O capitalismo anticapitalista

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de maio de 2009

Quando digo que a democracia capitalista dificilmente pode sobreviver sem uma cultura de valores tradicionais, muitos liberais brasileiros, loucos por economia e devotos da onipotência mágica do mercado, fazem aquela expressão de horror, de escândalo, como se estivessem diante de uma heresia, de uma aberração intolerável, de um pensamento iníquo e mórbido que jamais deveria ocorrer a um membro normal da espécie humana.

Com isso, só demonstram que ignoram tudo e mais alguma coisa do pensamento econômico capitalista. Aquela minha modesta opinião, na verdade, não é minha. Apenas reflete e atualiza preocupações que já atormentam os grandes teóricos do capitalismo desde o começo do século XX.

Um dos primeiros a enunciá-la foi Hillaire Belloc, no seu livro memorável de 1913, The Servile State, reeditado em 1992 pelo Liberty Fund. A tese de Belloc é simples e os fatos não cessam de comprová-la: destravada de controles morais, culturais e religiosos, erigida em dimensão autônoma e suprema da existência, a economia de mercado se destrói a si mesma, entrando em simbiose com o poder político e acabando por transformar o trabalho livre em trabalho servil, a propriedade privada em concessão provisória de um Estado voraz e controlador.

Rastreando as origens do processo, Belloc notava que, desde o assalto dos Tudors aos bens da Igreja, cada novo ataque à religião vinha acompanhado de mais uma onda de atentados estatais contra a propriedade privada e o trabalho livre.

Na época em que ele escrevia The Servile State, as duas fórmulas econômicas de maior sucesso encarnavam essa evolução temível cujo passo seguinte viria a ser a I Guerra Mundial. Quem mais compactamente exprimiu a raiz do conflito foi Henri Massis (que parece jamais ter lido Belloc). Em Défense de l’Occident (1926), ele observava que, numa Europa desespiritualizada, todo o espaço mental disponível fôra ocupado pelo conflito “entre o estatismo ou socialismo prussiano e o anti-estatismo ou capitalismo inglês”. O capitalismo venceu a Alemanha no campo militar, mas a longo prazo foi derrotado pelas idéias alemãs, curvando-se cada vez mais às exigências do estatismo, principalmente na guerra seguinte, quando, para enfrentar o socialismo nacional de Hitler, teve de ceder tudo ao socialismo internacional de Stálin.

Défense de l’Occident é hoje um livro esquecido, coberto de calúnias por charlatães como Arnold Hauser – que chega ao absurdo de catalogar o autor entre os protofascistas –, mas seu diagnóstico das origens da I Guerra continua imbatível, tendo recebido ampla confirmação pelo mais brilhante historiador vivo dos dias atuais, Modris Eksteins, em Rites of Spring: The Great War and the Birth of the Modern Age, publicado em 1990 pela Doubleday (nem comento o acerto profético das advertências de Massis quanto à invasão oriental da Europa, do qual tratarei num artigo próximo). Segundo Eksteins, a Alemanha do Kaiser, fundada numa economia altamente estatizada e burocrática, encarnava a rebelião modernista contra a estabilidade da democracia parlamentar anglo-francesa baseada no livre mercado. Esta só saiu vitoriosa em aparência: a guerra em si, por cima dos vencedores e perdedores, fez em cacos a ordem européia e varreu do mapa os últimos vestígios da cultura tradicional que subsistiam no quadro liberal-capitalista.

Outro que entendeu perfeitamente o conflito entre a economia de mercado e a cultura sem espírito que ela mesma acabou por fomentar cada vez mais depois da I Guerra foi Joseph Schumpeter. O capitalismo, dizia ele em Capitalism, Socialism and Democracy (1942), seria destruído, mas não pelos proletários, como profetizara Marx, e sim pelos próprios capitalistas: insensibilizados para os valores tradicionais, eles acabariam se deixando seduzir pelos encantos do estatismo protetor, irmão siamês da nova mentalidade modernista e materialista.

