Acordem

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 01 de novembro de 2007

“Aquilo que disserdes no escuro será ouvido em plena luz; e o que sussurrardes dentro de casa será proclamado do alto dos telhados.” A profecia (Lc., 12:3) não se refere aos miúdos segredinhos da nossa vida diária, mas, literalmente, ao “fermento dos fariseus” (id., versículo 1), a ação oculta dos grandes manipuladores e farsantes.

Essa ação tornou-se ainda mais eficaz e peçonhenta após o advento da mídia moderna, que, iluminando de maneira uniforme frações seletas da realidade, torna automaticamente invisível ou inacreditável o que quer que não esteja ali. O crescimento dos meios de divulgação resulta assim num progresso ainda mais inexorável dos meios de ocultação. Essa perversão congênita da indústria das comunicações exige correções periódicas, das quais a mais admirável, nos últimos tempos, foi a invenção do protocolo html , que possibilitou a criação da rede mundial de computadores e furou espetacularmente o véu do segredo midiático. Graças ao gênio de Tim Berners-Lee, um irlandês católico que entendia muito bem o apelo bíblico à luta contra os principados e as potestades das trevas, podemos saber, por exemplo, que a matança de cristãos no mundo já se tornou rotina, e que, em contrapartida, o cristianismo se expande mais rapidamente do que o Islam ou o ateísmo. Essas duas informações, básicas para a compreensão da presente fase da história humana, estão ausentes da grande mídia porque esta não reflete os fatos e sim as idéias dos intelectuais tagarelas que a orientam, os quais, intoxicados de seu próprio falatório, preferem imaginar que perseguidos são os gays e que o mundo já entrou de mala e cuia em plena era “pós-cristã”.

Graças ao html , temos acesso às estatísticas do SUS, jamais divulgadas em jornais ou noticiários de TV, segundo as quais o ministro da Saúde mente ao alardear uma epidemia de mortes devidas a abortos ilegais. Pela mesma via, descobrimos até – pasmem – que entre as grandes incentivadoras de abortos ilegais estão aquelas mesmas entidades que, alegando querer extirpar essa praga, fazem campanha pela liberalização do aborto. Se essas notícias saíssem nos jornais e na TV, muita gente ilustre iria para a cadeia, acontecimento lamentável que a solicitude dos jornalistas busca evitar. Iria para a cadeia também – ou ao menos perderia o cargo – o sr. presidente da República, que, no seu discurso de 2 de julho de 2005, feito na intimidade para seus companheiros de ideologia (v. Lula, réu confesso), confessou o mais escandaloso crime de responsabilidade já visto neste país, ao admitir que mentiu para o Congresso e para o povo brasileiro, tomando decisões secretas junto com ditadores e com os narcotraficantes das Farc, “sempre utilizando a relação construída no Foro de São Paulo para que pudéssemos conversar sem que parecesse” ( sic ). Como esse discurso, embora reproduzido discretamente no site do próprio governo, jamais saiu na grande mídia, o sr. Luís Inácio continua a salvo do impeachment e o grosso da população a salvo de qualquer contato com a realidade, abrigado num mundo paralelo feito de papel e imagens de TV.

Mas, se vocês querem os três exemplos mais eloqüentes da diferença entre o mundo da mídia e o mundo como tal, cliquem os seguintes endereços na internet: video.google.com, youtube.com. Não vou nem lhes dizer do que se trata. Façam a experiência e acordem.

A inversão revolucionária

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de outubro 2007

Recentemente, o deputado democrata Harry Reid, na ânsia de atribuir crimes hediondos às tropas americanas sediadas no Iraque, levou à Câmara, com grande estardalhaço de mídia, o depoimento horripilante de um ex-soldado que, segundo se descobriu depois, jamais estivera no Iraque nem era portanto testemunha do que quer que fosse.

Como o radialista Rush Limbaugh denunciasse o fato no seu talk show de 38 milhões de ouvintes, acusando Reid de jogar a opinião pública contra as Forças Armadas mediante depoimentos de “phony soldiers” (falsos soldados), o deputado apresentou à mesa da Câmara um enfezadíssimo requerimento exigindo que Limbaugh pedisse desculpas por “ofender as tropas americanas”.

Reid é um malandrão, metido em negócios imobiliários cabeludos, mas não, o episódio não se explica pela simples mendacidade. O uso normal da mentira na política ou no comércio é sempre limitado pelo senso da verossimilhança. Quando um sujeito sai ostensivamente acusando os outros daquilo que todo mundo sabe que ele próprio fez, ele não está propriamente querendo enganar as pessoas, nem enganar a si próprio: está querendo que a mentira seja aceita como verdade precisamente por ser mentira e por ser conhecida como tal ; está querendo inverter o quadro mesmo de referências e fazer com que a inteligência humana se prosterne conscientemente ante a mentira, investida enfim do prestígio paradoxal e mágico de uma forma superior de veracidade.

