pelada, nuinha, sem pejo, com toda a sua mecanicidade bárbara e o orgulho obsceno da estupidez triunfante. A esquerda inteira, em suma, começou a escrever, falar e pensar como o marquês de Sader.

A prova disso, como eu ia dizendo, era o manifesto em favor do referido. Assinado por pessoas que se imaginam ilustres e são mantidas nessa crença pelos agradinhos mútuos e intenso troca-troca de subsídios oficiais sob os pretextos mais variados, essa peça literária copia tão exatamente o modus argüendi do referido, que parece ter sido escrita por ele em pessoa.

Não digo isso pela pletora de solecismos, já demonstrada no estilo do dr. Sader pela Profa. Norma  Braga (http://normabraga.blogspot.com/2006_06_01_normabraga_archive.html) e agora meticulosamente confirmada pelo Reinaldo Azevedo no texto do documento coletivo (v. as mensagens “Nos Emirados Sáderes”, “A palavra ‘escorchante’ e ProUni para Sader”, “Intelectuais, relembrem o texto de Sader” e “Luminares das letras em manifesto solecista pró-Sader” no seu blog http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo). Se é verdade que o estilo é o homem, o estilo do manifesto é “usômi”.

Mas o analfabetismo endêmico da classe dita intelectual neste país já é fato notório no qual não pretendo insistir. O caracteristicamente sadérico no manifesto é mesmo o seu conteúdo.

A inversão já começa quando os signatários acusam a sentença condenatória de ser um atentado contra a liberdade de expressão. A demissão de Boris Casoy, a supressão de meus artigos no Jornal da Tarde, no Globo, na revista Época e na Zero Hora, as ameaças judiciais do deputado Greenhalgh ao jornal eletrônico Mídia Sem Máscara, as agressões a repórteres, a pressão policial contra a Folha de São Paulo e sessenta e três processos movidos contra Diogo Mainardi por ter dito verdades óbvias e arquiprovadas não atentam de maneira alguma contra a liberdade de expressão, mas proibir que o dr. Sader atribua crimes a quem não os cometeu, ah!, isto sim atenta, isto sim agride, isto sim fere a consciência libertária de Flávio Aguiar, Antônio Cândido e similares.

Mas o inversionismo em todo o seu esplendor aparece é na comparação entre esse documento e o seu antecedente internacional. Em janeiro, tão logo anunciado o processo aberto contra o dr. Sader, uma vasta patota global constituída de Eduardo Galeano (escritor uruguaio), Anibal Quijano (sociólogo peruano), Ignacio Ramonet (Le Monde Diplomatique), Samir Amin (Fórum Mundial das Alternativas), Walden Bello (Focus on the Global South) e outros tantos já tomou partido do acusado e, sem ter a menor idéia do uso do termo “raça” em português, endossou a acusação ao senador Bornhausen, tachando-o de “fascista e racista”.

O manifesto de agora, assinado por brasileiros que ao menos teoricamente falam a língua do senador, esperneia em todas as direções na defesa do dr. Sader, mas abstém-se meticulosamente de subscrever aquela acusação e até mesmo de transcrevê-la. Por que? Se a sentença judicial contra as palavras do dr. Sader é injusta, elas são obviamente justas. Por que defender o denunciante ocultando ao mesmo tempo o conteúdo da denúncia?

A resposta é óbvia: por mais amigos que sejam do dr. Sader, os autores do manifesto não quiseram ser seus cúmplices retroativos, sujeitando-se eles próprios à penalidade que o atingiu. Confessam, portanto, que ele é culpado, no instante mesmo em que o proclamam inocente, e tiram o corpo fora da encrenca no ato mesmo de fingir que entram nela corajosamente em defesa do condenado. É mesmo “o mundo às avessas”.

