Página negra

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de dezembro 2007

Por que, no meio da gritaria mundial contra as “torturas” supostamente praticadas pelos americanos em Guantanamo, ninguém exibiu até agora uma única vítima mutilada, um único dedo quebrado, um único olho roxo, um hematomazinho de meio centímetro quadrado?

Como é possível alardear em tom de certeza inabalável a prática de tantos crimes hediondos e jamais exibir um só corpo de delito?

Por que não aparece sequer um único testemunho de vítima, descrevendo os horrores que teria sofrido e explicando por que seu corpo continua intacto e com aparência saudável?

Por que, com tantos megafones para ecoá-lo, não se ouve um único grito de dor?

Sobretudo: Por que, de tantas pessoas submetidas a maus tratos intoleráveis, nenhuma morre jamais? Onde estão os cadáveres da Guantánamo americana, similares àqueles que brotam às centenas, aos milhares, das prisões de Havana, Beijing, Pyongyang, Cartum, Islamabad?

É claro que estamos diante da mais vasta, mais mentirosa e mais despudorada campanha de desinformação em escala mundial já vista desde a operação montada em Moscou para exibir os espiões atômicos Julius e Ethel Rosenberg como vítimas inocentes de uma trama  imperialista.

O entusiasmo pueril, a fé cega com que a mídia nacional em peso ecoa essa campanha, sem um momento sequer de dúvida ou de recuo crítico, é a prova maior de que a inteligência desapareceu por completo das redações, sendo substituída pela macaqueação passiva dos slogans da moda.

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A obsessiva necessidade que os “formadores de opinião” brasileiros têm de dar uma impressão de equilíbrio e serenidade no tom do que escrevem é pura camuflagem de seu profundo sentimento de insegurança, nascido por sua vez de uma secreta consciência de sua incultura e despreparo.

O esforço de parecer maduro é o sinal mais patente da imaturidade.

Quem tem motivos sólidos para confiar na racionalidade do que pensa não liga para o tom em que vai dizê-lo; ao contrário, está habilitado a variar o tom conforme o momento, as circunstâncias e o objetivo da comunicação, sem mudar o conteúdo intelectual do que diz.

O poder de diferenciar idéia e tom é um dos sinais distintivos da humanidade. Não o encontramos nem mesmo entre os símios superiores, muito menos entre as galinhas. Deveríamos orgulhar-nos dele, mas no Brasil de hoje, ao contrário, seu exercício tornou-se proibido, ao menos nos debates públicos. Aí qualquer absurdo intelectualmente insultuoso, se exposto em linguagem serena e polida, é aceito como a encarnação mesma da racionalidade, ao passo que uma demonstração lógica perfeita, escorada no exato conhecimento dos fatos, é tida como explosão irracional intolerável tão logo suas conclusões firam alguma suscetibilidade em torno. Se exposta em linguagem lacônica ou sarcástica, então, vale como atestado de insanidade do infeliz autor. O tom, em suma, faz as vezes do conteúdo, que desaparece por completo.

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Depois de publicadas as atas quase completas das assembléias e grupos de trabalho do Foro de São Paulo; depois de dois discursos do sr. Luís Inácio em que ele confessa abertamente as atividades aí desenvolvidas em parceria com as Farc e o MIR, ainda recebo centenas de cartas de leitores exigindo “provas” dessa parceria. Pior que a credulidade sonsa é a incredulidade beócia – a incapacidade de tirar conclusões óbvias dos fatos mais patentes. Não creio exagerar ao dizer que, ao longo da últimas décadas, essa patologia se tornou endêmica no Brasil e que seus sintomas se manifestam especialmente entre as classes letradas.

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Dica de leitura: não percam o artigo de David Meir-Levi, “The Communist Roots of Palestinian Terror”, na edição atual da FrontPageMagazine.

