O mistério da KGB mental brasileira

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de janeiro de 2007

Trinta anos atrás, nenhum intelectual, político ou líder empresarial brasileiro seria cretino o bastante para aceitar a mídia popular como sua principal fonte de informações. A base da nossa dieta de fatos eram os livros, as revistas especializadas, as investigações diretas em arquivos e documentos. Os jornais eram apenas artigo de consumo, material secundário de valor relativo ou duvidoso. Rádio só servia para a previsão do tempo. Televisão era para empregadinhas domésticas. No mínimo, havia sempre a diferença entre informação genuína e sua versão pasteurizada para o gosto do povão. Hoje, fico besta de ver a confiança total, a credulidade beócia com que homens letrados de primeiro escalão tomam os jornais e a TV como base de sua visão do mundo, chegando a pôr em dúvida qualquer dado de fonte primária que não tenha sido referendado pela Folha ou pelo Jornal Nacional.

Uma vez, discutindo com um militar de alta patente que, para cúmulo, tinha sido oficial de informações, lhe perguntei se tinha lido tais ou quais livros, básicos para o assunto que estávamos debatendo. Não, ele não lera nenhum. “Então de onde o senhor tira suas informações?”, perguntei. E ele, com a cara mais bisonha: “Eu leio jornal, uai.” Uai digo eu. Sou mesmo o remanescente de uma raça extinta. Não é à toa que o meu nome, de origem norueguesa, quer dizer “sobrevivente”. Com freqüência sinto que já morri, que minha alma atravessou os mundos, que voltei do além e estou tentando conversar com indiozinhos recém-nascidos, ainda perdidos no seu acanhado ambiente terrestre, persuadidos de que a floresta é o cosmos.

Quando você abre a seção de opiniões de um jornal, ou mesmo a parte cultural, não encontra nada ali que não seja a tradução, em idéias – ou arremedos de idéias –, do universo de fatos que consta das páginas noticiosas do mesmo jornal; e, quando lê as notícias, elas confirmam essas mesmas opiniões. Nas universidades, nas entrevistas de TV, nos debates do Parlamento, nada se ouve que não seja a ampliação, ou melhor, o inchaço vegetativo desse material. É tudo uma redundância perfeita, circular, fechada, repetitiva e e eternamente autofágica. Qualquer novidade autêntica, qualquer elemento de fora que ali se introduza é expelido por um batalhão de anticorpos que o devolvem às trevas da inexistência. Ninguém sabe de nada que os outros já não saibam. Ninguém diz nada que os outros já não tenham dito ou estejam ansiosos para dizer. Curiosamente, para quem vive dentro dessa atmosfera, a rarefação mesma do seu conteúdo é fonte de uma tremenda sensação de segurança. A ignorância geral confirma as ignorâncias individuais, que por sua vez a confirmam de volta, produzindo uma impressão de generalizada onissapiência. Daí esse fenômeno impressionante, tipicamente brasileiro, do qual não se encontra similar no mundo: o intelectual acadêmico radicalmente apedeuta, semi-analfabeto, ignorante até do idioma, que é consultado sobre mil e um assuntos, faz discípulos e se torna uma referência indispensável, um maître à penser, um guru.