Que na era Roosevelt e na década de 50 a proposta estatista fosse personificada por John Maynard Keynes, um requintado bon vivant homossexual e protetor de espiões comunistas, não deixa de ser um símbolo eloqüente da união indissolúvel entre o antiliberalismo em economia e o antitradicionalismo em tudo o mais.

Nos EUA dos anos 60, essa união tornou-se patente na “contracultura” das massas juvenis que substituíram a velha ética protestante de trabalho, moderação e poupança pelo culto dos prazeres – pomposamente camuflado sob o pretexto de libertação espiritual –, investindo ao mesmo tempo, com violência inaudita, contra o capitalismo que lhes fornecia esses prazeres e contra a democracia americana que lhes assegurava o direito de desfrutá-los como jamais poderiam fazer na sua querida Cuba, no seu idolatrado Vietnã do Norte. Mas o reino do mercado é o reino da moda: quando a moda se torna anticapitalista, a única idéia que ocorre aos capitalistas é ganhar dinheiro vendendo anticapitalismo. A indústria cultural americana, que no último meio século cresceu provavelmente mais que qualquer outro ramo da economia, é hoje uma central de propaganda comunista mais virulenta que a KGB dos tempos da Guerra Fria. A desculpa moral, aí, é que a força do progresso econômico acabará por absorver os enragés, esvaziando-os pouco a pouco de toda presunção ideológica e transfigurando-os em pacatos burgueses. O hedonismo individualista e consumista que veio a dominar a cultura americana a partir dos anos 70 é o resultado dessa alquimia desastrada; tanto mais desastrada porque o próprio consumismo, em vez de produzir burgueses acomodados, é uma potente alavanca da mudança revolucionária, visceralmente estatista e anticapitalista: uma geração de individualistas vorazes, de sanguessugas carregadinhos de direitos e insensíveis ao apelo de qualquer dever moral não é uma garantia de paz e ordem, mas um barril de pólvora pronto a explodir numa irrupção caótica de exigências impossíveis. Em 1976 o sociólogo Daniel Bell já se perguntava, em The Cultural Contradictions of Capitalism, quanto tempo poderia sobreviver uma economia capitalista fundada numa cultura louca que odiava o capitalismo ao ponto de cobrar dele a realização de todos os desejos, de todos os sonhos, de todos os caprichos, e, ao mesmo tempo, acusá-lo de todos os crimes e iniqüidades. A resposta veio em 2008 com a crise bancária, resultado do cinismo organizado dos Alinskys e Obamas que conscientemente, friamente, se propunham drenar até ao esgotamento os recursos do sistema, fomentando sob a proteção do Estado-babá as ambições mais impossíveis, as promessas mais irrealizáveis, os gastos mais estapafúrdios, para depois lançar a culpa do desastre sobre o próprio sistema e propor como remédio mais gastos, mais proteção estatal, mais anticapitalismo e mais ódio à nação americana.

Em 1913, as previsões de Hillaire Belloc ainda poderiam parecer prematuras. Era lícito duvidar delas, porque se baseavam em tendências virtuais e nebulosas. Diante do fato consumado em escala mundial, a recusa de enxergar a fraqueza de um capitalismo deixado a si mesmo, sem as defesas da cultura tradicional, torna-se uma obstinação criminosa.

Aristóteles em Nova Perspectiva (por João Seabra Botelho)

João Seabra Botelho

Leonardo, 10 de maio de 2009

A “Leonardo” leva já dois anos e meio de presença nestas suas vestes informáticas e, a confirmar a sua radical irrelevância para o “establishment” cultural, social, político, académico e editorial, está o facto de nunca ter recebido aqueles testemunhos de “estima e consideração” próprios do ambiente letrado, que são a oferta de livros feitos pelos “oficiais do mesmo ofício”.

Para isso, ninguém nos liga nenhuma! Excelente.

Libertos assim, como sempre desejámos, de qualquer serventia ou cumplicidade, seja com os mais visíveis apparatchiks da “cultura”, seja com os mais discretos ou secretos “independentes, mas conformes”, que lhe ocupam, à “cultura”, os contornos da auréola, fomos, contudo, recentemente prendados com duas obras.

