Antes da tragédia

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 16 de novembro

Quem não lê as colunas de Ann Coulter e não ouve o programa de Rush Limbaugh no rádio não tem a menor idéia do que se passa na política americana. Se ambos são superlativamente odiados pela esquerda, não é tanto por suas opiniões, similares às de outros conservadores quaisquer, mas por um detalhe que os torna indigeríveis: eles têm as informações essenciais, e não hesitam em publicá-las quando a mídia em geral as ignora ou prefere sacrificar a verdade no altar das conveniências.

O que li no último artigo de Ann Coulter é indispensável para uma avaliação realista da vitória dos democratas: para todo presidente americano reeleito, perder a base parlamentar no meio do segundo mandato é regra, não exceção. Aconteceu a Roosevelt, Eisenhower, Kennedy-Johnson, Nixon-Ford, Reagan e Clinton. Por que não aconteceria a George W. Bush? Com uma diferença: Bush perdeu muito menos cadeiras no Senado e na Câmara do que seus antecessores em situação idêntica. O ganho total da oposição foi o menor que já houve num sexto ano de presidência.

Conclusão: não houve nenhuma “derrota arrasadora” dos republicanos, nenhum “tsunami eleitoral”, nenhuma “rejeição maciça” da guerra iraquiana. Quem diz que houve está tentando alterar criar um simulacro de realidade por meio de pura ênfase verbal. Isso não é jornalismo, é propaganda.

Quanto a Limbaugh, sem ele eu não teria jamais sabido que até poucos dias antes do 11 de setembro praticamente todos os altos postos de segurança no governo de Washington ainda estavam nas mãos dos clintonianos, cujos aliados parlamentares, de pura má-vontade, haviam adiado por meses confirmação dos substitutos nomeados pelo presidente. Se você não sabe disso, não percebe que a gritaria democrata contra a “imprevidência” dos serviços de segurança do governo Bush foi puro fingimento maquiavélico. Para mim, isso não é surpresa: há quarenta anos vejo que a esquerda só sai espumando de cólera justiceira quando tem algum crime a esconder, não raro o mesmo que ela denuncia, em geral algum muito pior. Mas o grosso da população brasileira ainda não notou essa constante.

Nos EUA, felizmente, Coulter está na lista de best sellers e o programa de Limbaugh tem 38 milhões de ouvintes (38 vezes a tiragem do New York Times).

O erro básico dos conservadores americanos é continuar acreditando que os esquerdistas são políticos normais, que podem ser combatidos por meio do voto. O instrumento principal de ação da esquerda é o crime, e oferecer a criminosos a chance da concorrência eleitoral é dignificá-los e fortalecê-los. A única arma que pode vencê-los é o ativismo judicial, do qual eles mesmos se servem com tanta desenvoltura hipócrita. É preciso colocá-los no banco dos réus antes que eles subam à tribuna da acusação, da tribuna saltem para os palanques, dos palanques para os postos de governo e daí para o poder absoluto. E é preciso agir rápido, porque, uma vez que eles cheguem à última etapa, a Justiça já nada poderá contra eles. Isso já está acontecendo no Brasil, mas, se acontecer nos EUA, será uma tragédia de alcance mundial.

Anistia?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 14 de novembro de 2006

O processo de indenização movido por César Teles e sua esposa Maria Amélia contra o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra é confessadamente um ato político, calculado para estimular outros militantes esquerdistas presos durante o regime militar, bem como seus descendentes, a que abram processos similares e mantenham acesa por tempo ilimitado a chama da “luta contra a ditadura”, que há vinte anos vem rendendo às organizações de esquerda incalculáveis lucros publicitários, políticos e financeiros.

A tática jurídica adotada é restringir ex post facto a aplicação da lei de Anistia, mediante a alegação de que ela só preserva contra a punição penal, não contra ações cíveis, uma nuance que nunca foi explorada antes por ser demasiado rebuscada para ocorrer de maneira natural e espontânea seja ao legislador, seja aos possíveis acusados ou eventuais beneficiários. A idéia do processo nasceu claramente de uma arificiosa investigação de brechas possíveis que permitam eternizar os ganhos da autovitimização esquerdista. Para os que combateram o terrorismo, bem como para os familiares dos que morreram nesse combate, tudo é um passado doloroso que deve ser esquecido. Para os esquerdistas, é um futuro repleto de promessas: há muito dinheiro nos cofres públicos que ainda não foi gasto em indenizações e muitas manchetes que ainda não foram escritas para a glória do terrorismo nacional. Há uma diferença substantiva entre a reivindicação sincera de quem se sente prejudicado e o ativismo judicial que visa a espremer até depois da última gota o limão das vantagens possíveis. Não é preciso colocar em suspeita a lisura de intenções do casal Telles em particular, pois a má-fé é o pressuposto geral de toda a instrumentalização esquerdista dos “anos de chumbo”.