É claro que as coisas se passam de modo diverso nos EUA. Aqui as revistas de opinião e análise são tantas que até os comentaristas de TV têm de se manter mais ou menos no nível delas ou ser desmoralizados pelo primeiro entrevistado. E mesmo os políticos que têm interesse em reforçar o prestígio da grande mídia para ser em troca reforçados por ela sabem que é tudo um teatro. Uma coisa é gostar de aparecer no New York Times, outra coisa é tomar decisões com base no que ele publica. E a fiscalização em cima da grande mídia é tão cerrada, que ninguém acima do nível médio da população vai acreditar no que sai num jornal ou noticiário de TV sem primeiro conferir a palavra dele com a de seus respectivos sites de media watch. O decréscimo irrefreável na tiragem dos grandes jornais, paralelo ao crescimento do jornalismo eletrônico, não reflete só uma mudança tecnológica, mas a preferência inevitável dada ao meio que permite a mais rápida comparação de uma variedade de fontes e suas respectivas análises. Na tela do computador você pode ler uma notícia em quinze versões diferentes em questão de minutos. Nem mesmo a televisão permite isso: os noticiários televisivos não são sincronizados, e quando o são você não pode assistir a vários deles ao mesmo tempo sem perder nada. No computador você vai e volta entre dez, vinte, trinta páginas de notícias, captando rapidamente a pluralidade das versões e dos enfoques. Daí a tendência da mídia impressa de apostar cada vez mais nos artigos longos, de análise, cuja leitura é mais fácil no papel do que na tela (o que não impede que sejam também reproduzidos simultaneamente na internet), ou então nas colunas diárias, ou semidiárias, onde o leitor se acostuma à voz e ao tom dos seus articulistas preferidos (digo voz porque muitas colunas são lidas também no rádio). E esses colunistas são em geral ótimos, dominadores perfeitos da língua inglesa, escritores na acepção plena do termo, sempre trazendo alguma novidade que pelo menos infunde vida na discussão geral.

No Brasil, ao contrário, estes artigos de página inteira do Diário do Comércio são exceções notáveis. No geral predomina cada vez mais o jornalismo em pílulas, fragmentos minimalistas comprimidos nas dimensões apropriadas a um público para o qual a leitura é um suplício (e do qual o modelo supremo, declarado e confesso, é o próprio presidente da República). Nesse recinto exíguo, não há espaço para você provar nada – o máximo que se pode é resumir uma opinião solta, isolada, desprovida da menor justificação: acho isto, acho aquilo, gosto de tal coisa, odeio tal outra. E ponto final. A idéia de demonstração, de investigação, de prova e contraprova, já desapareceu da cabeça do público ao ponto de qualquer tentativa de argumento mais longo parecer embromação ou pedantismo. Quando se contesta alguma coisa, são apenas preferências, um “adoro” oposto a um “abomino” ou vice-versa, ou então pontos de detalhe, sem relevância para a discussão central. Aliás não há nenhuma discussão central. O que há é apenas troca de afeições e desafeições na periferia do mundo.

O pior é que, quando tento explicar isso aos americanos, eles não entendem. Eles só concebem duas coisas: ou uma mídia amputada, manietada e uniformizada pela censura oficial, ou a profusão variada de pontos-de-vista que se vê numa democracia normal. Não atinam que num país possa haver tantos jornais, tantas revistas, tantos canais de TV, tantas universidades, tantos sites de jornalismo eletrônico, e nenhuma discussão efetiva. Quando digo que no Brasil não só a opinião divergente é marginalizada, mas as provas que fundamentam a divergência são expulsas da discussão, eles me perguntam se há uma KGB controlando tudo. Quando informo que não, eles já não sabem mais do que estou falando. O puro poder da burrice, a ditadura espontânea da ignorância auto-satisfeita, está aquém da sua imaginação. A KGB mental brasileira não pode existir no mundo conhecido: só no planeta Brasil. É um mistério cósmico incompreensível.

A Folha de S. Paulo é um gordo panfleto pró-comunista, mentiroso até à alucinação. Só leio essa porcaria para avaliar diariamente os progressos da mendacidade nacional, o crescimento canceroso da sem-vergonhice intelectual brasileira. Quando esse jornal choraminga que seus direitos foram violados por agentes do governo, ele se esquece de todos os serviços que ele próprio vem prestando à instalação de uma ditadura comunista no país, mediante a difamação incessante de todo anticomunismo e a omissão sistemática de notícias que possam levar o leitor a perceber as coisas com suas devidas proporções.

O sr. Otávio Frias Filho parece querer o comunismo para todo mundo e o capitalismo só para ele. Talvez ache possível tornar comunista o Brasil inteiro e conservar uma ilha de liberdade de mercado na Alameda Barão de Limeira.