Saindo do armário

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 13 de dezembro de 2007

No discurso que fez durante o Encontro de Governadores da Frente Norte do Mercosul, em Belém do Pará no último dia 6 de dezembro, o sr. presidente da República foi ainda mais explícito do que em 2 de julho de 2005 – 15º. aniversário do Foro de São Paulo –, e a grande mídia nacional foi ainda mais aplicada e unânime em fingir que não o ouviu. O que ele disse foi, em essência, o seguinte:

1. O Foro de São Paulo, fundado por ele, é o comando estratégico da esquerda continental.

2. Ao longo de dezessete anos de ações coordenadas, a estratégia do Foro mudou o curso da História na América Latina, não só salvando da extinção o movimento comunista internacional mas entregando a ele o poder sobre várias nações e abrindo caminho para a sua expansão ilimitada.

Essas afirmações são verdades facílimas de comprovar. Basta cotejar as atas das assembléias e grupos de trabalho daquela misteriosa entidade com o noticiário das mudanças políticas sobrevindas em escala continental desde a sua fundação em 1990. Praticamente tudo o que aconteceu de importante na política latino-americana na última década e meia foi tramado e decidido com antecedência no Foro de São Paulo.

O sr. presidente só mentiu num ponto: disse que os cientistas sociais terão dificuldade em entender essa gigantesca transformação histórica porque “foi tudo muito rápido”. Não foi rápido coisa nenhuma. Houve tempo suficiente para compreender o processo e até para detê-lo. O que faltou foi informação. Tudo o que se discutiu e se decidiu no Foro ao longo de dezessete anos foi mantido em segredo, com a colaboração servil e criminosa da mídia cúmplice e de uma oposição de fancaria, programada para calar o bico. Ludibriado, o povo assistiu às mudanças sem saber de onde vinham, como se fosse tudo uma inexplicável tempestade de curiosas coincidências. Agindo por toda parte sem jamais ser visto, discutido ou denunciado, o Foro de São Paulo transformou-se literalmente no governo mágico preconizado por Antonio Gramsci, investido do “poder invisível e onipresente de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

Nunca, na história do mundo, acontecimentos dessa magnitude permaneceram ocultos perante tanta gente durante tanto tempo, com conseqüências tão vastas.

O fato de que, diante desse fenômeno assombroso, os próprios antipetistas reais ou fingidos se encolham e prefiram discutir miudezas administrativas e legais, como se estivéssemos numa antiga e aprazível democracia européia onde a política se tornou mera rotina burocrática, mostra que a ousadia e o cinismo dos planos monumentais da esquerda não inibiram em seus adversários só a coragem de lutar, mas até o desejo de pensar, o mero impulso de saber. O mal que cresce em torno deles tornou-se grande demais para que desejem enxergá-lo. Como drogados numa boate em chamas, preferem deixar-se cair pelas poltronas, esperando que o incêndio passe como se fosse apenas uma bad trip.

Agora que a luta está praticamente ganha, o próprio inventor da trama pode abrir o armário e mostrar a bela coleção de esqueletos acumulada no escuro ao longo dos anos.

Ele já não tem motivo para calar. Já ninguém tem força para punir seus crimes. Aquilo que foi encoberto pode ser exibido, sem risco, de cima dos telhados. Apenas, aqueles que solicitamente colaboraram com a ocultação se sentem, é claro, um pouco envergonhados de confessar que seu silêncio obsequioso, tão constante, tão devoto, se tornou de repente uma relíquia inútil, desprezada por seu próprio beneficiário maior.

O revolucionário aburguesado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 13 de dezembro de 2007

Quando um topos — um argumento padronizado ou lugar-comum — é vazio e idiota o bastante para poder ser usado igualmente pelo discurso da esquerda e pelo da direita, ele tem tudo para se consagrar como dogma inabalável do credo público. Deixem-no circular um pouco, e em breve ele se tornará premissa fundante e supremo critério de prova para a aferição de milhares de opiniões em circulação.

O exemplo mais comum, na mídia brasileira, é o do revolucionário aburguesado. Pelo menos uma vez por semana aparecem opinadores iluminados proclamando que tal ou qual político, tal ou qual partido, tal ou qual grupo militante era de esquerda mas já não é mais: continua na luta só por dinheiro, por desejo de poder, por interesse egoísta.