O que ninguém parece ter notado é que, se o argumento da acusação for aceito pela Justiça, ele abrirá um precedente para que as vítimas e familiares de vítimas de atentados terroristas movam ações similares contra os membros de organizações esquerdistas que apoiaram a “luta armada”, inclusive, é claro César Telles e Maria Amélia Telles. Como diretores da gráfica do PC do B, partido maoísta, os Telles foram, além de auxiliares do terrorismo nacional, também cúmplices morais do genocídio chinês, podendo ser acusados, pelas leis internacionais, de crimes contra a humanidade, como acontece com os apologistas até mesmo retroativos do regime nazista. Só escaparam disso até hoje porque não existem no Brasil organizações de direita e, se existissem, dificilmente seriam mesquinhas ao ponto de tentar explorar politicamente cada crime real ou imaginário cometido pelos comunistas quatro décadas atrás, como os comunistas não se vexam de fazer, com tenacidade incansável, contra seus adversários.

No caso em particular da reclamação contra o coronel Brilhante Ustra, o juiz encarregado do processo terá de ser um campeão de autocontrole, um verdadeiro asceta espiritual, para resistir à pressão da mídia que já prejulgou e condenou o acusado. Mesmo aquelas raras publicações que não chamam o militar diretamente de “torturador”, negando-lhe o direito de ser considerado inocente até prova em contrário, recusam-se obstinadamente a publicar qualquer das alegações que ele apresenta em sua defesa no livro A Verdade Sufocada. Entrevistá-lo, então, é hipótese proibida e impensável nesses primores de idoneidade que são os grandes jornais e canais de TV deste país. Quando eles choramingam que estão sendo oprimidos pela militância petista, fazem-no com sobra de razão, exatamente como a esposa fiel que, depois de fazer todos os sacrifícios possíveis pelo bem do marido, ainda leva uns tapas do sem-vergonha.

Mas, de modo geral, as vítimas do terrorismo estão colocadas numa posição juridicamente mais que favorável para exigir indenizações de seus algozes, já que o dano que sofreram foi imensuravelmente maior que o de qualquer comunista ou pró-comunista dos anos 60-70.

Em primeiro lugar, na época não agiam em nome de organizações ilegais, mas em obediência aos códigos militares e policiais que regiam o combate ao terrorismo. Mesmo que tenham cometido abusos e devam pagar por eles, resta o fato inquestionável de que esses desvios criminalmente imputáveis ocorreram no exercício de funções que eram, em si, perfeitamente legais, ao passo que os terroristas, mesmo quando se comportavam com honra e se esquivavam de participar de atrocidades como o assassinato de um prisioneiro a coronhadas pelo chefe guerrilheiro Carlos Lamarca, estavam envolvidos numa atividade essencialmente ilegal e criminosa, com o agravante de agir a mando de organizações internacionais como a OLAS, Organización Latino-Americana de Solidariedad, fundadas e subsidiadas por algumas das ditaduras mais genocidas que já existiram no planeta.

Em segundo lugar, as vítimas e familiares de vítimas do terrorismo foram alvo de tratamento abjetamente discriminatório por parte do governo esquerdista, que lhes recusou toda assistência e, quando lhes deu indenizações, tardiamente como aconteceu no caso da família do falecido sargento Mário Kozel Filho, foi mediante quantias miseráveis que, na comparação com a orgia financeira dos prêmios concedidos aos esquerdistas, somavam ao dano material o agravante moral da injúria. Isso quer dizer que, além de exigir indenização dos próprios terroristas, que hoje são poderosos e ricos, essas vítimas podem cobrá-la também do governo.

Em terceiro lugar, a disparidade de tratamento que os mortos dos dois lados receberam na mídia é tamanha e tão patente, que ninguém pode em sã consciência deixar de enxergar nela uma das causas da injustiça governamental na distribuição de indenizações – o que significa que os órgãos de mídia também podem ser acionados como autores dos imensos danos morais infligidos às vítimas e descendentes de vítimas do terrorismo.