Várias vezes por semana, seu jornal feito por e para meninos pó-de-arroz vem com algum novo escândalo antimilitar ou antiamericano. Sempre e invariavelmente é mentira. Ou é mentira substantiva, alteração material dos fatos, ou é mentira qualitativa, isto é, modificação das proporções e perspectivas. Neste último caso está a notícia alardeada naquele tom de indignação que já se tornou no Brasil a carteirinha oficial do sindicato dos virtuosos:

“Documentos secretos da diplomacia americana só agora revelados mostram que o governo Richard Nixon (1969-74) sabia da tortura no Brasil em 1973-74. O embaixador dos EUA em Brasília, John Crimmins, sugeriu que Nixon não cortasse créditos ao Brasil como retaliação aos abusos. Isso poderia atrapalhar a estratégia de ‘influenciar a política brasileira’ e a venda de armas ao país. O embaixador… recomendou que o governo Nixon não usasse contra o governo brasileiro o art. 32 da Lei de Assistência ao Estrangeiro, embora o próprio relatório reconhecesse que isso era legalmente possível. Por essa regra, os EUA poderiam cortar créditos financeiros ao Brasil em retaliação a supostos abusos contra direitos humanos… A pressão americana contrária aos abusos só passou a ocorrer na administração de Jimmy Carter (1977-1981).” [Cf. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1401200706.htm .]

Quer dizer: o malvado governo americano poderia amarrar as mãos dos torturadores brasileiros, mas se recusou a fazê-lo porque estava mais interessado em ganhar dinheiro vendendo armas para eles.

Para começar, a Folha assume como verdade objetiva os números fornecidos pelas entidades pró-comunistas (376 mortos), mas atribui aos “críticos dos grupos de esquerda” a contagem das vítimas do terrorismo. E fornece o número total dos comunistas mortos ao longo de todo o tempo da ditadura, mas pára a contagem de suas vítimas em 1974, obtendo 119 cadáveres. Na lista dos esquerdistas, não faz a distinção entre os que morreram em tiroteios, em acidentes ou assassinados nas prisões, dando portanto a impressão de que todos foram objetos inermes da violência estatal. Ao falar das vítimas dos comunistas, nem de longe menciona casos como o do tenente Alberto Mendes Júnior e dos militantes condenados como ‘traidores’, que morreram amarrados. A impressão que fica é que jovens idealistas de esquerda lutavam nas ruas, de peito aberto, enquanto o governo covarde, escondido em porões sinistros, se ocupava sobretudo de maltratar gente desarmada. Isso não é jornalismo: é novela da Globo, é construção ficcional, é mito.

Como invariavelmente acontece, as instituições fornecedoras de dados sobre os mortos da ditadura são apresentadas como entidades religiosas, culturais ou de direitos humanos, sem qualquer alusão à sua identidade ideológica mesmo quando são abertamente partidárias e militantes, ao passo que as fontes de informações sobre vítimas do terrorismo são mostradas pela cor ideológica, mesmo quando não têm nenhuma atividade política. O leitor sai acreditando que tudo o que se diz contra a ditadura vem de fontes neutras, imparciais e idôneas, ao passo que toda acusação aos comunistas vem com a marca do viés ideológico. É a exata inversão da realidade.

A avaliação quantitativa também é sempre errada. À luz do senso das proporções, 376 baixas ao longo de vinte anos de combates com um governo militar num país de extensões continentais são um número incrivelmente modesto, não só em comparação com qualquer guerrilha do mundo, mas em comparação com a repressão cubana à população desarmada. Fidel Castro matava essa quantidade de pessoas a cada dois meses, aliás com a ajuda dos terroristas brasileiros, que nunca viram nisso nada de mau. Não convém esquecer que a ditadura nacional não fez mais de dois mil prisioneiros políticos ao longo de duas décadas, enquanto Cuba, com uma população muito menor que a do Brasil, chegou a ter cem mil simultaneamente. Antes de fingir escândalo ante os números da repressão no Brasil, a Folha deveria considerar a alternativa que os terroristas ofereciam. A alternativa democrática inexistia. A luta era entre a ditadura mais sanguinária do continente, que financiava e coordenava as guerrilhas desde Havana, e um governo autoritário improvisado para deter, com a menor violência possível, a ascensão comunista decidida a matar um número ilimitado de pessoas “hasta la victoria siempre”.

