Idiotas reciclados

 

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 31 de julho de 2008

Levei décadas para compreender que a sedução esquerdista não me conquistou – nem a mim nem a meus companheiros de geração – pelo conteúdo ativo da sua proposta ideológica, que só conhecíamos muito superficialmente, mas sim pela oferta implícita de um novo código de moralidade, que chegava a nós sem palavras, pela impregnação difusa na convivência diária. O que definia esse estilo era que os nossos atos já não seriam julgados pelo seu teor moral objetivo, mas pela sua conexão hipotética com os fins últimos do movimento revolucionário. Como esses fins eram remotíssimos e só acessíveis poeticamente, os sentimentos do grupo militante tornavam-se a única referência capaz de decidir, sem necessidade ou possibilidade de grande fundamento racional, se a nossa conduta pessoal se enquadrava ou não nos padrões esperados. Libertávamo-nos da “moral burguesa” escravizando-nos à autoridade irracional de um círculo de “companheiros”, cuja afeição se tornava o único fiador da salvação da nossa alma ante o tribunal da História. O apego ao grupo era fortalecido pelo ódio a inimigos que não conhecíamos, dos quais nada sabíamos, mas de quem imaginávamos com facilidade as piores coisas, deleitando-nos então de pertencer à comunidade dos bons.

Se entendi que as coisas se passaram assim, foi através de auto-exames francamente humilhantes. Humilhantes, porém obrigatórios. Considerando-se a extensão e a gravidade dos crimes praticados pelo comunismo contra a espécie humana, o dever mais óbvio daqueles que se desiludem com ele é aprofundar a ruptura, investigando dentro de si até extirpar as últimas raízes do erro monstruoso em que se acumpliciaram. No entanto, poucos fazem isso: a maioria limita-se a transitar da categoria de militantes para a de idiotas úteis – às vezes até mais úteis do que eram como militantes.

A principal razão disso é que abandonar o comunismo lhes custou um investimento psicologico muito grande: no instante seguinte estão cansados demais para um segundo esforço de auto-superação. Tratam então de acomodar-se no círculo mais próximo, a chamada “esquerda democrática”, e aí repousar na contemplação dos seus dois grandes méritos imaginários: o mérito de aderir ao comunismo por amor à justiça, o mérito de afastar-se dele em busca de mais justiça. Refugiando-se da mentira numa nova mentira, tornam-se facilmente chantageáveis por seus velhos companheiros, cuja amizade insistem em conservar como relíquia de um passado querido ou como analgésico contra a dor da separação ideológica.

O preço dessa amizade é uma terceira mentira. Na perspectiva comunista, a idéia de relação pessoal separada da devoção partidária é um mito burguês desprezível. O recém-divorciado tem de se esquecer disso para poder fingir que seus antigos companheiros de militância são agora seus amigos sem nenhum interesse político, ao passo que eles, fiéis ao mandamento de jamais sobrepor as afeições do coração aos sagrados interesses do Partido, estão ansiosos por uma oportunidade de usar politicamente o novo “companheiro de viagem” para dar sentido moral à continuação de uma amizade que, sem isso, lhes pareceria uma futilidade pecaminosa.

Essa oportunidade aparece assim que o Partido cria mais uma “frente ampla”, como o faz de tempos em tempos, angariando o apoio de uma variedade de correntes de opinião para objetivos cujas implicações de longo prazo a maioria não precisa enxergar nem compreender. Aí o militante transviado dificilmente resiste à proposta de agradar a seus companheiros de juventude sem perder uma sensação de independência tão deliciosa quanto ilusória. Reciclado como “companheiro de viagem”, ele volta a integrar a estratégia partidária, sem o ônus da submissão explícita.

É assim que se explicam, por exemplo, fenômenos como as epidemias de lulismo ou obamismo entre pessoas que se imaginam imunes a todo apelo do seu passado esquerdista. Ao criar os Obamas e Lulas, a esquerda revolucionária faz como uma igreja que se abre, por esperteza ecumênica, ao retorno dos apóstatas para uma visitinha sem compromisso.

