Desejo de conhecer

Desejo de conhecer

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de janeiro de 2011

“É natural no ser humano o desejo de conhecer.” Quando li pela primeira vez esta sentença inicial da Metafísica de Aristóteles, mais de quarenta anos atrás, ela me pareceu um grosso exagero. Afinal, por toda parte onde olhasse – na escola, em família, nas ruas, em clubes ou igrejas – eu me via cercado de pessoas que não queriam conhecer coisíssima nenhuma, que estavam perfeitamente satisfeitas com suas idéias toscas sobre todos os assuntos, e que julgavam um acinte a mera sugestão de que se soubessem um pouco mais a respeito suas opiniões seriam melhores.

Precisei viajar um bocado pelo mundo para me dar conta de que Aristóteles se referia à natureza humana em geral e não à cabeça dos brasileiros. De fato, o traço mais conspícuo da mente dos nossos compatriotas era o desprezo soberano pelo conhecimento, acompanhado de um neurótico temor reverencial aos seus símbolos exteriores: diplomas, cargos, espaço na mídia. Observava-se essa característica em todas as classes sociais, e até mais pronunciada nas ricas e prósperas. Qualquer ignorante que houvesse recebido em herança do pai uma fábrica, uma empresa de mídia, um bloco de ações da Bolsa de Valores, julgava-se por isso um Albert Einstein misto de Moisés e Lao-Tsé, nascido pronto e habilitado instantaneamente a pontificar sobre todas as questões humanas e divinas sem a menor necessidade de estudo. Se houvesse lido alguma coisa no último número da Time ou do Economist, então, ninguém segurava o bicho: suas certezas erguiam-se até às nuvens, imóveis e sólidas como estátuas de bronze – sempre acompanhadas, é claro, das advertências cépticas de praxe quanto às certezas em geral, sem que a criatura notasse nisso a menor contradição. Caso faltassem os semanários estrangeiros, um editorial da Folha supria a lacuna, fundamentando verdades inabaláveis que só um pedante viciado em estudos ousaria contestar.

Dessas mentes brilhantes aprendi lições inesquecíveis: o comunismo acabou, esquerda e direita não existem, Lula é um neoliberal, a Amazônia é o pulmão do mundo, o Brasil é um modelo de democracia, a Revolução Francesa instaurou o reino da liberdade, a Inquisição queimou cem milhões de hereges, as armas são a causa eficiente dos crimes, o aquecimento global é um fato indiscutível, os cigarros matam pessoas à distância, o narcotráfico é produzido pela falta de dinheiro, as baleias são hienas evoluídas e o Foro de São Paulo é um clube de velhinhos sem poder nenhum.

Se continuasse a dar-lhes ouvidos, hoje eu seria reitor da Escola Superior de Guerra ou talvez senador da República.

Longe do Brasil, encontrei enfermeirinhas, caixeiros de loja e operários da construção civil que, ao saber-me autor de livros de filosofia, arregalavam dois olhos de curiosidade, me crivavam de perguntas e me ouviam com a atenção devota que se daria a um profeta vindo dos céus. Por incrível que pareça, interesse e humildade similares observei entre potentados da indústria e das finanças, figurões da mídia e da política. Até mesmo professores universitários, uma raça que no Brasil é imune a tentações cognitivas, mostravam querer aprender alguma coisa.

Aristóteles tinha razão: o desejo de conhecer é inato. O Brasil é que havia falhado em desenvolver nos seus filhos a consciência da natureza humana, preferindo substituí-la por um arremedo grotesco de sabedoria infusa.

Ato de rotina

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de janeiro de 2011

Quem não sabia, com meses de antecedência, que o Sr. Luiz Inácio iria jogar todo o peso da sua autoridade de presidente numa última cartada espetacular em favor do terrorismo internacional? Quem não sabia que Cesare Battisti, ao fugir para o Brasil, escolhera o melhor lugar do mundo para tipos como ele, o porto seguro, o abrigo infalível de terroristas e narcotraficantes?

“Quem não sabia?” Que pergunta mais idiota. Eu sabia, meus colegas e leitores do Diário do Comércio sabiam, a parcela ínfima da população brasileira que se mantém informada sabia e, é claro, a turma do Foro de São Paulo sabia.

O resto da humanidade ignorava-o por completo. Esperava de Lula outra atitude, simetricamente inversa, compatível com a imagem estereotipada de estadista sereno e pragmático que a mídia internacional forjou para torná-lo atraente aos investidores.

De toda parte, as reações indignadas ao gesto de solicitude paternal do nosso ex-presidente para com um notório terrorista e assassino vieram com aquela expressão de surpresa e desencanto do marido enganado que, até a véspera, confiava cegamente na esposa.

Definitivamente, ninguém na grande mídia ou nos altos círculos da Itália, de qualquer outro país europeu ou dos EUA tem ou quer ter a menor idéia de quem é Luís Inácio Lula da Silva.