Prendados, apenas pela nobre razão de seus autores quererem ser lidos; apenas isto, porque outras pretensões não envenenam, bem o podemos avaliar, o desejo dos autores, nem tampouco seriam exequíveis, connosco.

E sendo assim o que somos, tanto os autores como os leitores, é em concreta liberdade e amor à verdade que agora nos manifestamos e deixamos o nosso testemunho sobre as obras recebidas.

São elas “Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à teoria dos Quatro Discursos”, de Olavo de Carvalho, e “Considerando os filósofos”, de Carlos Aurélio.

Do primeiro livro, irei agora dizer alguma coisa. Do segundo, será de seguida publicado um texto de Miguel Bruno Duarte. Mas outros textos poderão aparecer mais tarde, sobre qualquer um destes dois livros, porque temos em ambos muito “pano para mangas”.


A perpetuidade da Filosofia Clássica

A primeira nota que quero deixar bem frisada sobre o livro de Olavo de Carvalho foi ter tido uma constante, surpreendente e agradável sensação de familiaridade com o texto, com o pensamento, com o exercício filosófico que subjaz a este livro.

E, no entanto, o livro tem ideias originais, teses invulgares e propostas inovadoras…

Essa familiaridade foi, então, a primeira condição ou circunstância que suscitou a interrogação. Porquê?

Depois, eis o facto de estar também documentada e patente, no livro, a polémica que esta obra gerou, que me causou um “dejá vue” arrepiante da reacção típica do bacharelismo positivista que controla, lá como cá, muitos dos púlpitos e varandas do “templo da cultura oficial”, onde as novas obras e autores devem obedientemente desfilar, para aprovação comprometedora dos maiores e aplauso invejoso dos menores.

Respondo já à interrogação feita acima lembrando agora a conclusão do texto de Orlando Vitorino, aqui recentemente publicado, sobre Álvaro Ribeiro. Essa conclusão é a de que cabe à Filosofia Portuguesa a demonstração da perpetuidade da Filosofia Clássica, e nesta, da obra de Aristóteles, “ a filosofia natural do homem”.

Ora, para mim, a familiaridade que senti com esta obra deve-se ao simples facto de Olavo de Carvalho ser um filósofo a quem também tocou essa missão!

Em favor desta minha afirmação não quero adiantar supostos esclarecimentos sobre o modo misterioso em que tais vínculos espirituais se transmitem, que a serem tidos em conta afastariam parte do espanto que esta afirmação possa causar; basta-me dizer, mais simplesmente, que não é “impunemente” que se filosofa em Português! Filosofar em Português, aqui, como no Brasil, ou em Macau, é sempre inspirar, ou aspirar, os tropos lusos que no incansável tempo ganharam morfologia própria e sustêm a Língua Portuguesa. O resto, vem da alma de cada um! E se Olavo nasceu autor de razão animada, não admira que filosofe com autonomia e que o seu filosofar seja um fruto germinado ao sol e à chuva de uma Pátria singular, mas já universal. E foi sob este sol e esta chuva que melhor se entendeu Aristóteles, enquanto decorriam muitos e longos séculos e se mudavam as vontades.

Depois das obras de Álvaro Ribeiro, como Razão Animada, Estudos Gerais, Escola Formal ou a Arte de Filosofar, que reabriram em Portugal, no século XX, os mais altos horizontes da filosofia aristotélica, vejo agora em Olavo de Carvalho, e nesta sua obra, o estudo aristotélico actual mais relevante da Escola Formal, e com não menor relevância até na sua aptidão didáctica para quem se queira iniciar no que mais importa da obra aristotélica, aptidão ou valor que Álvaro também nunca desdenhou ou esqueceu nos seus livros.

E, no entanto, até é possível que o Olavo não se sinta pessoalmente identificado nestes termos, já que não é pequeno o oceano concreto que nos separa a todos, o Atlântico, e um escol requer alguma proximidade e conformidade de conceitos e termos. Mas o que possa faltar de medida e peso, para firmar essa sintonia, sobra na espontânea empatia de sentimentos e pensamentos que existe, seja lá por que razão seja, (se a razão que já adiantei não chegar), e me cumpre constatar, por ser verdade.

