Reação débil e tardia

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil,20 de setembro de 2007

Em 17 de setembro de 1998, no Jornal da Tarde de São Paulo, denunciei a propaganda comunista mentirosa e emburrecedora que, a pretexto de ensinar História, o governo do sr. Fernando Henrique Cardoso — sim, o governo tucano — espalhava pelas escolas brasileiras. Mencionei especialmente, entre outras obras usadas para esse fim, a Nova História Crítica, de Mário Schmidt (v. ).

Não me limitei a expor esse e inumeráveis fatos similares. Tanto em livros e conferências quanto em artigos, mostrei, com todo o rigor possível, que não se tratava de episódios isolados, mas de uma imensa articulação estratégica baseada “revolução cultural” de Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, da qual o então presidente da República se gabava de ser ainda melhor conhecedor e implementador do que seus amigos, concorrentes e depois sucessores petistas. Segundo essa proposta, o movimento revolucionário deveria conquistar o controle hegemônico da cultura, do imaginário social e dos debates públicos antes de se aventurar a introduzir mudanças radicais na política econômica ou na estrutura de poder.

Decorridos nove anos, O Globo finalmente conseguiu notar a existência do livro acima mencionado – como se fosse o único do mesmo teor — e, ao comentá-lo na coluna de Ali Kamel, ainda se gaba de fazê-lo “sem incomodar o leitor com teorias sobre Gramsci, hegemonia etc.”

Se até um jornalista competente como Ali Kamel leva quase uma década para notar o que está acontecendo, se o percebe somente por um ângulo isolado e se ao falar do assunto ainda se sente inibido de pedir ao leitor um pequeno esforço intelectual para apreender o conjunto de uma situação que nesse ínterim evoluiu do perigoso ao catastrófico, tão persistente letargia pode parecer estranha, mas não para mim. Sem medo de incomodar, informo aos interessados que hegemonia é precisamente isso: é dominar o fluxo das idéias ao ponto de controlar a velocidade de percepção do adversário, de modo que ele só note o perigo quando já não tenha mais tempo nem força para reagir.

De 1998 até agora, a ideologia comunista que entrou pelos livros de História se alastrou pelo sistema de ensino inteiro e infectou todas as disciplinas — até matemática e educação física –, de modo que para as novas gerações de estudantes brasileiros tudo o que escape da cosmovisão marxista se tornou inexistente e impensável. Como previa Gramsci, o “senso comum modificado” é algo de mais profundo e arraigado do que a mera crença consciente.

Ao longo desses anos, as organizações Globo, em parte iludidas pelo mito da morte do comunismo, em parte manipuladas desde dentro por agentes esquerdistas, não fizeram outra coisa senão colaborar com o empreendimento gramsciano, cultuando os santos do panteão comunista e glamurizando tudo aquilo que Roberto Marinho detestava.

Não espanta que, agora, ao emergir pouco a pouco de um longo torpor mental, o grupo não consiga esboçar senão gestos de reação débeis e acovardados, dizendo mui polidamente umas palavrinhas pró-capitalistas pela boca do sr. Eduardo Gianetti da Fonseca ou fazendo na coluna de Ali Kamel um eco parcial, tímido e quase inaudível a minhas denúncias de uma década atrás.

Também não espanta que, como prêmio de sua paternal solicitude para com os esquerdistas, a Globo agora receba deles toda sorte de insultos, acompanhados da ameaça de fazer com ela o que Hugo Chávez fez com a RCTV. Vocês não imaginam com que satisfação os comunistas atiram ao lixo um “companheiro de viagem” quando não precisam mais dele.

 

Em nome do crime

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 19 de setembro de 2007

Em 31 de julho de 2000 escrevi na revista Época:

A Constituição da União Soviética punia o homicídio com dez anos de cadeia, e com pena de morte os crimes contra o patrimônio do Estado… Sob a inspiração de intelectuais alucinados, a escala de valores da Constituição soviética tornou-se o modelo da atitude brasileira perante a criminalidade: ódio e perseguição implacável aos que desviam dinheiro público, passividade atônita e paternal complacência ante os assassinos e quadrilheiros armados.”

Que é que mudou desde então?  Muita coisa. Na época, a elite política esquerdista era a personificação mais vistosa e barulhenta do moralismo acusatório. Era ela que ligava os megafones da mídia, era ela que manipulava os repórteres, transformando suspeitas em notícias e depois usando as notícias como pretextos para abrir CPIs. Era ela que trazia as massas para a rua, exigindo cabeças. Foi ela que criou a maior farsa cívica da história nacional, induzindo o eleitorado a expulsar da presidência, entre lágrimas de comoção patriótica e explosões de grandiloqüência parlamentar, um homem que depois, tarde demais, a Justiça provou ser totalmente inocente.

 Hoje em dia, é ela própria o alvo das denúncias – bem mais graves e incomparavelmente mais sólidas do que aquelas que ela inventou contra Collor de Melo.

 É uma mudança radical, um giro de cento e oitenta graus na rota da massa fecal voadora.