Sem a mais leve pretensão de infundir nas cabeças dessas mimosas criaturas um conhecimento que não desejam, do qual fogem como da peste, assinalo aqui alguns lances memoráveis do curriculum vitae do ex-presidente:

1. Ele teve como seu constante mentor espiritual, desde a juventude até a velhice, o ex-frade Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, colaborador fiel do governo de Fidel Castro e co-autor da Constituição Cubana. Jamais renegou o guru.

2. Logo após a queda da URSS, nosso personagem aderiu ao lema “reconquistar na América Latina o que perdemos no Leste Europeu” e para isso fundou em 1990 e presidiu por doze anos o Foro de São Paulo, coordenação estratégica do movimento comunista na América Latina, irmanando num plano estratégico abrangente partidos legais e organizações criminosas. Em comunicado oficial no décimo-quinto aniversário do Foro, as Farc, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, reconheceram que essa iniciativa salvara da extinção iminente o movimento comunista internacional.

3. Ao eleger-se presidente, fingiu afastar-se do Foro de São Paulo mas continuou extra-oficialmente no comando da entidade por intermédio de seus ministro Marco Aurélio Garcia e de seu assessor de imprensa Gilberto Carvalho.

4. Jurando não ter tido jamais qualquer contato com as Farc, ele presidiu assembléias do Foro ao lado do comandante da narcoguerrilha colombiana, Manuel Marulanda, e permitiu que membros do seu governo, junto com figuras estelares do seu partido, se associassem ao mesmo Marulanda na direção da mais importante revista de debates internos do movimento comunista no continente, “America Libre”.

5. Durante seu governo, muitos concorrentes e dissidentes das Farc foram perseguidos e presos no Brasil, enquanto os agentes da organização continuavam operando livremente no território nacional, não só distribuindo drogas, mas fornecendo armas e treinamento a quadrilhas de bandidos locais e aos militantes do MST, protegidos do governo. Quando o representante das Farc no país, Olivério Medina, foi preso pela Polícia Federal, o partido e o governo de Lula se mobilizaram imediatamente para libertá-lo, dando-lhe, de quebra, a cidadania brasileira e um emprego oficial para sua esposa no ministério então chefiado pela atual presidente da República, Dilma Rousseff (esta negou ter qualquer envolvimento no caso, até que sua assinatura no decreto de nomeação fosse publicada na imprensa). O único militante farqueano que permaneceu preso no Brasil foi Juan Carlos Ramirez Abadia. Esta exceção aparentemente misteriosa explica-se porque o referido, agindo evidentemente à margem das Farc, se envolveu num plano para seqüestrar o filho de Lula, Luís Cláudio (v. http://www.eltiempo.com/justicia/chupeta-frustro-plan-de-secuestro-de-hijo-de-lula_8731901-4).

6. O governo Lula sempre rejeitou o pedido colombiano de aplicar às Farc o qualificativo oficial de “organização terrorista”, propondo, ao contrário, que a quadrilha de narcotraficantes fosse premiada por seus crimes mediante a anistia geral e a transmutação da coisa em partido político legal.

7. Em dois discursos oficiais, publicados no site da Presidência da República mas jamais noticiados por qualquer órgão de mídia no Brasil, ele confessou a interferência direta do Foro e de São Paulo e dele próprio na política interna da Venezuela e de outros países, para colocar e manter no poder tipos como Hugo Chávez, Morales e tutti quanti.

8. É verdade que, no campo econômico, Lula se comportou direitinho e fez tudo quanto o Banco Mundial mandou. Mas só agiria de outro modo se fosse louco. Se o próprio Lênin fez o diabo para acalmar e seduzir os investidores internacionais enquanto consolidava o poder interno dos comunistas na Rússia, por que haveria Lula de entrar em guerra com o capitalismo planetário enquanto ia discretamente ajudando a entregar aos agentes do Foro de São Paulo o controle de várias nações latino-americanas? A tática da dupla face funcionou tão bem que, numa mesma semana, ele foi homenageado pelo Foro Econômico de Davos por sua adesão ao capitalismo e no Foro de São Paulo por sua fidelidade ao comunismo. Os que agora explodem de cólera ante a proteção que ele deu a Césare Battisti só conhecem, decerto, a primeira face. Por isso vêem nessa decisão obscena uma exceção repentina, incoerente, aberrante, inexplicável. Quem conhece a segunda entende que foi um ato de rotina, o último de uma longa série. Incoerência é uma coisa, duplicidade é outra.

Publicado com o título “Um ato de rotina”

Camisa-de-força

Camisa-de-força

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de janeiro de 2011

As declarações recentes da Igreja Anglicana do Brasil em favor do Projeto de Lei 122/06 fornecem-nos o exemplo completo e acabado da duplicidade de linguagem a que é preciso recorrer quando se defende o indefensável. Embora o estilo bífido seja o mais notório hábito do demônio, seu emprego não merecendo respeito nem tolerância sobretudo quando praticado em nome da religião, isto não implica, da parte de seus usuários, nenhuma intenção consciente de ludibriar o ouvinte ou leitor. Ao contrário: nos dias que correm, aquela ambigüidade sorrateira, perversa, que encobre com as mesmas palavras as ações mais opostas e contraditórias, já se tornou em muitas pessoas um vício automatizado e quase que uma segunda natureza. Isso não as desculpa de maneira alguma: o mal não se faz menos detestável porque uma rotina entorpecente o tornou indiscernível do bem.