O mundo de hoje na linguagem de ontem

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de julho de 2008

Praticamente toda a linguagem do jornalismo político em circulação hoje em dia foi criada para descrever um mundo que não existe mais – o mundo do pós-guerra. As notícias já não podem refletir os fatos porque são pensadas e escritas segundo esquemas descritivos estreitos demais para a situação atual. As mudanças ocorridas ao longo das últimas cinco décadas no quadro internacional são tão gigantescas que escapam ao horizonte de visão do jornalismo – daí que os fatos mais importantes fiquem fora do noticiário ou recebam cobertura irrisória, enquanto aparências fúteis merecem atenção desproporcional.

As conseqüências disso para a alma popular são devastadoras, principalmente porque aí se introduz um segundo fator complicante: como já não existe propriamente “cultura popular”, a velocidade de produção da “indústria cultural” atropelando a criatividade espontânea do povo, o resultado é que a mídia se torna a fornecedora única dos símbolos e valores com que o cidadão comum se explica a si mesmo e enquadra, como pode, a sua experiência pessoal num esboço de visão geral do mundo. A força com que a mídia influencia a própria estruturação das personalidades individuais e das relações pessoais é hoje imensurável. Isso quer dizer que, se essa mídia se aliena da realidade, todos se alienam com ela. Cada um sente na sua própria vida diária os efeitos diretos de profundas transformações globais, mas, como estas não aparecem no debate público, ou aparecem deformadas por estereótipos, a equação psicológica que se estabelece é a seguinte: por mais que o cidadão tente amoldar sua visão da realidade ao recorte deformante, buscando uma falsa sensação de segurança no ajustamento à pseudo-realidade legitimada pelo consenso midiático, setores inteiros da sua experiência pessoal, familiar e grupal permanecem encobertos e inexpressáveis, latejando no escuro como infecções não diagnosticadas. O sentimento de desajuste externo e insegurança interna, que até umas décadas atrás era próprio da adolescência, espalha-se por todas as faixas etárias: não há mais pessoas maduras, todos são “teenagers” vacilantes, incapazes de uma decisão firme, de um raciocínio conclusivo.

Mas a análise dessas conseqüências pode ficar para um outro artigo. Volto aqui às causas da alienação da mídia.

Dois documentos, a meu ver, ilustram bem o esquema interpretativo que partir do fim da II Guerra foi adotado mais ou menos uniformemente por toda a mídia do Ocidente para a descrição da política mundial: o livro de Hans J. Morgenthau, “Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace”, publicado em 1948 pela Alfred A. Knopf, e a Carta da ONU, assinada em São Francisco em 25 de junho de 1945.

O primeiro tornou-se a bíblia do Departamento de Estado americano e, por isso mesmo, o código geral com que os políticos e os formadores de opinião nos outros países interpretavam as ações e palavras do governo de Washington, automaticamente expressando nos termos desse mesmo código as suas posições – e as de seus respectivos governos – com relação à política americana e, no fim das contas, a tudo o mais.

A doutrina Morgenthau, como veio a ser chamada, é complexa, mas duas de suas características interessam de maneira mais direta ao que estou tentando dizer aqui:

1º. Ela explicava as ações desenroladas no cenário internacional em função de interesses objetivos (materiais ou ideais), racionalmente formulados e identificáveis.

2º. Embora reconhecendo que os Estados nacionais poderiam no futuro dissolver-se em unidades políticas maiores, ela os tratava como agentes principais do processo político mundial (daí o título do livro).

As conseqüências imediatas desse enfoque eram duas:

1ª. A noção de “interesse nacional” tornava-se o conceito descritivo fundamental: a política mundial era, em suma, uma trama de interesses nacionais em concorrência, em conflito, em colaboração etc.

2ª. Os agentes supranacionais sem natureza estatal, como os movimentos revolucionários, as religiões, as mega-empresas transnacionais, as dinastias nobiliárquicas ou oligárquicas, etc. desapareciam do cenário: suas ações tornavam-se invisíveis ou tinham de ser explicadas, bastante artificialmente, como expressões camufladas de interesses nacionais.

