Uma lição de Hegel

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de novembro de 2008

Na introdução à Filosofia do Direito, G. W. F. Hegel explica que uma das capacidades essenciais do ego humano é a de suprimir mentalmente todo dado exterior ou interior, quer este se imponha como presença física ou por quaisquer outros meios – a capacidade, em suma, de negar o universo inteiro e fazer da consciência de si a única realidade. Se não fosse esta faculdade, estaríamos presos no círculo dos estímulos imediatos, como os animais, e não teríamos o acesso aos graus mais elevados de abstração. A negação do dado – “a irrestrita infinitude da abstração absoluta ou universalidade, o puro pensamento de si mesmo”, segundo Hegel – é uma das glórias peculiares da inteligência humana.

No entanto, é uma força perigosa, quando exercida independentemente de outras capacidades que a compensam e equilibram, entre as quais, evidentemente, a de dizer “sim” à totalidade do real, capacidade da qual o próprio Hegel deu uma ilustração pitoresca no célebre episódio em que, após contemplar por longo tempo uma soberba montanha, baixou a cabeça e sentenciou: “É, de fato é assim.”

Quando o ego vivencia a negação abstrativa como uma experiência de liberdade, e a autodeterminação da vontade se apega a essa experiência, prossegue Hegel, “então temos a liberdade negativa, a liberdade no vazio, que se ergue como paixão e toma forma no mundo.” Vale a pena citar o parágrafo por extenso, tal a sua força analítica e profética:

“Quando [essa liberdade] se volta para a ação prática, ela toma forma na religião e na política como fanatismo da destruição – a destruição de toda a ordem social subsistente –, como eliminação dos indivíduos que são objetos de suspeita e a aniquilação de toda organização que tente se erguer de novo de entre as ruínas. É só destruindo alguma coisa que essa vontade negativa tem o sentimento de si própria como existente. É claro que ela imagina querer alcançar algum estado de coisas positivo, como a igualdade universal ou a vida religiosa universal, mas de fato ela não quer que esse estado se realize efetivamente, porque essa realização levaria a alguma espécie de ordem, a uma formação particularizada de organizações e indivíduos, ao passo que a autoconsciência daquela liberdade negativa provém precisamente da negação da particularidade, da negação de toda caracterização objetiva. Conseqüentemente, o que essa liberdade negativa pretende querer nunca pode ser algo em particular, mas apenas uma idéia abstrata, e dar efeito a essa idéia só pode consistir na fúria da destruição.”

Esse parágrafo deveria ser meditado diariamente por todos os estudiosos e homens práticos interessados em compreender o mundo da política. Ele elucida algumas constantes do movimento revolucionário que de outra maneira seriam inexplicáveis – tão inexplicáveis e paradoxais que a mente do observador comum se recusa a enxergá-las juntas, preferindo apegar-se a aspectos isolados, ocasionais e temporários, imaginando erroneamente ver aí a totalidade ou a essência do fenômeno.

Uma dessas constantes é a permanente negação de si mesmo, que permite ao movimento revolucionário tomar as mais variadas formas, mudando de rosto do dia para a noite e desnorteando não só o adversário como também uma boa parte dos seus próprios adeptos. Como a unidade de propósitos do movimento é uma pura abstração e seus objetivos proclamados de um momento são apenas encarnações imperfeitas e temporárias dessa abstração, ele pode se despir das suas manifestações particulares como quem troca de meias, sem nada perder e até elevando-se a novos patamares de poder mediante a mudança repentina de uma política para a política oposta, pronto a voltar à anterior sem aviso prévio se as circunstâncias o exigirem. Guerrilhas e terrorismo, por exemplo, jamais alcançam a vitória no terreno militar, mas produzem um anseio geral de paz, e este pode ser atendido negando a legitimidade da violência que ainda ontem se defendia como um direito inalienável, extraindo da casca violenta um núcleo de “reivindicações” supostamente “legítimas” e oferecendo a “paz” em troca do poder “legalmente conquistado”. A derrota transfigura-se em vitória, a negação em afirmação triunfante. O partido governante do Brasil chegou ao poder exatamente por esse artifício, cujo know how ele agora oferece às Farc. Quando uma parcela do movimento revolucionário renega sua própria violência, é que a violência está em vias de alcançar seus objetivos. Essas mutações não seriam viáveis se os fins e valores concretos proclamados pelo movimento revolucionário – sua “caracterização particular objetiva”, diria Hegel – tivessem alguma realidade em si mesmos e não fossem apenas figuras ilusórias projetadas temporariamente pela abstração de fundo.