Em suma: para cada processo cível que os terroristas e seus parceiros possam mover contra seus supostos algozes, as vítimas do terrorismo têm munição para mover pelo menos três: contra os terroristas, contra o governo, contra as grandes empresas de mídia.

Se houvesse organizações militantes de direita, e se estivessem conscientes da força do ativismo judicial como arma política, a dor que os esquerdistas sentiriam no bolso seria tão insuportável que, com imenso alívio, desistiriam de iniciativas como a do casal Telles e prefeririam investir suas energias na indústria nacional dos panos quentes.

Enquanto os perseguidos pelo petismo não decidirem se organizar para um ataque judicial a seus algozes, em vão pedirão socorro divino. Até Deus precisa de motivação. Se você mesmo tem preguiça de reconhecer a gravidade da sua situação, e de agir em conseqüência, por que haveria o Altíssimo de se preocupar com você?

A vitória ambígüa dos democratas

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 13 de novembro

O marquês de Sader diz que a esquerda é “responsável pelos melhores momentos da história da humanidade”. Vou lhes dar um exemplo entre outros inumeráveis. Em 1974, os soldados americanos se retiraram do Vietnã, deixando o campo livre para os comunistas, que então promoveram a matança de três milhões de civis vietnamitas e cambojanos, o mais hediondo episódio de genocídio da segunda metade do século XX, superando em mais de três vezes o total de mortos da guerra. O resultado era mais que previsível, mas os amorosos pacifistas que se esforçaram para torná-lo realidade jamais foram cobrados na grande mídia pelo crime imensurável que ajudaram a praticar. Alguns, como Noam Chomsky, ainda fizeram o possível para ocultá-lo, e por isso são honrados até hoje como exemplos de honestidade intelectual.

Outro belo momento, que poderá levar o marquês ao êxtase, anuncia-se para breve no Iraque, caso os radicais de esquerda do Partido Democrata americano, embriagados pela vitória fácil na Câmara e no Senado, se deixem levar pelo entusiasmo pacifista de John Murtha, Nanci Pelosi e outros que tais.

É difícil que isso chegue a acontecer, pois, quando tiveram a chance de levar à prática a proposta de retirada imediata que advogavam da boca para fora, os democratas recuaram mais que depressa. Eles sabem perfeitamente que o Irã, atualmente já o maior fornecedor de recrutas para o terrorismo iraquiano, está pronto para ocupar o território do país vizinho ou pelo menos para realizar ali uma matança sem precedentes tão logo veja os soldados americanos pelas costas. E uma coisa é falar mal do governo, outra é compartilhar das responsabilidades de governo. Uma dessas responsabilidades, que George W. Bush agora se sente aliviado de poder dividir com seus críticos mais ferozes, é a de decidir o que fazer com Kim Il-Jung. Mais provável e mais iminente do que uma retirada do Iraque é um ataque à Coréia do Norte. Neste momento, os EUA estão reforçando suas tropas na Ásia e dando os retoques finais ao plano de bombardear com mísseis Tomahawk as instalações coreanas de processamento de plutônio em Yongbyon. Há outras opções militares menos devastadoras, mas alguma delas terá de ser levada à prática em breve, a não ser na hipótese de que Kim volte atrás nos seus planos já anunciados de atacar os EUA. Entre os democratas, alguns esperam ou dizem esperar que ele seja induzido a isso pelas pressões da Coréia do Sul e sobretudo da China. Mas aí a coisa se complica espetacularmente, porque, segundo o relatório em preparo pela U.S.-China Economic Security Review Commission (Comissão de Revisão da Segurança EUA-China), cuja versão oficial deverá ser divulgada ainda este mês, a China, ao mesmo tempo que fingia apoio aos EUA, ajudava secretamente o programa norte-coreano de armas nucleares. O relatório baseia-se em informações de testemunhas diretas. Partes do documento foram passadas ao jornalista Bill Gertz por assessores parlamentares, de modo que ninguém no Congresso pode verossimilmente alegar completa ignorância a respeito. No tempo em que os democratas eram apenas oposição, informações como essa os ajudavam a espremer o pobre George W. Bush na parede, obrigando-o a escolher entre o risco de ignorar a ameaça e o de tomar sozinho uma decisão impopular. Agora, quem está na parede são eles.

Esse é só um dos motivos por que, nos círculos conservadores, ninguém está lamentando muito a derrota republicana. É verdade que os jornalistas brasileiros nem falam disso. Apanhar de petistas enragés não há de tê-los tornado mais inteligentes, nem extinguido em seus corações as afeições esquerdistas que já se tornaram a sua segunda natureza. A esta altura, eles estão comemorando a dupla vitória democrata nos EUA como se fosse o começo do fim da “direita religiosa”, se não do abominável Império americano inteiro.