A matéria também não fornece os pontos de comparação necessários para dar aos fatos a sua significação devida. Os EUA jamais cortaram créditos para a URSS ou a China, onde os prisioneiros desarmados que sofriam tortura e homicídio estatal se contavam aos milhões. Por que deveria fazê-lo no caso de um país onde as supostas vítimas não passavam de algumas dezenas, sendo a quase totalidade deles terroristas surpreendidos em plena ação homicida?

A perspectiva histórica dos fatos também é totalmente falsificada. A impressão transmitida ao leitor é que o governo de Washington, controlador onipotente da ditadura brasileira, não fez o que podia para refrear a violência de seus paus-mandados locais, prontos a ceder à primeira ameaça de sanções comerciais. Na verdade, o prestígio americano ante o governo de Brasília estava num dos pontos mais baixos da sua história. Por iniciativa do chanceler Azeredo da Silveira, um esquerdista histórico, os altos postos do Itamaraty foram todos preenchidos por simpatizantes comunistas – logo apelidados significativamente de “barbudinhos” pelos seus colegas, numa alusão direta à pletora de barbas por fazer na elite revolucionária cubana. O presidente Geisel, ansioso por marcar uma diferença, tendia nitidamente a uma politica terceiromundista e anti-americana, aproximando-se da China, dando preferência à Alemanha como fornecedora de materiais para a construção da malfadada usina nuclear de Angra dos Reis e, para cúmulo, fornecendo armas e dinheiro para ajudar Cuba a invadir Angola – a decisão mais hostil aos EUA já tomada por um presidente brasileiro antes ou depois disso, perto da qual as bravatas “nacionalistas” de Jânio Quadros e João Goulart se reduzem a meros puns diplomáticos. Sanções comerciais, àquela altura, soariam como provocações intoleráveis. Longe de refrear a violência estatal, só criariam ainda mais hostilidade para com os EUA. Nenhum governo do mundo correria esse risco para defender algumas dúzias de indivíduos, aliás seus inimigos. A impressão de escândalo moral que a Folha quer criar em torno das mensagens do embaixador Crimmins é inteiramente forçada e artificiosa.

Quanto à venda de armas para o Brasil, que a Folha apresenta como o motivo interesseiro por trás da decisão americana de não interferir na situação local, é preciso ser muito idiota para acreditar que ela tivesse grande valor comercial para os EUA, ao ponto de determinar decisões diplomáticas por mero desejo de dinheiro. Esse comércio era importante porque, àquela altura, era o último ponto de contato onde o governo americano e os militares brasileiros tinham interesses comuns, sendo absolutamente necessário preservá-lo como base para uma possível reconstrução das boas relações entre os dois países. Qualquer embaixador com QI superior a 12 recomendaria a seu governo o que Crimmins recomendou a Nixon. Tentar enxergar aí motivos de cobiça é malícia pueril, o equivalente folhístico da inteligência.

E Jimmy Carter não pressionou as autoridades brasileira por estar sinceramente preocupado com os direitos humanos. Ele sempre foi um protetor de ditadores comunistas sanguinários. O que ele quis impedir foi a total derrota da guerrilha latino-americana, que, graças a ele, sobreviveu ao período de repressão e floresceu ilimitadamente nas décadas seguintes, acabando por criar a maior força militar latino-americana e elevar-se à condição de dominadora monopolística do tráfico de drogas no continente com a ajuda do Plano Colômbia de Bill Clinton.

Lição repetida

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 18 de janeiro de 2007

Se vocês ainda têm dúvidas de que existe neste país um poderoso e bem armado esquema revolucionário, subordinado ao Foro de São Paulo, associado às Farc, protegido pelo governo federal e pronto para dominar num instante vastas parcelas do território nacional, leiam o ofício número 052/P2/2006 enviado pela Brigada Militar do Rio Grande do Sul à 3ª. Vara da Comarca de Carazinho em 18 de maio de 2006.