O facto, pois, é este: comungamos, interiormente, de uma mesma “traditio”; e, como se vê, cá e lá, para o bem e para o mal.

A tese fundamental deste livro é a unidade do saber em Aristóteles, unidade que tem o seu concreto assento na existência de um único potencial intelectivo, o discurso humano, que se desenvolve por quatro disciplinas, a Poética, a Retórica, a Dialéctica e a Lógica. Na intuição desta unidade discursiva e das quatro modalidades principais em que Aristóteles propõe o seu desenvolvimento unitário, para atingir assim a plenitude das suas formas próprias, perfazendo no horizonte os limites do possível saber humano e deixando entreaberta a via sófica, vê Olavo, e com razão, o resultado da sua autoria, já que de ninguém ouviu ou aprendeu isto.

Esta tese, obviamente, contraria as vulgarizadas versões sectárias de Aristóteles, e disso tem clara consciência Olavo de Carvalho, quando afirma que irá apresentar “como um apóstolo da unidade aquele a quem todos costumam encarar como guardião da esquizofrenia”, da esquizofrenia que é o autêntico pilar da tese da dualidade do saber. O seu esforço não é vão, e quedam esclarecidas as suas razões e, supletivamente, as causas do sectarismo corrente.

Esta “doutrina dos quatro discursos” é lucidamente exposta, tanto nas curiosas contingências históricas que terão contribuído para a sua ocultação ou esquecimento – apenas Avicena refere esta visão com alguma acuidade – como sejam o desaparecimento da Poética praticamente até ao Renascimento, ou a hipertrofia da argumentatio da Dialéctica e da mecanicidade da Lógica dos silogismos nas disputas teológicas e nos conflitos de Fé, ou na gradual morte da Retórica enquanto instrumento vital da pólis e da domus justitia, como nas suas causas intrínsecas e essenciais, que a natureza humana impõe e que determinam uma única fonte de culto e cultura, de pensamento e expressão, um único cadinho onde se fundem sensibilidade, memória, imaginação e razão, o discurso humano; eis a teoria de “uma expressão integral do logos”.

Ao mesmo tempo que vai expondo a sua original descoberta, original por se tratar de algo que se encontra no âmago da doutrina aristotélica e foi bebido na sua origem, descoberta por ter sido mostrada ou demonstrada, após muitos séculos de obnubilação, Olavo vai deixando igualmente a sua interpretação de outros tópicos da obra do Estagirita, alguns deles não menos relevantes para o reavivar deste pensamento abrangente e orgânico, estruturado mas dinâmico, que caracteriza a unidade do monumental opus aristotélico.

Também se encontra nesta obra uma vertente mais virada para a história das ideias: da história remota, na metódica leitura de várias épocas culturais sob a perspectiva do quadro da evolução sequencial dos “quatro discursos” e sua respectiva relação com as mentalidades próprias dessas épocas; da história recente, com a impagável e humorística polémica travada com alguns “sábios da mula ruça”, dos muitos que pululam pelos muitos galhos da frondosa “cultura oficial”.

Gostaria de deixar aqui, após esta primeira referência global à obra, os temas que me levantaram dúvidas ou simples desacordo, já que em relação a tudo o mais, nada melhor que a leitura da obra, que está dsponível na Net para aquisição, e que é o modo adequado de conhecer realmente as teses de Olavo de Carvalho.

Tenho, então, para concluir, as seguintes notas a acrescentar:

– Julgo que a Sofística não está suficientemente mencionada no contexto dos “quatro discursos”; compreende-se que traria algum desconforto a introdução de um “quinto discurso”, ou de uma possível versão deformada ou sombria de um, ou mais, dos quatro disccursos, mas seja como for, a questão da sofistica é demasiado relevante, na filosofia em geral, na filosofia Grega em particular, e na própria obra de Aristóteles, nomeadamente no seu aspecto ético, para não merecer mais que esta breve referência : “Aristóteles adverte expressamente os seus discípulos de que não se aventurem a terçar argumentos dialécticos com quem desconheça os princípios da ciência; seria expôr-se a argumentos de mera retórica, prostituindo a filosofia.”