Mas a autonegação não afeta só os discursos, os pretextos ideológicos da revolução. Ela atinge o corpo mesmo do movimento, periodicamente sacrificado no altar das suas próprias ambições.

A base última da sociedade humana, ensinavam S. Paulo Apóstolo e Sto. Agostinho, é o amor ao próximo. Tingida ou não de ódio ao estranho (que é por assim dizer a sua contrapartida demoníaca, reflexo da imperfeição inerente do amor humano e não um fator substantivo independente como pretendia Emmanuel Levinas), a comunidade do espírito, devoção comum a um sentido de vida aberto para a transcendência, reflui sobre cada um dos seus membros, aureolando-o de uma espécie de sacralidade aos olhos dos demais, seja nomeando-o um membro do corpo de Cristo ou da umma islâmica, um civis romanus, um descendente de Moisés, um herdeiro da tradição nhambiquara ou um simples “cidadão” da democracia moderna, partícipe na comunidade dos direitos invioláveis adquiridos, em última análise, de instituições religiosas milenares. Não é concebível nenhuma “fraternidade” sem uma “paternidade” comum. Mesmo na esfera mais imediata da vida econômica, nenhum comércio frutífero é possível sem a “sociedade de confiança” da qual falava Alain Peyrefitte, fundada na crença de que os valores sagrados de um não serão violados pelo outro.

Em contraste com essa regra universal, o movimento revolucionário diferencia-se pela constância com que, nas organizações e governos que cria, seus próprios membros se perseguem e se aniquilam uns aos outros com uma obstinação sistemática e em quantidades jamais vistas em qualquer outro tipo de comunidade humana ao longo de toda a história. A Revolução Francesa cortou mais cabeças de revolucionários que de padres e aristocratas. A Revolução Russa de 1917 não se fez contra o tzarismo, mas contra os revolucionários de 1905. O nazismo elevou-se ao poder sobre os cadáveres de seus próprios militantes, imolados ao oportunismo de uma aliança política na “Noite das Longas Facas” em 29 de junho de 1934. Mas seria uma ilusão imaginar que esses rituais sangrentos reflitam apenas o furor passageiro das hecatombes revolucionárias. Uma vez consolidados no poder, os partidos revolucionários redobram de violência, movidos pela suspeita paranóica contra seus próprios membros, matando-os aos milhões e dezenas de milhões com uma sanha que ultrapassa tudo o que os mais violentos próceres da reação jamais pensaram em fazer contra eles. Nenhum ditador de direita jamais prendeu, torturou e matou tantos comunistas quanto os governos da URSS, da China, do Vietnã, do Camboja, da Coréia do Norte e de Cuba. As lágrimas de ódio que sobem à face dos militantes de esquerda quando falam de Francisco Franco, de Augusto Pinochet ou mesmo da brandíssima ditadura brasileira, não expressam senão um mecanismo histérico de autodefesa moral – a “repressão da consciência”, como a chamava Igor Caruso –, a projeção inversa das culpas incalculavelmente maiores que o movimento revolucionário tem para com milhões de seus próprios fiéis.

A contrapelo da inclinação universal da natureza humana para fundar a vida social no amor ao próximo, o movimento revolucionário cria sociedades inteiramente baseadas no ódio, fazendo da unidade provisória inspirada no ódio a este ou àquele inimigo externo ou interno um arremedo satânico do amor.

Nada disso seria possível se os ideais e bandeiras erguidos pelo movimento revolucionário a cada passo da sua história tivessem alguma substancialidade em si mesmos. Neste caso a fidelidade comum aos valores sagrados protegeria os membros da comunidade revolucionária uns contra os outros. Mas esses ideais são como as figuras formadas pelas nuvens no céu, condenadas a dissipar-se ao primeiro vento, deixando atrás de si apenas o céu vazio. A única, central e permanente fidelidade do movimento revolucionário é à liberdade abstrata, que, com suas irmãs siamesas, a igualdade abstrata e a fraternidade abstrata, não pode encarnar-se perfeitamente em nenhuma forma particular histórica e, não consistindo senão de vazio absoluto, só pode encontrar a satisfação de um sentimento fugaz de existência no exercício da aniquilação, na insaciável “fúria da destruição”.