Em si, o documento não tem aquele mínimo de consistência que o tornaria merecedor de uma resposta; está abaixo da possibilidade de ser debatido; só pode ser analisado como sintoma de vícios de pensamento que hoje em dia são gerais e endêmicos na sociedade brasileira.

O objetivo nominal com que se apresenta é contestar, com ares de quem passa pito, algumas objeções correntes àquela proposta legislativa, especialmente as que a vêem como instrumento destinado a limitar severamente a liberdade de expressão.

Crítica comum ao PLC n.º 122/06 é a de que o mesmo proibiria as pessoas de ‘criticarem a homossexualidade’ (sic) e que implicaria numa ‘ditadura’, numa ‘mordaça’ àqueles que ‘não concordam’ com o ‘estilo de vida homossexual’. Contudo, essas colocações se pautam ou em um simplismo acrítico ou em má-fé de seus defensores.

Contra essa objeção, alega a Igreja Anglicana que naquele projeto de lei “não há criminalização específica da discriminação não-violenta por orientação sexual ou por identidade de gênero”. Assim, estaria resguardado o direito à crítica: “Opiniões respeitosas, embora críticas, à pessoa homossexual não configurarão crime por força do PLC n.º 122/06”.

Se o leitor suspira aliviado diante dessas observações, faria melhor em notar que elas significam o oposto do que parecem dizer. Prossegue o documento: “Criticar a homossexualidade e não a pessoa homossexual concreta implica em (sic) um discurso segregacionista … que se equipara a discursos de ódio que não pode ser tolerado.” A redação abominável mal esconde o sentido ameaçador daquilo que pretende vender como inofensivo: você pode criticar o homossexual por qualquer outra coisa – por usar uma gravata berrante, por cometer tantos erros de português quanto o porta-voz da Igreja Anglicana ou por soltar gases no elevador – mas nunca por sua conduta homossexual. Pior: não pode falar mal do homossexualismo em si, genericamente, sem qualquer referência a uma pessoa concreta, pois ser contra o homossexualismo é “discurso de ódio”, obviamente punível pelo PLC-122/06. Mais claramente ainda, o documento afirma que todas as modalidades de discriminação serão castigadas, ainda que “sejam tais ações perpetradas por motivação moral, ética, filosófica ou psicológica.” Quer dizer: a motivação moralmente elevada e a alta elaboração intelectual da crítica ao homossexualismo não a tornarão menos criminosa, nem menos punível.

Notem que aí o conceito de discriminação abrange quatro ações possíveis: agredir, constranger, intimidar e vexar. Vexar, prossegue o documento citando o Dicionário Houaiss, é “causar vexame ou humilhação, sendo vexame tudo o que causa vergonha ou afronta”. Ora, qualquer ensinamento que tente mostrar a um cidadão o caráter imoral ou pecaminoso da sua conduta, mesmo que o faça nos termos mais gentis e carinhosos do mundo, não tem como deixar de lhe infundir um sentimento de vergonha. Mais que vergonha, culpa e arrependimento, que não vêm sem humilhação. Em suma: a simples pregação moral que tente induzir um indivíduo a abandonar as práticas homossexuais já está catalogada de antemão como crime e nivelada às ações de “agredir, constranger e intimidar”.

A permissão de “opiniões respeitosas, embora críticas” é com toda a evidência uma armadilha destinada a proibir toda e qualquer opinião crítica, mesmo moralmente digna e fundada em motivos intelectualmente relevantes.

A própria escolha do adjetivo revela a ambigüidade maliciosa do autor do escrito. “Opiniões respeitosas”, diz ele. Respeitosas a quem e a quê? Respeitosas à pessoa humana somente ou respeitosa aos seus hábitos homossexuais também? É evidente que, se alguém considera um hábito respeitável, não tem por que criticá-lo do ponto de vista moral; se o critica, é porque não o considera respeitável de maneira alguma. Dito de outro modo: você pode criticar o homossexual, desde que aceite sua conduta homossexual como respeitável e superior a críticas e desde que se abstenha de dizer até mesmo alguma palavra contra a homossexualidade em geral.

Chamar isso de mordaça é eufemismo. Mordaça impede apenas de falar, não de pensar. O PL-122/06 não é uma mordaça: é uma camisa-de-força mental que impõe a todos os possíveis críticos do homossexualismo uma obrigação psicológicamente impossível, a de criticar sem críticas. Muito mais que restringir a liberdade de expressão, estrangula a liberdade de pensamento. É uma lei propositadamente absurda, feita na base da estimulação contraditória para instilar na população um estado de perplexidade apatetada, temor irracional e obediência canina. Se esse monstrengo jurídico digno da Rainha de Copas nasceu da pura confusão mental de seus autores ou de um propósito maquiavélico de reduzir o público à menoridade mental, é algo que se pode conjeturar. As duas hipóteses não se excluem – nem no projeto em si, nem na sua apologia anglicana.