Mas, se é verdade que o povo americano está mesmo cansado da guerra no Iraque, nunca a política internacional, sozinha, decidiu uma eleição nos EUA. Ninguém duvida de que o Partido Republicano pagou pelos pecados de George W. Bush, mas a rejeição nacional ao presidente tem muito menos a ver com a guerra do que com as atitudes dele com relação a gastos públicos, imigração e legislação eleitoral – e, nessas três áreas, ele não errou contra os democratas, e sim com o apoio entusiástico deles. Deles e dos chamados Rinos (republicans in name only, “republicanos só no nome”), como John McCain e Lincoln Chafee.

O exemplo mais notório foi a lei de imigração. Enquanto o país inteiro clamava por medidas drásticas contra a imigração ilegal, o presidente tramava com os rinos e os democratas um plano ridículo que não só anistiava os invasores mas lhes dava mais direitos do que os imigrantes legais jamais tiveram. A proposta despertou tanta revolta que os republicanos conservadores na Câmara dos Deputados frustraram o esquema, trabalhando contra seu próprio presidente e suprimindo da lei contra a imigração ilegal o dispositivo de anistia. Isso foi em dezembro. Então já havia conservadores chamando Bush abertamente de “traidor”.

Bush complicou muito sua própria situação quando deu apoio a uma nova legislação eleitoral que limitava severamente a ação das ONGs não partidárias. Ora, essas ONGs como por exemplo a National Rifle Association, a American Family Foundation e sobretudo os think tanks como a Heritage Foundation ou a Claremont Foundation, são a principal força do movimento conservador americano. É claro que os democratas, que nunca conseguiram montar um think tank que funcionasse, adoraram a nova regra e os conservadores viram nela uma traição explícita de Bush à causa que professou defender.

Mais motivo ainda para revolta o presidente deu quando violou ao mesmo tempo duas leis sagradas do conservadorismo, gastando um dinheirão do governo para aumentar a interferência estatal na educação infantil, com a ajuda, é claro, dos democratas. A repugnância dos conservadores ao excesso nos gastos públicos é tradicional, mas sua resistência à educação estatal, que era apenas moderada, se transformou em ódio ostensivo quando ficou claro que as escolas americanas estavam se tornando centros de doutrinação politicamente correta orientados… pela ONU.

O pior de tudo foi a súbita revelação dos planos secretos do Council on Foreign Relations para dissolver as fronteiras entre os EUA, o Canadá e o México, praticamente eliminando a nação americana como unidade política independente. A idéia já era antiga, mas quando alguém levantou a lebre e um cidadão apelou ao FOIA (Freedom of Information Act), obrigando o governo a divulgar os documentos sobre o assunto, o que se descobriu foi que Bush já estava formalmente comprometido com os governos do Canadá e do México a realizar o plano. O Partido Republicano, onde há tantos membros do CFR quando no Democrata, não podia nem aprovar uma coisa dessas nem romper abertamente com o presidente. Confuso e indeciso, optou por fazer-se de morto, o que era o mesmo que pedir aos eleitores que o sepultassem.

Mas é claro que nem toda a justa irritação dos conservadores contra Bush poderia transformá-los em esquerdistas. O que eles fizeram foi o que havia de mais inteligente a fazer: escolheram os mais conservadores entre os candidatos democratas, e votaram neles. Deste modo, o sucesso do Partido Democrata não foi nem uma vitória da esquerda nem uma derrota do conservadorismo. Foi uma derrota de um presidente ambiguamente “tucano” e de seus aliados rinos.

Entre os republicanos, o comentário geral é que o partido tem de abandonar o bushismo e voltar à boa e velha linha conservadora de Goldwater e Reagan, que Bush, por momentos, fingiu representar.

Jorge Gerdau

Meus efusivos cumprimentos ao dr. Jorge Gerdau por haver recusado um ministério no governo Lula. Como empresário, como líder e sobretudo como pai espiritual do Fórum da Liberdade, ele já fez mais pelo bem do Brasil do que todos os ministros deste e de vários outros governos. Fez e continuará fazendo. Um ministério, para ele, não seria promoção, seria rebaixamento. “Ministro”, afinal, vem do latim minus , como complemento oposto de magis. Um homem como Jorge Gerdau não pode ter chefe, muito menos ser o minus do magister Lula. No governo, ele daria o melhor de si pelo progresso nacional, mas teria de acomodar-se à simbiose monstruosa de economia capitalista e centralização política socialista, que é a fórmula da administração luliana. Um empresariado forte e independente é a base da democracia capitalista. Quando vinte de nossos grandes empresários compreenderem isso como Jorge Gerdau compreende, o Brasil entrará no bom caminho.