Na orientação da política americana, externa e interna, as limitações que daí decorreram foram – e continuam sendo – catastróficas:

1ª. No combate ao comunismo, todos os esforços do governo americano limitaram-se à busca de agentes diretamente controlados pelo governo soviético, sem nada poder fazer contra o movimento comunista em si e muito menos contra as suas encarnações mais diversificadas e camufladas a partir dos anos 60. A “New Left”, sem ligações formais com o Partido Comunista da URSS mas sob certos aspectos mais virulenta do que qualquer agente soviético, não só saiu vitoriosa da guerra do Vietnã, mas impôs a quase toda a população americana os novos padrões de cultura “politicamente corretos” que hoje bloqueiam qualquer iniciativa séria contra os inimigos internos e externos do país.

2ª. Até hoje o governo americano está travado por uma autocensura que o impede de reconhecer em voz alta a realidade da “guerra de civilizações”, tendo de explicar suas ações defensivas mediante o subterfúgio metonímico da “guerra contra o terrorismo” ao mesmo tempo que fortalece o inimigo islâmico interno no campo da guerra cultural e vai podando, uma a uma, as raízes cristãs de onde a sociedade americana extrai toda a sua força de resistência.

3ª. A luta de vida e morte entre o interesse nacional americano e os grupos globalistas que tentam subjugar a nação aos organismos internacionais é assunto proibido em debates eleitorais, de modo que se torna fácil para aqueles grupos camuflar suas ações por trás do mesmo interesse nacional contra o qual agem incessantemente, lançando portanto sobre o país a culpa do mal que lhe fazem (v. o parágrafo final do artigo “Uma nova fachada do Foro de São Paulo”, DC, 9 de junho de 2008).

Entre nós, a adoção do conceito de “interesse nacional” como um fetiche explicativo pela Escola Superior de Guerra faz com que até hoje muitos analistas militares brasileiros sejam incapazes de entender o esquema de dominação globalista senão como instrumento das “grandes nações” – o que quer dizer, em última análise, dos EUA.

Esses erros de perspectiva são retro-alimentados pela mídia mundial, que desde os anos 40 adotou informalmente a doutrina do Departamento de Estado como chave descritiva da política internacional. Não é preciso examinar uma infinidade de jornais e noticiários de rádio e TV para perceber que, embora tagarelem obsessivamente sobre “globalização”, os jornalistas em geral só enxergam a distribuição de poder no mundo através da sua manifestação visível na forma de Estados nacionais. A religião, por exemplo, continua sendo a seus olhos uma força cultural extrapolítica, que só resvala na política por acidente ou por submissão perversa de seus altos fins originários aos propósitos de algum Estado nacional ou organização terrorista. Eles não podem, por isso, entender o Islam, que é por essência e origem um projeto de Estado mundial, mas que a seus olhos é apenas uma “religião”, capaz de amoldar-se pacificamente à ordem política dos Estados não-islâmicos. Muito menos podem compreender o fenômeno do metacapitalismo (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/040617jt.htm e http://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_4.htm).

O segundo documento a que me referi, a Carta da ONU, criou o código de valores que dá substância moral ao retrato do mundo estampado na mídia. Se a mecânica desse mundo é descrita como um jogo de interesses nacionais, seu drama humano é equacionado em termos de “paz”, “direitos humanos”, “tolerância”, “progresso econômico e social”, “segurança internacional”, “cooperação humanitária”, etc., dando vivacidade, movimento e verossimilhança ao quadro da competição entre nações e camuflando automaticamente os esquemas de poder supranacionais, dos quais a própria ONU é hoje um dos instrumentos mais úteis e contundentes.