– Já na pag. 41 Olavo descreve: “De discurso em discurso há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível; da ilimitada abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crenças realmente aceites na praxis colectiva; porém, da massa de crenças subscritas pelo senso comum, só umas poucas sobrevivem aos rigores da triagem dialéctica; e destas, menos ainda são as que podem ser admitidas pela ciência como absolutamente certas e funcionar, no fim, como premissas de raciocínios científicamente válidos.” Ora, temos aqui uma descrição que me parece excessivamente reducionista, da ciência como filtro que sintetiza dados vários, e falsos, muitos deles: tal visão gera-se com o racionalismo Moderno, e julgo que é anacrónica com Aristóteles e a sociedade Ateniense. Aristóteles não tem uma visão sintetizante, ascendente e afunilante do exercício de conhecer, e os dois movimentos, ascendente e descendente, nele se completam e estimulam mutuamente… Tanto vale a sintetização e a abstracção, como momentos do processo científico, quanto vale a atenta e curiosa observação de novas e multímodas formas em que a vida se organiza, e a imaginação de novas espécies e diferenças, ou a intelecção de géneros e categorias. Nos discursos poético e retórico, aliás, exige-se necessariamente o desenvolvimento das capacidades próprias ao apreciar e recriar do concreto e do diverso, e na própria dialéctica Aristóteles não sobrevaloriza a síntese sobre a análise, ou a dedução sobre a indução; portanto, só se quisermos ver o Organon em versão algo estática e piramidal, aqui já talvez excessivamente medieval, é que iríamos também coroar e subjugar todo o sistema com a Silogística que, essa sim, filtra as proposições pelo crivo da certeza apodítica. Em suma, creio que Aristóteles não desdenharia de ver representado o seu sistema como esférico, mas não piramidal. O dinamismo não gera mais formas sob a égide da crença e da ignorância, enquanto o saber se encarrega de afunilar a verdade num cada vez menor número de seres ou formas, através da subida nos “discursos”. Para Aristóteles, os entes a serem conhecidos são incontáveis e mais reais, ou verdadeiros, que os fantasiados ou aceites pelo senso comum. Conhecer, é conhecer essa diversidade múltipla dos entes, e tão importante é classificá-los numa só classe, como reconhecer-lhes a diferença única que os identifica. Evoluir na credibilidade ou cientificidade dos discursos não é só depurar ou filtrar as fantasiosas crenças do ignorante, numa espécie de movimento do múltiplo ao uno; a organização, ou o organon, permite avançar disciplinada e efectivamente para o conhecimento da imensa multiplicidade de entes e eventos, não para a diminuir, ou abstrair, ou para visionar os modelos do seu mestre, Platão, mas para conhecer o movimento universal que é a demonstração da inteligência divina e que se manifesta nos movimentos de todos os entes, que se movem para culminarem em, ou cumprirem a, sua perfeição.

– Finalmente, apesar de registar com agrado que não é o hilemorfismo, ou a tese do composto da matéria e da forma, que sempre vem à baila nas divulgações de Aristóteles, que mais interessa a Olavo, mas antes a tese da potência e do acto, que sendo mais difícil é muitas vezes posta de lado, embora seja a mais importante contribuição de Aristóteles, na minha opinião, para ultrapassar os desconcertantes paradoxos do movimento e da imobilidade que tanto “trabalho” deram a Platão e a toda a cabeça pensante de Atenas, tenho as minhas objecções à leitura que Olavo faz dessa tese. Mas sobre esse tema será preciso um outro texto, que aqui já não tem cabimento, até porque esse tema vai obrigar-me a ser… digamos atrevido, talvez original.