Reid está fazendo, no fundo, precisamente o mesmo que aquele palhaço maoísta fez ao me acusar de calúnia por lhe imputar a autoria de um crime que ele próprio se gabava de ter-lhe rendido uma condenação na Justiça. Está fazendo o mesmo que o dr. Emir Sader faz ao produzir com dinheiro público um “Dicionário Crítico do Pensamento da Direita” que omite sistematicamente toda menção aos mais célebres pensadores de direita, cuja leitura poderia corromper as mentes virginais dos jovens esquerdistas. Está fazendo o mesmo que a intelectualidade esquerdista em peso faz ao fomentar o banditismo e depois imputar suas culpas à “sociedade de classes”. Está praticando, em suma, a inversão revolucionária da realidade.

“Revolução” significa precisamente um giro, uma inversão de posições. O tema do “mundo às avessas”, que invadiu o teatro e as artes plásticas na entrada da modernidade, impregnou-se tão profundamente na mentalidade revolucionária que acabou por se tornar um reflexo inconsciente, consagrando-se por fim como o método de pensamento essencial – e na verdade único – da intelectualidade ativista e dos políticos de esquerda. Não é de espantar, pois, que aqueles que se deixam seduzir em mais ou em menos pela idéia revolucionária, nem sempre sendo capazes de virar o mundo de pernas para o ar como desejariam, façam ao menos a revolução nas suas próprias cabeças, invertendo as relações lógicas de sujeito e objeto, de afirmação e negação, de anterioridade e posterioridade, e assim por diante, enxergando portanto tudo às avessas e só admitindo como verdade o contrário do que os fatos dizem e os documentos atestam.

A justificativa moral que têm para isso é sublime. Bertolt Brecht resumiu-a assim: “Mentir em prol da verdade.” O pressuposto filosófico da fórmula, incompreensível a quem desconheça as sutilezas do marxismo, é que o socialismo é a essência oculta do processo histórico, a finalidade secreta a que tendem inconscientemente todos os atos humanos. Se, mentindo, você apressa o advento do socialismo, está ajudando a revelar a verdade. Se, ao contrário, você se apega à realidade dos fatos para argumentar contra o socialismo, está atrapalhando a revelação e servindo portanto ao reino da mentira.

Notem como isso inverte, de um só golpe, a relação lógica não só entre o falso e o verdadeiro, mas entre o conhecido e o desconhecido. Para a mentalidade humana normal, o passado pode ser conhecido mediante documentos e testemunhos, mas o futuro só pode ser conjeturado. Para o revolucionário, o futuro é a única certeza: o passado pode ser modificado à vontade conforme os interesses superiores da revolução a cada momento. Quando a Enclopédia Soviética apagava das fotos históricas os personagens que iam se tornando politicamente inconvenientes, ou quando os nossos bravos esquerdistas alegam cinicamente como prova do envolvimento americano na preparação do golpe de 31 de março de 1964 justamente os documentos que mostram que os americanos só se meteram no assunto depois do golpe eclodido (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/061123jb.html ), estão fazendo exatamente o mesmo que Harry Reid: invertendo o passado para amoldá-lo ao futuro desejado.

Embutida no cerne mesmo da doutrinação socialista, essa regra confere aos militantes – e, por tabela, aos companheiros de viagem – não só o direito, mas o dever estrito de mentir. Não de mentir aqui ou ali, em detalhes que possam se encaixar mais ou menos no quadro geral da verdade, mas de mentir sempre, mentir em profundidade, mentir de alto a baixo, com obstinação e audácia, até que aqueles que conhecem a verdade percam de vez todo desejo de contrapô-la à tremenda, à avassaladora autoridade moral da mentira.

Quem não compreenda esse traço da mentalidade revolucionária está totalmente desaparelhado para enfrentá-la seja no terreno intelectual, seja na política prática.

Não é preciso dizer que a mentira material, a inversão dos fatos, é só a aplicação mais grossa e visível da regra. Com base no mesmo princípio essencial, a arte da influência revolucionária produziu uma tal pletora de estratagemas, que seu repertório de trapaças já não pode ser abarcado pelos estudos usuais sobre argumentação sofística.