Vida dura

Se vocês querem me deixar contente, vão ao blog do Reinaldo Azevedo (http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/) e leiam a nota “Nos Emirados Sáderes: Lula se solidariza com Sader, que agora quer título em clube da burguesia carioca”. É imperdível.

O advogado do marquês

Sob o título “Emir Sader e o terror judicial”, em documento distribuído através da internet por uma tal “Rede de Cristãos” (não sei que raio de coisa é isso), um professor de nome Bajonas Teixeira de Brito Júnior empreende a apologia do marquês de Sader, mas, em contraste com o ambíguo e recalcitrante manifesto que aqui comentei na semana passada, não tenta escapar das implicações do que diz. Bem ao contrário, busca levá-las às últimas conseqüências, solidarizando-se não somente com o criminoso mas com o crime, ao ponto de cometê-lo de novo por sua própria conta e risco. Repetindo e assumindo como sua a imputação criminal indevida que o marquês dirigiu ao senador Bornhausen, o prof. Teixeira transcende portanto os limites da mera solidariedade, entrando com fé e orgulho no terreno da cumplicidade ativa.

Se o marquês, diante de tão fraterna atitude, não der pelo menos um beijo na testa do sujeito, direi que não tem coração. Muitos falaram em defesa do réu condenado — mas só o prof. Teixeira se dispôs a ir para a cadeia com ele. Não é todo dia que se encontra um amigo assim.

Tamanha afeição, em verdade, não é gratuita. Nasce da profunda afinidade entre a forma mentis do acusado e a do seu defensor, se é que esta se pode medir por uma amostra tão breve quanto a que ele nos oferece nesta peça magistral de saderismo aplicado que é a circular da “Rede de Cristãos” (não adianta perguntar: eu já disse que não sei o que é isso). Sou também induzido a crer nessa hipótese mediante a ponderação de que ambos, réu e advogado, têm em comum o fato de serem professores de filosofia formados por universidades brasileiras, o que já bastaria para torná-los metafisicamente indiscerníveis entre si.

Se o leitor permanece incrédulo, sugiro-lhe que leia o seguinte parágrafo do prof. Teixeira e verifique por si mesmo se o modus argüendi aí empregado não é exatamente o mesmo de “O Mundo às Avessas”:

A expressão usada por  Jorge Bornhausen é racista e extremamente ofensiva, visto o contexto negativo em que a palavra ‘raça’ aparece aplicada ao PT, ao que se deve somar o histórico sombrio e mesmo tenebroso que o termo ostenta. Em primeiro lugar, a função da palavra não é classificatória, não sendo empregada como um mero substantivo, antes servindo a uma substantivação que busca inferiorizar e humilhar aquele a quem se refere. Ora, em um país que inicia sua luta contra a discriminação racial, o emprego de forma vexatória da palavra ‘raça’ não pode ser admitida sob nenhuma condição. Condenar quem percebe e repudia esse emprego é ofender a capacidade de julgamento e discernimento de milhões de brasileiros. E punir a inteligência de muita gente.”