Entre os municípios gaúchos de Palmeira das Missões, Iraí, Nonoaí, Encruzilhada Natalino, Pontão e Passo Fundo, há 31 acampamentos do MST, articulados uns com os outros como uma rede de vasos comunicantes. Com técnicas aprendidas da guerrilha colombiana, há anos eles mantém a população local sob a constante ameaça de roubos e invasões, mas de há muito a coisa já passou da etapa das ações avulsas. Segundo a Brigada Militar, “o arrojado plano estratégico do MST, sob a orientação de operadores estrangeiros, é adotar nessa rica e produtiva região o método de controle territorial branco tão lucrativamente usado pelas Farc na Colômbia”.

O primeiro passo seria dominar a zona entre as rodovias RS-324 e BR-386, avançando depois até à fronteira com o Uruguai e adquirindo o controle total do tráfego rodoviário nessa área.

Perigo idêntico vai crescendo em outras regiões. Um estudo feito pelo advogado paulista Cândido Prunes, mapeando criteriosamente os acampamentos do MST no nordeste do país, mostrou que as zonas ocupadas não são predominantemente locais de plantio, mas áreas estratégicas à beira das rodovias.

Mas, desde que existem guerras e revoluções, a fórmula da sua preparação é a mesma: robustecer os meios de ataque e enfraquecer as defesas do adversário. Esta segunda parte consiste basicamente em privá-lo das informações que ele necessitaria para articular a resistência e alimentá-lo, ao contrário, de mentiras sedutoras que o induzam à passividade suicida ante o desenlace sangrento que se aproxima.

Os planos revolucionários do MST seriam inofensivos perante uma sociedade consciente do perigo comunista e organizada para enfrentá-lo. A sociedade brasileira não é nada disso. Mantida em estado de alienação e ignorância, ela acredita que o comunismo morreu, que o Foro de São Paulo é “teoria da conspiração” e que as nossas instituições são indestrutíveis. Os “formadores de opinião” que a estupidificaram para torná-la indefesa são colaboradores ativos da revolução em marcha. Aplanando o caminho para a tragédia, criaram toda uma cultura da rendição, onde qualquer veleidade de anticomunismo é condenada como crime hediondo ou pelo menos sintoma de doença mental. Tiraram da vítima o desejo de resistir. Foi a lição que aprenderam de Antonio Gramsci e do próprio Lênin.

Mas quem escreveu a conclusão deste artigo foi Winston Churchill, meio século atrás: “A incapacidade de previsão, a falta de vontade para agir quando a ação deveria ser simples e efetiva, a escassez de pensamento claro, a confusão de opiniões até o momento em que o salve-se quem puder soa o seu gongo estridente – tais são os traços que constituem a infindável repetição da História.”

O Foro de São Paulo, versão anestésica

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de janeiro de 2007

Depois de esconder por dezesseis anos a existência da mais poderosa entidade política latino-americana, a mídia chique deste país, vencida pela irrefreável divulgação dos fatos na internet, trata agora de disfarçar, como pode, o mais torpe e criminoso vexame jornalístico de todos os tempos. O expediente que usa para isso é ainda mais depravado: caluniar, difamar, sujar a reputação daqueles poucos que honraram os deveres do jornalismo enquanto ela não se ocupava senão de prostituir-se, vendendo silêncio em troca de verbas estatais de propaganda.

Envergonhada de si mesma, ela não tem nem a dignidade de citar nominalmente essas honrosas exceções. Designa-as impessoalmente, fingindo superioridade, mediante pejorativos genéricos. O mais comum é “radicais de direita”. Encontro-o de novo no artigo “Os limites de uma onda esquerdista”, assinado por César Felício no jornal Valor no último dia 12.

O autor é uma nulidade absoluta, e eu jamais comentaria uma só linha da sua fabricação se as nulidades não se tivessem tornado, num jornalismo de ocultação, os profissionais mais necessários e bem cotados. Por favor, não me acusem de caçar mosquitos. Compreendam o meu drama: nas presentes circunstâncias, a recusa de falar de nulidades me deixaria totalmente desprovido de material nacional para esta coluna.