Que tenham assim procedido por desatenção e inocentemente, é hipótese que se exclui desde logo pelo fato de que alguns deles, a começar pelo próprio Flávio Aguiar, já tinham assinado antes o manifesto de janeiro, no qual se fizeram cúmplices do crime cometido pelo dr. Sader, tentando agora apagar as pistas da sua participação no episódio, fazendo-se de advogados neutros para camuflar sua condição de co-autores do delito.

Esforço inútil. Está tudo bem documentado, e, se faltassem provas patentes da má-fé dos “intelectuais de esquerda” em geral, essa já diria tudo. O senador Bornhausen não apenas obteve justiça no seu confronto com o dr. Sader, mas tem direito ainda a reparações, por danos morais, da parte de uma infinidade de estrelas e estrelos do elenco internacional e local do ativismo esquerdista, a começar pela Agência Carta Maior, que publicou originariamente a patifaria saderiana no site  http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2171 . Creio mesmo que o senador tem a obrigação de lhes mover o devido processo cível, ferindo-os no único ponto sensível das suas consciências – o bolso – e ajudando o país a livrar-se dessa raça.

Qual raça, exatamente?

Em janeiro, o dr. Plínio de Arruda Sampaio, elegante esquerdista quatrocentão e um dos mais assanhados partidários do dr. Sader, chegou a tentar justificar o truque semântico pueril concebido contra o senador Bornhausen, proclamando que “não se pode aceitar o uso do termo ‘raça’ para referir-se a uma parte da população”.  Esse critério lingüístico, se adotado oficialmente, obrigaria as autoridades a recolher como propaganda racista todos os exemplares do Evangelho, onde Jesus constantemente se refere a uma parte da população como “raça de víboras”. Mas, assim como o termo “raça petista” não ofende a nenhuma raça biológica, e sim somente à raça política petista, a expressão de Jesus não soa ofensiva e inaceitável senão às próprias víboras. Eis a resposta à minha pergunta. É a essa raça que pertencem o marquês de Sader e todo o cortejo dos seus admiradores. Por isso o lugar mais apropriado para eles é na USP, no bairro do Butantã, ao lado de um serpentário e dentro de outro.

Com a reeleição de Lula, o Brasil continuará sendo governado diretamente das assembléias e grupos de trabalho do Foro de São Paulo, sem a mínima necessidade de consultar o Parlamento ou dar satisfações à opinião pública; o direito da esquerda ao crime e à mentira, já exercido sem maiores restrições, será consagrado como cláusula pétrea da moral política nacional, e os que a infringirem se sentirão pecadores e réprobos; os representantes das Farc e do Mir continuarão circulando livremente pelo território onde vendem drogas e seqüestram brasileiros; os cinqüenta mil homicídios anuais subirão para sessenta ou setenta, mas a liquidação de quadrilhas locais concorrentes da narcoguerrilha colombiana continuará sendo apresentada como vitória esplêndida da lei e da ordem; o MST continuará ditando a política agrária federal; e os empresários que não participem de mensalões ou esquemas similares continuarão sendo criminalizados pela Receita. Até aí, tudo será como antes, exceto do ponto de vista quantitativo, no sentido de que o ruim ficará incalculavelmente pior. As únicas novidades substantivas previsíveis são as seguintes:

(1) Nossas Forças Armadas, que até agora conseguiram adiar um confronto com a realidade, terão de escolher entre continuar definhando ou integrar-se alegremente na preparação de uma guerra continental contra os EUA, ao lado das Farc e sob o comando de Hugo Chávez.

(2) Como Lula promete para o seu segundo mandato a “democratização dos meios de comunicação”, os órgãos de mídia que se calaram quanto aos crimes maiores do presidente serão recompensados mediante a oficialização da mordaça. Não deixa de ser um upgrade.

(3) Alguns políticos com veleidades legalistas, que faziam alarde de querer punir os crimes do PT, partirão para o adesismo retroativo e inventarão para isso justificativas sublimes. Tudo o que ficou impune será esquecido ou premiado.