Mas, em primeiro lugar, é uma mudança tardia. No começo dos anos 90, quando o PT vociferava nas CPIs contra a sociedade imoral, ele já ia construindo, discretamente, sua própria máquina de corrupção, incomparavelmente maior do que aquelas que os Anões do Orçamento teriam podido sequer imaginar. Não faltou quem o denunciasse por isso, mas não obteve a audiência que merecia. A crença geral na santidade petista estava em plena ascensão, os fatos nada podiam contra ela. Não por coincidência, o personagem que então brilhava no papel de tribuno máximo da dignidade, e que o fazia com tanto mais eficiência por ser o coordenador da rede de espiões petistas infiltrados por toda parte, tornou-se depois ainda mais famoso como mentor e chefe do Mensalão. As duas operações foram obviamente simultâneas e interligadas: enaltecer a moralidade e destruí-la. Enaltecê-la para melhor destruí-la. Tudo isso podia ter sido evitado se a mídia e os políticos ditos “de direita” não tivessem feito ouvidos de mercador a Paulo de Tarso Venceslau e redobrado a aposta louca na idoneidade dos bem-falantes.

Em segundo lugar, a mudança é só na direção do ataque, não nos seus fundamentos. Os que denunciam o PT continuam a fazê-lo segundo o mesmo critério de falsa moralidade que aprenderam com ele: berram contra o desvio de dinheiro, calam-se ante os rios de sangue que a aliança macabra da esquerda com o banditismo continental faz rolar nas ruas de São Paulo e do Rio. Afetando rebeldia e inconformidade ante o partido governante, são ainda seus escravos ideológicos, incapazes de raciocinar fora do esquema mental soviético que, sem esse nome, se impregnou na cultura e se tornou senso comum. Ora, esse esquema é ainda mais criminoso do que todos os crimes, pois é ele que os gera e dissemina.

Toda a tagarelice antipetista do mundo nada poderá contra o PT enquanto não se libertar desse vício ideológico hediondo que, ao denunciar os criminosos, não sabe fazê-lo senão em nome do Império do Crime.

Excesso de delicadeza

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de setembro de 2007

Ainda há quem seja otário o bastante para, observando a fidelidade conjugal que no fim das contas reina entre o governo petista e os banqueiros internacionais, concluir que os comunistas mudaram, se aburguesaram, só pensam em dinheiro e não querem mais saber de revoluções.

Não contesto o direito à ignorância, mesmo radical e completa. Mas por que raios cada um que me aparece com essa idéia cretina tem de expressá-la com ar de sabedoria paternal, como se estivesse desvelando a realidade do mundo ante a minha inexperiência juvenil?

Aos sessenta anos, boa parte dos quais dedicados ao estudo das ideologias revolucionárias, não tenho mais a obrigação de ouvir polidamente essa patacoada arrogante. Respondê-la com palavrões já é delicadeza excessiva da minha parte. O certo mesmo seriam pontapés no traseiro.

Quem quer que tenha estudado a história do movimento revolucionário sabe que comunistas e banqueiros vivem em simbiose, comprovadamente, desde há pelo menos um século. Como no Brasil ninguém estuda nada, cada um se crê no direito de anunciar como novidades explosivas as obviedades centenárias que acabam de lhe chegar aos ouvidos.

O problema é que, quando você não sabe a data das notícias que alardeia, não pode compreender o sentido delas. Se você acha que a conduta do PT prova uma mudança da mentalidade comunista, é porque imagina que os comunistas de antigamente eram diferentes, eram puros idealistas revolucionários que jamais se rebaixariam a jogar o jogo do grande capital financeiro. Então me diga: Quem eram os contatos de Trotski nos EUA quando de sua primeira viagem à América? Quem financiou a construção de toda a indústria pesada soviética, prolongando por décadas a sobrevida de um regime impossível que já nascera moribundo? Quem alimenta de dinheiro toda a esquerda americana e uma infinidadade de movimentos anti-americanos no mundo inteiro? Quem salvou da debacle o Partido Comunista chinês, fomentando do exterior a recuperação de uma economia que até então só crescia em número de mortes por desnutrição?

Se os comunistas deixassem de ser comunistas cada vez que vão para um motel trocar afagos com banqueiros, Lênin teria entrado para a História como comandante do Exército da Salvação.

O caso de amor entre esses dois tipos de criaturas aparentemente incompatíveis tornou-se ainda mais intenso desde que, na década de 20, os teóricos marxistas mais avisados – Georg Lukacs, os frankfurtianos e Antonio Gramsci – saíram gritando que o inimigo primordial a ser destruído não era a economia capitalista, mas “a civilização judaico-cristã”. O programa traçado por eles, que na época parecia distante das preocupações imediatas do militante comunista vulgar (e até agora não chegou ao conhecimento dos idiotas acima referidos), está hoje sendo aplicado em escala planetária, e sua implementação acelerada reflete a colaboração estreita entre o grande capital financeiro e a rede global de organizações comunistas – os dois braços da revolução mundial. Abortismo, desarmamento civil, sex-lib , feminismo, gayzismo, criminalização da moral religiosa, controle estatal da vida privada e tópicos similares são hoje infinitamente mais importantes para a estratégia revolucionária do que as divergências estereotipadas entre políticas econômicas “populistas” e “elitistas” (ou “progressistas” e “neoliberais”). Onde essas divergências monopolizam o espaço das discussões públicas, como acontece no Brasil, é precisamente porque servem para camuflar o essencial, para expulsar da vida pública o conservadorismo genuíno fundado em valores morais e religiosos e para dividir todo o espaço político e cultural entre a esquerda e uma “direita” postiça, criada especialmente para isso, uma articulada à outra de tal modo que, seja pela via

“populista” ou “elitista”, indiferentemente, a mutação revolucionária do mundo continue avançando.