A primeira coisa que tenho a dizer a esse moleque é bem simples: Radical de direita é a vó. Antigamente chamava-se por esse qualificativo o sujeito que advogasse a matança sistemática de comunistas como os comunistas advogam e praticam a matança sistemática de populações inteiras. Hoje em dia, para ser carimbado como tal, basta você ser contra o aborto ou o casamento gay. Basta você achar que o Foro de São Paulo existe e é perigoso. Basta você fazer as contas e notar que centenas de prisioneiros morreram de tortura na Guantanamo cubana e nenhum na americana. Basta você apelar à matemática elementar e concluir que a guerra do Iraque matou muito menos gente do que o regime de Saddam Hussein sob os olhos complacentes da ONU. Se você incorre em qualquer desses pecados mortais, lá vem o rótulo infamante grudar-se na sua pessoa indelevelmente, como marca de escravo fujão ou ferrete de gado. E não vem por via de nenhum jornaleco de partido, de nenhum panfleto petista. Vem pela Folha de São Paulo, pelo Globo, pelo Estadão, pelo jornal Valor – os órgãos da burguesia reacionária, segundo o site oficial do PT.

Que é que posso concluir disso, objetivamente, senão que a esquerda radical conseguiu impor à grande mídia a sua escala de mensuração ideológica e o correspondente vocabulário, agora aceitos como opinião centrista, equilibrada, mainstream, enquanto as opiniões que eram da própria grande mídia ontem ou anteontem já não podem ser exibidas ante o público porque se tornaram politicamente incorretas?

Será extremismo de direita concluir que o eixo, o centro, se deslocou vertiginosamente para a esquerda, criminalizando tudo o que esteja à direita dele próprio? Será extremismo de direita concluir que a única direita admitida como decente na mídia chique é o tucanismo – abortista, gayzista, quotista racial, desarmamentista, politicamente corretíssimo, padrinho do MST e filiado à internacional socialista, além de bettista e boffista, quando não abertamente anticristão? Será extremismo direitista notar que o traço mais saliente dessa direita bem comportadinha é a abstinência radical de qualquer veleidade anticomunista? Será extremismo de direita entender que esse fenômeno é a manifestação literal e exata da hegemonia tal como definida por Antonio Gramsci? Será extremismo de direita concluir que o establishment midiático deste país é, no seu conjunto, um órgão da esquerda militante mesmo nos seus momentos de superficial irritação antipetista, quando jamais proferiu contra o partido dominante uma só crítica que não viesse de dentro da esquerda mesma e que não fosse previamente expurgada de qualquer vestígio de conteúdo ideológico direitista?

Qualquer pessoa intelectualmente honesta sabe que um juízo de fato não pode ser derrubado mediante rotulação infamante. Tem de ser impugnado pelo desmentido dos fatos. Se quiser rotulá-lo, faça-o depois de provar que é falso. Não antes. Não em substituição ao desmentido. Ora, o tal Felício, em vez de desmentido, fornece uma brutal confirmação. Vejam só:

O grupo que se reúne a partir de hoje em San Salvador… atende pelo nome de ‘Foro de São Paulo’ e nasceu sob o patrocínio do PT, em 1990. Os encontros anuais não costumam chamar muita atenção, a não ser de certos radicais de direita no Brasil.”

Ora, como é possível que encontros esquerdistas anuais repetidos ao longo de uma década e meia, com centenas de participantes, entre os quais vários chefes de Estado, não chamem atenção exceto de radicais de direita? Ninguém na esquerda prestou atenção ao Foro de São Paulo? O sr. Lula fez um discurso presidencial inteiro a respeito sem prestar a mínima atenção à entidade da qual falava? Antes disso, quando presidia pessoalmente as sessões da entidade até 2002, não lhes prestou nenhuma atenção? Entrava em transe hipnótico e balbuciava mensagens do além, sem se lembrar de nada ao despertar? Os jornalistas de esquerda que, às dezenas, compareceram aos debates, foram lá por pura desatenção, dormiram durante as assembléias e voltaram para casa sem coisa nenhuma para contar? O sr. Bernardo Kucinsky, um dos fundadores da entidade, que emocionado assistiu ao nascimento dela num encontro entre Fidel Castro e Lula, não prestou a mínima atenção àquele momento supremo da sua vida de militante esquerdista? Pago com dinheiro público para relatar aos eleitores os atos presidenciais, calou-se por mera distração, e também por mera distração guardou os fatos para contá-los depois no seu livro de memórias, onde só os colocou porque não tinham a mínima importância?