Só para dar um exemplo: o mais elementar e notório dos sofismas é a “petição de princípio” ( petitio principii ). Consiste em tomar como premissa probante, dada como verdadeira a priori , a afirmação mesma que se pretende demonstrar. É um truque tão besta que até crianças o reconhecerão à primeira vista, se você lhes ensinar as regras da demonstração válida. Mas a retórica revolucionária descobriu que a inviabilidade lógica de um argumento não o torna necessariamente ineficaz do ponto de vista psicológico. As petições de princípio, em especial, têm uma força persuasiva tremenda, que contrasta de maneira patética com a sua impotência lógica. Repetidas um certo número de vezes, elas podem gradativamente inocular no leitor ou ouvinte a convicção semiconsciente ou implícita (e por isto mesmo tanto mais forte) de que a afirmação duvidosa ou falsa não é duvidosa nem falsa de maneira alguma, é antes líquida, certa e universalmente aprovada. Isso acontece por simples efeito acumulativo. Toda e qualquer demonstração vai do certo para o duvidoso, subentendendo que o primeiro é admitido pelo ouvinte tanto quanto pelo falante e está, por isso mesmo, fora de discussão. Quando você coloca o duvidoso no lugar do certo, seu interlocutor terá de admiti-lo como certo, mesmo persuadido de que é falso, para poder completar o raciocínio. Ou seja: você induz o sujeito a pensar contra suas próprias convicções. Para o interlocutor adestrado no exame dialético das contradições, essa concessão é banal, mas no ouvinte desavisado ela pode ter um efeito psicológico profundo. Forçado a repeti-la determinado número de vezes, ele entra em estado de dissonância cognitiva , não distinguindo mais entre o crer e o mero pensar, e então está pronto para admitir como substantivamente certa, ao menos de maneira implícita, a afirmação que tinha sido tomada como tal apenas para fins provisórios de raciocínio. Pesquisas psicológicas já velhas de três décadas (mas ainda totalmente desconhecidas do público brasileiro em geral) demonstram que, em oitenta por cento dos casos, é fácil obter uma mudança de convicções mediante esse truque simples e barbaramente desonesto, conhecido entre os técnicos sob o nome de door-in-the-face , “bater a porta na cara” (v. R. B. Cialdini et al ., “Reciprocal concessions procedure for inducing compliance: the door-in-the face technique”, em Journal of Personality and Social Psychology , vol. 31, no. 2, pp. 206-215, 1975).

Em artigos vindouros darei amostras da aplicação diária e persistente dessa técnica pelos cultores do “mundo às avessas”.

Entre o crime e a mentira

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 25 de outubro de 2007

O episódio do Prêmio Nobel James Watson, suspenso do Laboratório Cold Spring Harbor por ter dito que os negros são inferiores aos brancos, é uma excelente ocasião para fazer recordar à comunidade politicamente correta alguns fatos que ela já conseguiu extirpar da mídia e dos livros didáticos, mas que, por milagre divino ou negligência da censura, ainda estão vivos nos documentos.

O racismo é, por inteiro, uma criação da modernidade, das luzes, da mentalidade científica, ateística e revolucionária, e não das tradições religiosas que formam a base da nossa civilização. Nem haveria como ser de outro modo. Não pode existir um sentimento de superioridade racial sem prévia identidade racial, nem muito menos esta poderia ter surgido antes que o conceito de raça fosse criado pelos biólogos iluministas no século XVIII. E mesmo que eles o tivessem inventado numa época anterior, ele não poderia ter-se transfigurado em instrumento de guerra cultural antes que a classe dos cientistas e dos intelectuais acadêmicos tivesse adquirido, em substituição ao clero, a autoridade pública de suprema instância legitimadora das idéias.

Por isso mesmo, você não encontrará nos dogmas da Igreja, nas sentenças dos Papas ou nas decisões conciliares uma só frase que sugira, nem mesmo de longe, a superioridade dos brancos sobre os negros. Em compensação, encontrará muitas nas obras dos enciclopedistas, de Kant, de Voltaire, de Karl Marx e de Charles Darwin — os gurus máximos das luzes, do progressismo e da revolução. Se Voltaire enriqueceu no comércio de escravos e Kant assegurou que “os negros da África, por natureza, não têm sentimentos acima da frivolidade”, Marx e Darwin, em especial, fazem daquela pretensa superioridade branca um argumento ostensivo em favor do extermínio das “raças inferiores”, que o primeiro considerava necessário ao progresso histórico e o segundo um pressuposto básico da evolução humana, concordando nisso com seu antecessor Herbert Spencer e sendo ecoado fielmente por seus dois principais discípulos, Thomas Huxley e Ernst Haeckel, o que mostra que toda tentativa de separar evolucionismo e racismo é pura maquiagem ex post facto . A rigor, a declaração de James Watson contra os programas sociais, ante a qual os paladinos da boa imagem da ciência tanto se fingem de escandalizados, não passa de uma versão atenuada do seguinte parágrafo de Charles Darwin:

“Entre os selvagens, os fracos de corpo e mente são logo eliminados. Nós, civilizados, fazemos o possível para evitar essa eliminação; construímos asilos para os imbecis, os aleijados, os doentes; instituímos leis para proteger os pobres… Isso é altamente prejudicial à raça humana.”

Se, após ter espalhado no mundo esse apelo genocida, a ideologia progressista-científica tenta inculpar por isso as épocas anteriores que o desconheciam, não há aí nada de estranho: é da essência do movimento revolucionário inverter a ordem do tempo histórico e, com ela, a autoria das ações, transfigurando a inocência alheia em crime e a sua própria abjeção em motivo de vanglória.

Lênin viria a resumir esse procedimento-padrão na máxima: “Acuse-os do que você faz.” Isso é assim nos grandes como nos pequenos lances da história desse movimento. Quando nossos políticos de esquerda fomentam a criminalidade e depois a diagnosticam como criação perversa da “sociedade de classes”, ou quando vão construindo o Mensalão em segredo ao mesmo tempo que brilham ante os holofotes como perseguidores de corruptos, não lhes falta a quem imitar. A tradição revolucionária é o perfeito casamento do crime com a mentira.