A direita utiliza esse giro de linguagem para as seguintes finalidades: (a) queimar a reputação de algum esquerdista perante seus próprios companheiros, apelando maliciosamente aos valores que lhes são caros; (b) tentar dividir as hostes esquerdistas, semeando suspeitas quanto à lealdade mútua entre os vários grupos que a compõem: (c) minar a autoconfiança do movimento esquerdista, insinuando que é um culto esvaziado pela descrença e pela apostasia; (d) enaltecer o capitalismo por meio de uma retórica invertida e satânica, atribuindo-lhe o poder atrativo de uma tentação irresistível e, desta forma, buscando transmutar o aburguesamento dos revolucionários numa profecia auto-realizável.

Não é preciso dizer que, nas quatro hipóteses, o que se obtém é no máximo alguma vantagem tática menor em troca de uma perda estratégica irreparável: quanto mais as crenças e valores nominais de um grupo político são usados como arma de chantagem moral contra o mesmo grupo, mais esses valores saem engrandecidos e essas crenças fortalecidas. Quando a direita apela a esse truque de retórica chinfrim, acreditando ser muito esperta por isso, o que ela consegue é servir de instrumento à propaganda ideológica esquerdista.

A esquerda, não raro aproveitando-se dessa mesma circunstância, emprega a figura do revolucionário aburguesado de maneira menos variada, porém um pouco mais eficiente: serve-se dela para limpar-se de seus crimes, atribuindo-os a traidores que teriam abandonado os belos ideais da revolução e passado a delinqüir em benefício próprio. Esse topos foi fartamente usado a propósito do primeiro escalão petista quando se tornou impossível ocultar a magnitude de seus feitos ilícitos, em comparação com os quais os Anões do Orçamento se tornavam gigantes de moralidade e civismo. Não por coincidência, aqueles que bradavam contra os corruptos do Planalto nas páginas da mídia burguesa omitiam-se de fazê-lo no círculo mais íntimo do Foro de São Paulo, provando destarte que, em família, ainda tinham por aqueles alegados desertores a consideração devida a companheiros fiéis.

O mesmo artifício serviu para atenuar o vexame do seqüesto do publicitário Washington Olivetto, quando, em peso, a elite esquerdista chique de São Paulo se mobilizou para apresentar o autor principal do crime, Maurício Norambuena, como um desertor do MIR chileno ( Movimiento de la Izquierda Revolucionaria ), empenhado em enriquecer a si próprio mediante o uso indevido dos truques de guerrilha urbana aprendidos nos anos dourados da sua militância idealista. Como ao mesmo tempo aquelas pessoas maravilhosas reivindicassem a libertação do prisioneiro, a impressão que ficava na retina do público era profunda e indelével: a esquerda era uma facção política tão bondosa, tão generosa, que não hesitava em lutar até mesmo pelos direitos humanos de um traidor e apóstata. Liberto e enviado de volta ao Chile, logo depois Norambuena posava para uma fotografia com os líderes do MIR, todos abraçadinhos, ostantando disciplinadamente a bandeira do movimento.

Nos último dias, o estereótipo do revolucionário aburguesado voltou à cena, desta vez para limpar a imagem da revolução latino-americana inteira, poluída temporariamente pelas notícias a respeito de Ingrid Bettancourt e de outros reféns mantidos em cativeiro pelas Farc, sob condições inumanas. Por toda parte ecoa o mesmo refrão: aqueles desavergonhados colombianos fazem essas maldades porque se aburguesaram, só pensam em dinheiro e nem se lembram mais de seus ideais de juventude. Mas, novamente, a acusação só será alardeada na imprensa burguesa. Nem uma palavra contra os supostos traidores se ouvirá nas reuniões do Foro de São Paulo, o tribunal supremo da pureza revolucionária. Ali, num ambiente de camaradagem íntima, eles continuarão a ser tratados com deferência, respeito e tapinhas fraternais nas costas. O fingimento é tão visível como se nos tempos da Inquisição um bispo católico, acusando de heresia um sacerdote, insistisse em fazê-lo só diante de uma assembléia de ateus, sem dar ao Santo Ofício a mínima ciência do ocorrido e continuando a aceitar o dito herege como seu confessor e guia espiritual.

Mas muitos séculos, talvez, ainda hão de decorrer antes de a direita nacional perceber que o topos do revolucionário aburguesado não lhe serve para enganar a ninguém, mas só para torná-la ainda mais vulnerável ao mesmo truque quando usado pela esquerda.