Lisboa, 10 de maio de 2009

Quem é filósofo e quem não é

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de maio de 2009

À medida que se espalha a consciência da debacle total das nossas universidades públicas e privadas, cresce o número de brasileiros que, valentemente, buscam estudar em casa e adquirir por esforço próprio aquilo que já compraram de um governo ladrão – ou de ladrões empresários de ensino – e jamais receberam.

Quase dez anos atrás a Fundação Odebrecht – no mais, uma instituição admirável – me perguntou o que eu achava de uma campanha para cobrar do governo um ensino de melhor qualidade. Respondi que era inútil. De vigaristas nada se pede nem se exige. O melhor a fazer com o sistema de ensino era ignorá-lo. Se queriam prestar ao público um bom serviço, acrescentei, que tratassem de ajudar os autodidatas, aquela parcela heróica da nossa população que, de Machado de Assis a Mário Ferreira dos Santos, criou o melhor da nossa cultura superior. O meio de ajudá-los era colocar ao seu alcance os recursos essenciais para a auto-educação, que é, no fim das contas, a única educação que existe. Cheguei a conceber, para isso, uma coleção de livros e DVDs que davam, para cada domínio especializado do conhecimento, não só os elementos introdutórios indispensáveis, mas as fontes para o prosseguimento dos estudos até um nível que superava de muito o que qualquer universidade brasileira poderia não só oferecer, mas até mesmo imaginar.

Minha sugestão foi gentilmente engavetada, e, com ou sem campanha de cobrança, o ensino nacional continuou declinando até tornar-se aquilo que é hoje: abuso intelectual de menores, exploração da boa-fé popular, crime organizado ou desorganizado.

Na mesma medida, o número de cartas desesperadas que me chegam pedindo ajuda pedagógica multiplicou-se por dez, por cem e por mil, transcendendo minha capacidade de resposta, forçando-me a inventar coisas como o programa True Outspeak, o Seminário de Filosofia Online e outros projetos em andamento. E ainda não dou conta da demanda. As cartas continuam vindo, e o pedido que mais se repete é o de uma bibliografia filosófica essencial. É pedido impossível. O primeiro passo nessa ordem de estudos não é receber uma lista de livros, mas formá-la por iniciativa própria, na base de tentativa e erro, até que o estudante desenvolva uma espécie de instinto seletivo capaz de orientá-lo no labirinto das bibliotecas filosóficas. O que posso fazer, isto sim, é fornecer um critério básico para você aprender a discernir à primeira vista, entre os autores que falam em nome da filosofia, quais merecem atenção e quais seria melhor esquecer.

Tive a sorte de adquirir esse critério pelo exemplo vivo do meu professor, Pe. Stanislavs Ladusãns. Quando ele atacava um novo problema filosófico – novo para os alunos, não para ele –, a primeira coisa que fazia era analisá-lo segundo os métodos e pontos de vista dos filósofos que tinham tratado do assunto, em ordem cronológica, incorporando o espírito de cada um e falando como se fosse um discípulo fiel, sem contestar ou criticar nada. Feito isso com duas dúzias de filósofos, as contradições e dificuldades apareciam por si mesmas, sem a menor intenção polêmica. Em seguida ele colocava em ordem essas dificuldades, analisando cada uma e por fim articulando, com os elementos mais sólidos fornecidos pelos vários pensadores estudados, a solução que lhe parecia a melhor.

A coisa era uma delícia, para dizer o mínimo. Num relance, compreendíamos o sentido vivo daquilo que Aristóteles pretendera ao afirmar que o exame dialético tem de começar pelo recenseamento das “opiniões dos sábios” e tentar articular esse material como se fosse uma teoria única. Cada filósofo tem de pensar com as cabeças de seus antecessores, para poder compreender o status quaestionis – o estado em que a questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro abstratismo bocó, opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso.

A conclusão imediata era a seguinte: a filosofia é uma tradição e a filosofia é uma técnica. Chega-se ao domíno da técnica pela absorção ativa da tradição e absorve-se a tradição praticando a técnica segundo as várias etapas do seu desenvolvimento histórico.