Geraldo Alckmin perdeu porque sacrificou sua candidatura, sua consciência e até sua religião ao voto de silêncio no que diz respeito ao abortismo, ao Foro de São Paulo, às ligações de Lula com as Farc e do PT paulista com o PCC. No último debate, uma insinuação velada – ou ato falho —  mostrou que ele estava bem avisado pelo menos quanto a este último ponto, mas não queria passar a informação aos eleitores. Gastou seus quinze minutos de fama empregando nisso o melhor da sua covardia, e não se pode dizer que se esforçou em vão. Simultaneamente, um artigo meu sobre o Foro de São Paulo era censurado na Zero Hora de Porto Alegre e o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh fazia o que podia para calar o jornal eletrônico Mídia Sem Máscara. No tópico do abortismo, pela primeira vez na história das eleições no mundo um partido proibiu, com sucesso, toda menção pública a um item do seu próprio programa oficial. Os que violaram o voto de censura pagaram pela audácia: o arcebispo do Rio de Janeiro teve sua casa invadida pela polícia e, em Belo Horizonte, dois jovens foram presos por distribuir folhetos sobre o compromisso firmado por Lula no sentido de legalizar o aborto no país. Nunca um partido teve um controle tão completo sobre a lista dos argumentos permitidos e proibidos na propaganda eleitoral. Os últimos dias da campanha deram uma amostra do que o segundo mandato de Lula promete ao Brasil

A vitória da ficção

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 2 de novembro

Notável na eleição de domingo foi a facilidade com que provas cabais do que governo fez no passado acabaram parecendo, aos eleitores, menos dignas de crédito do que invencionices artificiosas quanto àquilo que a oposição pretenderia fazer no futuro. Nada indicava que Alckmin planejasse eliminar os programas sociais ou privatizar a Petrobrás. Tudo evidenciava que Lula era corrupto e mentiroso. Nas urnas, a ficção prevaleceu sobre a realidade.

O motivo do aparente absurdo, no entanto, é simples e claro. Durante vinte anos a corrupção nacional foi descrita na mídia em termos de luta de classes: era a “elite” roubando a multidão dos coitadinhos. Nesse contexto, o “partido dos pobres” parecia ser mesmo o partido dos puros. Então ficava realmente difícil acreditar que uma organização tão sacrossanta se transfigurasse, da noite para o dia, numa gangue de ladrões.

A criminalidade petista é diferente da dos outros partidos: enquanto nestes floresce a paixão avulsa do enriquecimento pessoal, o PT delinqüe por sistema e obrigação revolucionária, dentro de uma estratégia abrangente de poder total e inserção do Brasil nos planos do Foro de São Paulo.

A oposição, porém, toda ela formada sob a prestigiosa influência da luta esquerdista contra o regime militar, via com horror a hipótese de desmoralizar, junto com o PT, o esquerdismo em geral. Esforçou-se, pois, para isolar uma coisa da outra, encobrindo as ligações do partido com organizações subversivas internacionais e apresentando os crimes petistas como banais delitos de corrupção, só distintos de seus antecedentes pelo volume inaudito, que os tornava, aos olhos do povão, ainda mais inverossímeis.