A pessoa mesma do sr. Luís Inácio Lula da Silva, homenageada simultaneamente em Davos por sua conversão à economia de mercado e no Foro de São Paulo por sua fidelidade inalterável ao comunismo, é o símbolo vivo desse acordo essencial, mas os tagarelas que falam dela o dia inteiro, para louvá-la ou para maldizê-la, parece que não enxergam de maneira alguma a identidade do personagem. Também não enxergam, por isso mesmo, a natureza traiçoeira e cúmplice de uma “oposição” que só combate o petismo no campo das discussões econômicas e das cobranças moralistas, abstendo-se de toda crítica ideológica e de toda menção à estratégia comunista maior por trás de tudo; oposição que, uma vez no poder, faz avançar a mutação social e cultural revolucionária em velocidade ainda maior do que poderiam fazê-lo os próprios petistas.

Não por coincidência, mas por um cálculo psicológico muito preciso, cada nova regra “politicamente correta” que se incorpora aos hábitos sociais perde imediatamente sua aparência comunista originária, de modo que os milhões de trouxas submetidos à sua jurisdição se sentem cada vez mais distantes do perigo comunista quanto mais se adaptam ao tipo de cultura revolucionária concebido por Lukacs e Gramsci. É precisamente o que este último chamava de “autoridade invisível e onipresente” do Partido Príncipe. Nunca a palavra “subversão” descreveu tão adequadamente uma estratégia. É a inversão desde baixo, ou, como a chamava Walther Rathenau, a “invasão vertical dos bárbaros”. Enquanto o poder do grande capital permanece intacto, ou até se fortalece, a “revolução cultural” vai invertendo um a um todos os critérios da razão, da moral, do direito, criando em torno de nós uma infinidade de controles sociais opressivos e absurdos que parecem inventados pessoalmente pela Rainha de Copas. E tudo realizado de maneira indolor, insensível. Dentro de poucos anos, o sujeito ser preso por ler em voz alta certos versículos da Bíblia será considerado a coisa mais natural do mundo, e quem quer que diga que a perseguição anti-religiosa é a realização de um velho plano comunista será tido por louco. Perdão: isso não acontecerá dentro de alguns anos. Já está acontecendo agora.

Do ponto de vista econômico, a unidade do processo revolucionário em curso pode ser resumida da seguinte maneira. Pelo menos desde Stálin nenhum economista marxista acredita em estatização total da economia. Todos sabem que um vasto resíduo de economia de mercado é impossível de eliminar. O máximo que se pode fazer, para perseverar na linha de controle estatal concebida por Marx, é concentrar ao máximo o capital e ao mesmo tempo atrelar seus interesses aos de uma elite governante que por sua vez concentre o máximo de poder político. Ora, quem pode estar mais interessado em concentração do capítal do que os concentradores de capital por antonomásia, isto é, os banqueiros internacionais? E quem pode desejar mais concentração de poder político do que os concentradores compulsivos de poder político, isto é, os partidos comunistas? A via da colaboração entre comunistas e monopolistas foi portanto aberta pelo próprio curso natural das coisas, e por esse canal vem fluindo a história do mundo desde há muitas décadas, ante os olhos cegos da multidão – incluídos nela quase todos os “formadores de opinião”, consultores empresariais, analistas estratégicos e demais pessoas iluminadas cujos pareceres custam em geral uns dez mil dólares por hora.

A fusão tornou-se ainda mais acelerada desde que o movimento comunista, graças ao narcotráfico, à exploração genial dos fundos de pensão, ao apoio dos países árabes, à rede de ONGs ativistas que sugam verbas de todos os governos do mundo e às quantias mastodônticas de dinheiro injetadas discretamente na economia ocidental pela KGB desde os tempos de Gorbachov, se tornou ele próprio tão rico quanto a elite bancária, negociando com ela de igual para igual e tendo com ela uma vasta e nebulosa área de interesses comuns onde se tornam praticamente indiscerníveis.

As vítimas do processo são a economia liberal genuína, os valores civilizacionais milenares, a liberdade individual e a consciência religiosa, estranguladas sob controles estatais cada vez mais abrangentes e opressivos, sempre sob as desculpas edificantes da modernização, do interesse público, da proteção ambiental, da eficiência administrativa e — é claro, porca miséria — dos direitos civis. Mas a maior vítima de todas é a inteligência humana, que de tanto ser desviada, ludibriada, anestesiada, vai perdendo vigor a cada dia e se adaptando a um estado crepuscular de obnubilação e semiconsciência.