Desde logo, designar como “raça” um grupo humano unido por laços não raciais é de fato pejorativo. É pejorativo justamente porque degrada esses laços, desprezando sua natureza específica de nexos políticos, religiosos, espirituais ou éticos e reduzindo-os a uma mera afinidade corporal, biológica, genética, como a que existe entre os vários membros de uma raça de porcos, de patos ou de galinhas. Dizer que os petistas são uma raça é dizer que eles não se reúnem movidos por ideais éticos ou políticos, bons ou maus, mas sim pela simples força da programação genética hereditária, como os gansos se reúnem com gansos e os macacos com macacos. E é claro que quem diz isso não o enuncia literalmente como verdade objetiva cientificamente comprovável, mas como exagero deformante e caricatura verbal, como figura de linguagem usada com propósito insultuoso, como bem viu o prof. Teixeira, para “inferiorizar e humilhar aquele a quem se refere”, isto é, no caso, o grupo petista. Mas a força do insulto reside precisamente na depreciação da natureza dos laços que unem esse grupo. Está patentemente implicada nessa depreciação a crença de que, entre seres humanos, a pura ligação racial é inferior a outros tipos de afinidades, sociais, culturais e suprabiológicas, pelas quais eles possam estar unidos. Ora, acontece que essa crença, em vez de ser racista, é manifestamente o oposto do racismo. Para o racista, os nexos raciais, em si, não são inferiores nem desprezíveis: são o elo essencial que une os seres humanos e determina a sua conduta social e histórica. Hitler e Goering não poderiam jamais se sentir ofendidos se ouvissem dizer que sua colaboração política nascia diretamente da sua afinidade racial de arianos. Ao contrário, proclamavam-no abertamente e com orgulho. A palavra “raça”, para o racista, nada tem de pejorativo: é um conceito filosófico e científico respeitabilíssimo, na verdade o conceito fundamental da sua visão do mundo e o ponto mais alto que, no seu entender, a capacidade explicativa humana pode alcançar. Desprezível, sim, é não ter raça, é ser mestiço, estar portanto desprovido de afinidades genéticas com o grupo e reduzido portanto a só poder travar com os demais membros da sociedade relações espirituais, ideológicas, etc., isto é, relações sem fundamento racial. Desprezíveis são também, nessa perspectiva, as raças ditas inferiores, mas é claro que aí a inferioridade delas não consiste em serem raças, pois a superior também o é, mas sim em não terem tais ou quais virtudes que a raça superior, com modéstia exemplar, atribui a si mesma. Dada a simples relação lógica imediata entre os conceitos, não é possível depreciar ao mesmo tempo uma raça como geneticamente inferior e os nexos raciais como forma de afinidade inferior entre os seres humanos. Exaltar uma raça e depreciar outra é, na mesma medida, exaltar as relações raciais como importantes, valiosas e significativas. Pela mesmíssima razão, depreciar um grupo não racial chamando-o de raça é, obviamente, usar contra ele o mais anti-racista dos insultos.

Tais considerações nascem da pura compreensão do sentido textual, contextual e dicionarizado das palavras, compreensão que deveria ser imediata e instintiva para qualquer pessoa alfabetizada, mas que, a julgar pelo documento citado, está incalculavelmente acima da capacidade do prof. Teixeira. O que ele faz não é um deslize de interpretação, é uma inversão tão drástica e radical do sentido das palavras interpretadas, que lhe bastaria um pouquinho de capacidade de leitura, um pouquinho só, para preservá-lo de erro tão medonho e imperdoável.

O prof. Teixeira, tal como seu amado marquês de Sader, é um analfabeto funcional sem as qualificações lingüísticas mínimas para lecionar em escola primária, embora suficientes talvez para freqüentá-la. Na verdade, chamá-lo de analfabeto funcional é bondade minha. Ele é semi-analfabeto no sentido literal e estrito do termo. Se não o fosse, não poderia escrever que, na declaração do senador Bornhausen, a palavra “raça” “não é empregada como um mero substantivo, antes servindo a uma substantivação”. É simplesmente impossível substantivar o que quer que seja sem empregar o termo respectivo como substantivo ou, se quiserem, “mero substantivo”. Ademais, a conotação semântica de um substantivo não muda a categoria morfológica a que ele pertence. O termo “raça” é substantivo e só pode ser usado como tal, seja em sentido racista ou anti-racista, insultuoso ou laudatório. O homenzinho, evidentemente, não tem a menor idéia do que seja um substantivo, muito menos uma substantivação. Também não conhece sequer a concordância de gênero, já que diz que o “o emprego … não pode ser admitida”. Nem discuto a ignorância histórica um tanto proposital do referido, que suprime um século e meio de lutas em prol dos negros e atribui ao PT a inauguração triunfal do anti-racismo brasileiro. Também não discuto os precedentes a que ele apela, “xingamentos que mereceriam punição imediata”, entre os quais falta, é claro, toda menção ao célebre rap de Gabriel o Pensador, “polícia, raça do caralho”, que, malgrado o insulto duplo e o apelo explícito à matança de policiais, foi defendido na ocasião por toda a esquerda falante, embora o povão fosse de opinião diversa, apedrejando o cantor. Não não discuto isso. Aliás nem discuto nada. Discutir com ignorante é lavar cabeça de jumento. Eles que discutam entre si, já que para isso receberam a habilitação oficial que lhes dá acesso aos ócios acadêmicos e a proventos extraídos da bolsa do povo. Asinum asinus fricat: que os asnos esfreguem os asnos. Mesmo que a esponja seja de dinheiro público.