Ora, menino bobo, você não sabe a diferença entre a desatenção e a atenção extrema acompanhada de um propósito deliberado de ocultar? Que você seja desprovido do senso da verdade, vá lá. Sem isso não se sobe no jornalismo brasileiro. Mas será que você precisa também desprover-se do senso do ridículo ao ponto de tentar minimizar a importância do Foro e logo em seguida, citando documento oficial da entidade, alardear que “na primeira reunião do grupo, em 1990, os integrantes estavam no governo em um único país: Cuba. Hoje desfrutam o poder na Venezuela, Brasil, Bolívia, Nicarágua, Argentina, Chile, Uruguai e Equador”? Você acha mesmo que a organização que planejou e dirigiu a mais espetacular e avassaladora expansão esquerdista já observada no continente é um nada, um nadinha, no qual só radicais de direita ou teóricos da conspiração poderiam enxergar alguma coisa?

Na verdade, o próprio Felício enxerga ali alguma coisa. Ele cita o documento oficial: “Passamos a controlar uma cota de poder, mas as outras cotas continuam sob controle das classes dominantes. Os chamados mercados, as grandes empresas de comunicação, os setores da alta burocracia do Estado, os comandos centrais das Forças Armadas, os poderes Legislativo e Judiciário, além da influência dos governos estrangeiros, competem com o poder que possuímos.”

Ou seja: a entidade que já domina os governos de nove países não admite, não suporta, não tolera que parcela alguma de poder, por mais mínima que seja, esteja fora de suas mãos. Nem mesmo as empresas de comunicação e o judiciário, sem cuja liberdade a democracia não sobrevive um só minuto. Com a maior naturalidade, como se fosse uma herança divina inerente à sua essência, o Foro de São Paulo, com a aprovação risonha do nosso partido governante, reivindica o poder ditatorial sobre todo o continente.

Felício lê esse documento assim:  “Os limites a um poder absoluto parecem incomodar os participantes do encontro.” Parecem, apenas parecem. Quem ficaria alarmado com aparências, senão radicais de direita? Afinal, eles vivem enxergando comunistas embaixo da cama, não é mesmo?

Para tranqüilizar a população, Felício trata de lhe mostrar que no Foro não há socialismo nenhum, apenas o bom e velho populismo nacionalista, tão difamado pelos agentes do imperialismo. “Um mesmo discurso estava presente na oposição a Perón e a Getúlio nos anos 40 e 50. Reapareceu, quase igual, no tipo de ataque recebido ano passado por Lopez Obrador no México e Evo Morales na Bolívia.

A circunstância de que, ludibriados por milhares de Felícios, até membros da oposição temam dar nome aos bois, preferindo falar de “populismo” em vez de comunismo, é usada como prova de que o Foro não é uma organização comunista. O fato é que as idéias e as pessoas dos velhos populistas jamais aparecem citadas nos documentos do Foro como exemplos a ser imitados. Ao contrário, os apelos à tradição revolucionária comunista ressurgem a cada linha, com todos os seus heróis e símbolos, com todos os cacoetes lingüísticos medonhos do jargão marxista-leninista mais típico e obstinado, acompanhados da declaração explícita, infindavelmente repetida, de que a meta é o socialismo. Mas, decerto, todos os participantes do Foro, todos aqueles tarimbados militantes revolucionários treinados em Cuba, na China e na antiga URSS, estão equivocados quanto à sua própria ideologia e metas. Eles apenas pensam que são comunistas, socialistas, marxistas. Felício é quem, penetrando com seus olhos de raios-x no fundo das almas deles, sabe que não são nada disso. São getulistas que se ignoram.