A mentira global

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 13 de novembro de 2008

Se há uma coisa óbvia, é que a opinião pública não julga os males os pela sua gravidade objetiva, mas pelo destaque que recebem na mídia. Isso é assim pela simples razão de que a quase totalidade das pessoas não tem como informar-se de fonte direta. Não tem nem mesmo como acompanhar as discussões entre eruditos profissionais, que só chegam ao seu conhecimento, quando chegam, pelo recorte mínimo e enviesado do noticiário. O resultado é que opiniões e preconceitos da classe jornalística – reforçados pelos de seus irmãos siameses, o show business e a rede de educação pública – aparecem aos olhos da multidão não só como a imagem direta e veraz do mundo real, mas como a única imagem concebível. O que quer que esteja fora dos jornais e dos canais de TV está fora do universo. Claro, entre estudiosos você pode falar de coisas que a população ignora, mas qualquer tentativa de fazê-lo ante um público maior atrairá sobre você o diagnóstico de paranóia, assinado pela suprema autoridade científica da mídia popular.

Enquanto existiu concorrência genuína entre os meios de comunicação, a divergência entre os pontos de vista dos vários centros formadores de opinião alertava os observadores para as falhas do conjunto, praticamente obrigando-os a conjeturar outras realidades por trás do que aparecia na mídia. De uns vinte anos para cá, três fatores – (1) a rápida concentração da propriedade dos meios de comunicação, (2) a uniformização ideológica dos estudantes de jornalismo, artes e letras por meio da doutrinação maciça nas universidades e (3) a influência crescente exercida sobre as redações pela rede multibilionária de ONGs militantes espalhadas pelo mundo – produziram um fenômeno que ainda não foi estudado como merece: a padronização mundial da opinião pública por meio da influência convergente da mídia, do show business e do sistema educacional.

A “aldeia global” de Marshall McLuhan, que nos anos 60 era apenas uma interessante figura de linguagem, tornou-se uma profecia auto-realizável e, assumida como projeto por quem tinha os meios de realizá-la, realizou-se: hoje é possível desencadear campanhas de mídia em escala mundial em menos de 24 horas, com absoluta uniformidade de opiniões e versões, de tal modo que a mera tentação de enxergar as coisas de modo diferente se torna torna um risco psicológico a que raríssimas pessoas desejariam se expor. O caráter diabolicamente paródico da situação é patente: em vez de “um só rebanho e um só Pastor”, temos uma só manada de burros e um só condutor.

Nesse panorama, mesmo a mentira mais tola e autocontraditória, se assumida como verdade pela mídia mundial, será muito difícil de contestar, exceto em círculos de estudiosos especializados que, por sua vez, se sentirão em geral inibidos de levar a questão ao público. Entre esses estudiosos há exceções, é claro, mas é fácil sufocar sua voz por meio de uma tempestade de contestações numericamente irrespondíveis. Mais fácil ainda é dissolvê-la num mar de lendas urbanas desencontradas, de modo a impedir que seja objeto de atenção séria.

Se você diz, por exemplo, que a certidão original de nascimento de Barack Obama e todos os seus demais documentos importantes continuam inacessíveis a exame, o que é um fato incontestável, imediatamente multidões de tagarelas, confundindo por estupidez ou astúcia esse fato com as dúvidas quanto à nacionalidade de Obama, respondem que é tudo uma lenda urbana já desmascarada. Espremido entre a exigência artificiosa de provar que Obama nasceu no Quênia ou aceitar sem provas a nacionalidade americana do personagem e todas as suas demais alegações de campanha, o público acaba preferindo esta última alternativa e, por automatismo, acaba engolindo junto com ela a imposição cínica de dispensar o presidente eleito da mais elementar obrigação de transparência, cumprida fielmente por todos os seus antecessores. Fundidos numa névoa pastosa os deveres civis do homem público e as prerrogativas do réu num processo penal, o ônus da prova é magicamente invertido e o direito do eleitor informar-se sobre seus candidatos torna-se virtualmente um crime de calúnia. Essa farsa monstruosa jamais teria sido possível sem a colaboração uniforme de praticamente toda a mídia mundial.