A única vez em que o nome “Farc” apareceu associado ao PT foi quando eclodiu a suspeita de ajuda secreta à campanha eleitoral de 2002. Apresentada pela mídia como um caso de contribuição ilícita igual a qualquer outro, a notícia ignorava a longa colaboração entre o partido político e a organização narcoguerrilheira, dando a entender que aí nada havia de errado, desde que ninguém ganhasse dinheiro com isso. Era como se vantagens políticas obtidas da parceria com o crime não fossem elas próprias criminosas, como se a proteção dada pelo PT às Farc não tivesse ajudado em nada os índices de violência no Brasil a alcançar a taxa astronômica de 50 mil homicídios anuais, mesmo sabendo-se que a quadrilha colombiana vendia cocaína e dava treinamento paramilitar às gangues locais. Autoneutralizadas pela ocultação do essencial, pela inversão da escala de gravidade dos crimes e, em última análise, pela cumplicidade tácita com o acusado, as denúncias da oposição não poderiam senão levantar suspeita contra elas próprias e fortalecer a candidatura Lula. Parecem ter sido calculadas justamente para esse fim, mas, tenha ou não havido um pacto abominável entre PT e PSDB, a força residual da solidariedade esquerdista basta para explicá-las. O amor nacional aos eufemismos pode chamar a omissão tucana de “moderação”. Mas moderação na defesa da verdade é serviço prestado à mentira. Tal como em 2002, o PSDB foi o autor da comédia eleitoral que deu a vitória ao PT.

Piu-Piu na cadeia

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 2 de novembro

Em artigo publicado em 30 de outubro, anunciei: “Como Lula promete para o seu segundo mandato a ‘democratização dos meios de comunicação’, os órgãos de mídia que se calaram quanto aos crimes maiores do presidente serão recompensados mediante a oficialização da mordaça” (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/061030dc.html).

Não se passaram 48 horas e, como invariavelmente acontece há quinze anos, os petistas me deram razão. Saíram espancando e intimidando jornalistas, clamando por mais controle estatal da mídia e até caprichando na mesquinharia ao ponto de boicotar o pagamento de aposentadoria a um de seus recentes desafetos.

Dos perseguidos, nenhum era direitista, pró-americano, sionista ou cristão conservador. Eram todos “companheiros de viagem” que passaram a década ajudando a encobrir o eixo Lula-Castro-Chávez-Farc, a idealizar a imagem do “presidente operário” e a realizar o sonho gramsciano de dar ao esquerdismo a autoridade moral onipresente e invisível de um imperativo categórico. Foram punidos apenas porque, depois de ter servido a essa autoridade com o melhor de suas forças, engolindo gentilmente sapo em cima de sapo, chegaram ao limite de elasticidade das suas consciências e recuaram ante o derradeiro upgrade de abominação que o governo lhes exigia: não quiseram compactuar com uma roubalheira que não os beneficiava. Por essa malcriação anêmica e tardia – o máximo de independência mental que se concebe no Brasil de hoje –, foram rotulados de servos do imperialismo, filhotes da ditadura e reacionários fascistas, padecendo o destino que a “democracia ampliada” reserva a esses tipos execráveis. Depois disso, ainda hesitam em admitir o óbvio e, infectados até à medula da “síndrome do Piu-Piu” (para uma descrição desta sintomatologia, v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/041204globo.htm), insistem em perguntar, como Veja: “Fatos isolados ou política de governo?” É claro: tendo dado persistente sumiço a atas e documentos do Foro de São Paulo, sentem repulsa de confessar que os planos ali anunciados estão sendo levados à prática. Imagino-os, em breve, trancafiados numa prisão comunista, interrogados por oficiais cubanos (como já acontece na Venezuela) e perguntando-se uns aos outros: “Será que eu vi um gatinho?”

Parece mesmo impossível explicar a essas pessoas que há alguma diferença entre a modernização capitalista usada para consolidar um regime constitucional e para financiar a construção discreta de uma “democracia popular”. É a diferença entre Margaret Thatcher e Vladimir Iilitch Lênin, mas fica difícil enxergá-la quando se acredita no poder libertário automático da economia de mercado – uma sugestão hipnótica que após a queda da URSS consultores comunistas meteram na cabeça do empresariado para desarmá-lo ideologicamente. Imbuídas dessa fé mágica, publicações como Veja e a Folha acham que é possível livrar-se do comunismo recusando-se a enxergá-lo e reprimindo severamente toda tentação anticomunista. Deu no que deu, mas a existência ou inexistência do gatinho ainda continua uma dúvida metafísica insolúvel.