Se, como foi dito acima, as pessoas sentem na sua vida diária os efeitos das transformações globais sem poder sequer expressar em palavras a ligação entre sua experiência imediata e o cenário maior da história, isso se deve sobretudo ao fato de que os agentes que originaram esses processos permanecem desconhecidos da multidão: as mudanças de valores, de leis, de critérios, que afetam profundamente o destino e até a psicologia íntima de milhões de criaturas desabam sobre a população como se tivessem vindo do céu ou resultassem de fatalidades históricas impessoais. Não podendo ser rastreadas até nenhum agente nacional-estatal, tornam-se ações sem sujeito, misteriosas como decretos da Providência.

No entanto, a harmonia simultânea com que se lançam em todo o planeta campanhas destinadas a mudar radicalmente os hábitos e valores da população, forçando-a a respeitar o que abomina e a abominar o que respeitava até à véspera, basta para mostrar, mesmo a quem nada saiba da origem concreta desses empreendimentos, que essa origem existe e que ela não reside em nenhum mistério celeste ou lei histórica, mas em agentes humanos de carne e osso, apenas enormemente poderosos, organizados e perseverantes. Esses agentes não são secretos, são apenas discretos, embora muitos deles, bastante famosos até, alardeiem seus motivos e suas ações em livros e conferências. É ao passar pela malha seletiva da mídia que suas ações se tornam secretas, no mais das vezes não por ocultação premeditada, mas pelo simples fato de que não se enquadram nas categorias descritivas aí reconhecidas.

Arte e revolução

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 25 de julho de 2008

O estudante sério, como se sabe, é uma espécie da qual presumo haver salvado da extinção alguns dos poucos exemplares que ainda restam no Brasil, e até fomentado a geração de uns quantos em proveta, longe daquela raça temível de predadores que são os pedagogos e os burocratas do Ministério da Educação.

Um daqueles raros sobreviventes envia-me uma pergunta das mais interessantes, merecedora de resposta em jornal. Quer ele saber se o artista, o poeta, o escritor infectado de mentalidade revolucionária está irremediavelmente perdido para a criação artística ou pode, pelo gênio pessoal, transcender nela a mecanicidade grosseira do pensamento revolucionário.

Se aceitamos a definição croceana da arte como “expressão de impressões” – e até hoje não vi motivo para rejeitá-la –, a resposta à pergunta torna-se auto-evidente. A mentalidade revolucionária é essencialmente a inversão do sentido do tempo, a arrogância psicótica de interpretar o presente e o passado à luz das virtudes imaginárias de um futuro hipotético. O futuro enquanto tal não pode ser objeto de impressão, só de conjeturação imaginativa ou de construção mental. Uso estes dois termos para designar atividades diametralmente opostas: a primeira consiste em ampliar simbolicamente as impressões do presente e jogá-las num futuro imaginário, como fizeram George Orwell e Aldous Huxley em “1984” e no “Admirável Mundo Novo” respectivamente. A segunda inventa o futuro e remolda à luz dele as impressões do presente. É esta a única via aberta à “arte revolucionária”. Mas é certo que essa arte já não é mais arte e sim mero revestimento estético de uma construção conceptual. Cabe aí a distinção que Saul Bellow fazia entre os “intelectuais” e os “escritores”, estes incumbindo-se do ofício propriamente artístico de transmitir as “impressões autênticas”, aqueles tratando de deformá-las segundo uma construção hipotética.

A mentalidade revolucionária é intrinsecamente hostil à criação artística, porque volta as costas às “impressões autênticas”, reconstruindo o mundo segundo os cânones de uma “segunda realidade” artificial e artificiosa. O termo “segunda realidade” é de Robert Musil, e quem o leu sabe do gigantesco esforço que esse escritor dispendeu para restaurar a arte do romance numa atmosfera cultural em que as idéias e ideologias pareciam ter sepultado esse gênero sob a grossa placa de chumbo das construções conceptuais.

Isso não quer dizer, no entanto, que todo artista politicamente comprometido com uma causa revolucionária permaneça escravo dela no exercício do seu mister criativo. A história das artes no século XX – e especialmente da literatura – é uma galeria de consciências dilaceradas entre a fidelidade ao futuro hipotético oferecido pelas ideologias e a realidade presente das “impressões autênticas”.