O império do segredo

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 13 de novembro de 2008

Desde que os eleitores americanos aceitaram confiar num candidato presidencial do qual não sabiam praticamente nada e que escondia deles sua certidão de nascimento, seu histórico escolar, sua lista de contribuintes e qualquer outro documento que comprovasse sua biografia oficial de campanha, ficou claro que a noção tradicional de “transparência” em política tinha sofrido um golpe mortal, do qual talvez não se recuperaria nunca mais.

O ritual funerário veio bem depressa: o Federal Reserve, que no início da crise financeira prometera tratar do assunto do modo mais “transparente” possível, agora recusa-se a divulgar os nomes dos recebedores de mais de dois trilhões de dólares em “empréstimos de emergência”. O motivo não é difícil de imaginar: causas diretas da encrenca, esses empréstimos foram arrancados dos bancos à força, pela pressão das ONGs esquerdistas, como por exemplo a Acorn, que deu emprego a Obama, financiou sua candidatura e ainda distribuiu alguns milhões de títulos de eleitor falsos para garantir o investimento. É impossível remexer essa sujeira sem fazê-la respingar na imagem do presidente eleito. Bondosamente, o Federal Reserve poupa dessa cruel decepção os fãs de Obama, e o faz mediante o expediente obâmico usual: sumir com as informações. O pressuposto mais básico da democracia americana – o acesso público aos dados relevantes – está morto e sepultado.

Para todos os bocós que votam às tontas, guiados tão somente pelo show business, isso não fará a menor diferença. Nem perceberão a mudança. Cada vez que puderem dissolver-se de novo na massa, gritando “Obama! Obama”, acreditarão estar exercendo a democracia. Para os eleitores conscientes, é a extinção de tudo o que entendem como “cidadania”, “direitos civis”, “império da lei”, etc. Doravante o povo está separado do seu governante por um abismo de silêncio, preenchido tão-somente pela obrigação de acreditar sem questionar. Ao transformar Obama num deus, a propaganda conferiu o privilégio da invisibilidade ao personagem real oculto sob a máscara. Eleita a criatura, o privilégio foi estendido a toda a administração federal, deixando à mostra apenas os símbolos convencionais da democracia, para consumo da massa crédula.

No mesmo dia – parece brincadeira –, a lista de promessas de campanha do presidente eleito desapareceu do site de transição, www.change.gov. Logo desaparecerá também da memória popular, e Obama estará apto a “distribuir riqueza” (sic) com a mesma generosidade com que, uma vez milionário, abandonou seus parentes em favelas – inclusive aquela tia que, segundo ele se gaba nas suas memórias, o ensinou a ser o provedor responsável da família –, e com o mesmo senso de dever com que deixou milhares de funcionários de campanha, perplexos, esperando até agora o salário prometido.

Tenham paciência, irmãos. Com a experiência, pouco a pouco vocês irão conhecendo o verdadeiro Obama. Mas, por enquanto, não perguntem nada. O presidente eleito já tem livre acesso a todos os mais altos segredos de Estado da nação americana, mas a realidade da sua vida permanece um segredo inviolável. Pretender investigá-la é crime de racismo. Aguardem para breve a “Fairness Doctrine”, velho sonho democrata já em avançado estado de implementação, que acabará com as perguntas incômodas nas estações de rádio, e o advento da “Força Civil de Segurança Nacional”, militância armada, do tamanho do Exército, a qual, nada tendo de sério a fazer na esfera policial, só servirá para perseguir “fundamentalistas” (não islâmicos, é claro), “homofóbicos”, “extremistas de direita” e outros tipos abomináveis.

Se essa elitização sem precedentes vem em nome da igualdade, é algo que pode parecer uma ironia cruel, mas nada tem de inusitado. Ao longo da História, cada vez que um governante quis elevar seu coeficiente de poder, fez isso estrangulando, com a ajuda da massa idiotizada, as hierarquias intermediárias. Ivan o Terrível e Luís XIV deram a fórmula, que ainda funciona.