A prova? Ele não se recusa a fornecê-la. É esta: “Antes de ser uma verdadeira marcha ao socialismo, a ofensiva de Chávez… sugere a coroação de um processo de concentração de poder ”. Entenderam a lógica profunda? Se é concentração de poder, não é socialismo. Pena que ninguém avisou disso Marx, Lênin, Stalin, Mao, Fidel e Che Guevara. Todos eles sempre entenderam, ao contrário, que a concentração de poder é a única via para o socialismo, é a essência mesma do processo revolucionário. Mas talvez estivessem enganados, tanto quanto a turminha do Foro. Quem entende do negócio é César Felício.

No tempo em que havia jornalismo no Brasil, um sujeito como esse não seria designado para cobrir nem partida de futebol de botão. Hoje ele é uma espécie de modelo, reproduzido às centenas em todas as redações. O resultado é óbvio. Faça um teste. Segundo pesquisa da Folha de São Paulo, a opinião majoritária dos brasileiros é acentuadamente conservadora. É contra o casamento gay, contra o aborto, contra as quotas raciais, contra o desarmamento civil. É contra tudo o que os Felícios amam. É até a favor da pena de morte para crimes hediondos. E confia infinitamente mais nas forças armadas do que na classe jornalística que as difama sem cessar. Quantos jornalistas, nas redações das empresas jornalísticas de grande porte, se alinham com essa opinião majoritária? Não fiz nenhuma enquete, mas, por experiência pessoal, afirmo: poucos ou nenhum. A leitura diária dos jornais confirma isso da maneira mais patente.

A opinião pública brasileira não é refletida nem representada pela grande mídia. Não tem direito a voz, a não ser por exceção raríssima concedida a algum colaborador ocasional só para depois ser exibida como exemplo de aberração extremista, felizmente compensada pela pletora de articulistas serenos, normais e equilibrados que igualam George W. Bush a Hitler e Abu-Ghraib a Auschwitz.

A idéia mesma de que uma mídia só pode ser equilibrada quando reflete proporcionalmente a divisão das correntes de opinião no país já desapareceu por completo da memória nacional. O simples ato de enunciá-la tornou-se prova de direitismo radical. Resultado: a elite microscópica de tagarelas esquerdistas que domina as redações (não mais de duas mil pessoas) se permite tomar a sua própria opinião como medida da normalidade humana, condenando como patológicas e virtualmente criminosas as preferências gerais da nação.

Quem se coloca em tais alturas está automaticamente liberado de prestar quaisquer satisfações à realidade. Não quer conhecê-la, quer transformá-la. Para transformá-la, não é preciso mostrar os fatos às pessoas: é preciso alimentá-las de crenças imbecis que as induzam a se comportar da maneira mais adequada para favorecer a transformação. Da classe empresarial que lê o jornal Valor, que é que se espera? Que permaneça idiotizada e passiva, embriagada de falsa segurança, incapaz de mobilizar-se em tempo para se opor à onda revolucionária que vai submergindo o continente. Foi para isso que os Felícios lhe negaram por dezesseis anos o conhecimento do Foro de São Paulo. É para isso que, hoje, não podendo mais levar adiante a operação-sumiço, apelam à operação-anestesia, chamando-a, cinicamente, de jornalismo. E são pagos para fazer isso pelos próprios empresários de mídia, aqueles mesmos cujas empresas o Foro de São Paulo promete calar ou expropriar junto com todos os demais instrumentos de exercício da liberdade, num futuro mais breve do que todos imaginam.

P. S. – Mal saiu o artigo da semana passada, começaram a chover na minha caixa postal mensagens de amigos protestantes que reclamavam de eu haver incluído John Wycliff entre os pioneiros das ideologias revolucionárias. Eu não me lembrava de ter escrito nada de John Wycliff, mas, quando fui ver, notei, horrorizado, que o nome dele estava mesmo lá, em lugar do de John Knox, este sim um revolucionário. Peço desculpas a todos por essa distração lamentável.