Note-se a imensa diferença que existe entre adquirir pura informação, por mais erudita que seja, sobre as idéias de um filósofo, e levá-las à prática fielmente, como se fossem nossas, no exame de problemas pelos quais sentimos um interesse genuíno e urgente. A primeira alternativa mata os filósofos e os enterra num sepulcro elegante. A segunda os revive e os incorpora à nossa consciência como se fossem papéis que representamos pessoalmente no grande teatro do conhecimento. É a diferença entre museologia e tradição. Num museu pode-se conservar muitas peças estranhas, relíquias de um passado incompreensível. Tradição vem do latim traditio, que significa “trazer”, “entregar”. Tradição significa tornar o passado presente através da revivescência das experiências interiores que lhe deram sentido. A tradição filosófica é a história das lutas pela claridade do conhecimento, mas como o conhecimento é intrinsecamente temporal e histórico, não se pode avançar nessa luta senão revivenciando as batalhas anteriores e trazendo-as para os conflitos da atualidade.

Muitas pessoas, levadas por um amor exagerado à sua independência de opiniões (como se qualquer porcaria saída das suas cabeças fosse um tesouro), têm medo de deixar-se influenciar pelos filósofos, e começam a discutir com eles desde a primeira linha, isto quando já não entram na leitura armadas de uma impenetrável carapaça de prevenções.

Com o Pe. Ladusãns aprendíamos que, no conjunto, as influências se melhoram umas às outras e até as más se tornam boas. Incorporadas à rede dialética, mesmo as cretinices filosóficas mais imperdoáveis em aparência acabam se revelando úteis, como erros naturais que a inteligência tem de percorrer se quer chegar a uma verdade densa, viva, e não apenas acertar a esmo generalidades vazias.

Algumas regras práticas decorrem dessas observações:

1. Quando você se defrontar com um filósofo, em pessoa ou por escrito, verifique se ele se sente à vontade para raciocinar junto com os filósofos do passado, mesmo aqueles dos quais “discorda”. A flexibilidade para incorporar mentalmente os capítulos anteriores da evolução filosófica é a marca do filósofo genuíno, herdeiro de Sócrates, Platão e Aristóteles. Quem não tem isso, mesmo que emita aqui e ali uma opinião valiosa, não é um membro do grêmio: é um amador, na melhor das hipóteses um palpiteiro de talento. Muitos se deixam aprisionar nesse estado atrofiado da inteligência por preguiça de estudar. Outros, porque na juventude aderiram a tal ou qual corrente de pensamento e se tornaram incapazes de absorver em profundidade todas as outras, até o ponto em que já nada podem compreender nem mesmo da sua própria. Uma dessas doenças, ou ambas, eis tudo o que você pode adquirir numa universidade brasileira.

2. Não estude filosofia por autores, mas por problemas. Escolha os problemas que verdadeiramente lhe interessam, que lhe parecem vitais para a sua orientação na vida, e vasculhe os dicionários e guias bibliográficos de filosofia em busca dos textos clássicos que trataram do assunto. A formulação do problema vai mudar muitas vezes no curso da pesquisa, mas isso é bom. Quando tiver selecionado uma quantidade razoável de textos pertinentes, leia-os em ordem cronológica, buscando reconstituir mentalmente a história das discussões a respeito. Se houver lacunas, volte à pesquisa e acrescente novos títulos à sua lista, até compor um desenvolvimento histórico suficientemente contínuo. Depois classifique as várias opiniões segundo seus pontos de concordância e discordância, procurando sempre averiguar onde uma discordância aparente esconde um acordo profundo quanto às categorias essenciais em discussão. Feito isso, monte tudo de novo, já não em ordem histórica, mas lógica, como se fosse uma hipótese filosófica única, ainda que insatisfatória e repleta de contradições internas. Então você estará equipado para examinar o problema tal como ele aparece na sua experiência pessoal e, confrontando-o com o legado da tradição, dar, se possível, sua própria contribuição original ao debate.

É assim que se faz, é assim que se estuda filosofia. O mais é amadorismo, beletrismo, propaganda política, vaidade organizada, exploração do consumidor ou gasto ilícito de verbas públicas.