Uma geração de predadores

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de junho de 2011

Desde que me distanciei do Brasil, tenho visto a inteligência dos meus compatriotas cair para níveis que às vezes ameaçam raiar o sub-humano. Não posso medi-la pela produção literária, que veio rareando até tornar-se praticamente inexistente num país que já teve alguns dos melhores escritores do mundo. Meço-a pelas teses universitárias que me chegam, cada vez mais repletas de solecismos e contra-sensos grotescos, pelos comentários de jornal, pelos pronunciamentos das chamadas “autoridades” e, de modo geral, pelas discussões públicas. Em todo esse material, o que mais salta aos olhos não é o vazio de idéias, não é a estupidez dos raciocínios, não é nem mesmo a miséria da linguagem: é a incapacidade geral de distinguir entre o essencial e o acessório, o decisivo e o irrelevante. Não há problema, não há tema, não há assunto que, uma vez trazido ao palco – ou picadeiro –, não seja infindavelmente roído pelas beiradas, como se não tivesse um centro, um significado, um sentido em torno do qual articular uma discussão coerente. Cada um que abre a boca quer externar apenas algum sentimento subjetivo deslocado e extemporâneo, exibir bom-mocismo, angariar simpatias ou votos, como se se tratasse de uma rodada de apresentações pessoais num grupo de psicoterapia e não de uma conversa sensata sobre – digamos – alguma coisa. A coisa, o objeto, o fato, o tema, este, coitado, fica esquecido num canto, como se não existisse, e depois de algum tempo cessa mesmo de existir. A impressão que me sobra é a de que toda a população legente e escrevente está sofrendo de síndrome de déficit de atenção. Ninguém consegue fixar um objeto na mente por dez segundos, a imaginação sai logo voando para os lados e tecendo, embevecida, um rendilhado de frivolidades em torno do nada.

Se me perguntarem quais são os problemas essenciais do Brasil, responderei sem a menor dificuldade:

1) A matança de brasileiros, entre quarenta e cinqüenta mil por ano.

2) O consumo de drogas, que aumenta mais do que em qualquer país vizinho, e que alguns celerados pretendem aumentar ainda mais mediante a liberação do narcotráfico – o maior prêmio que as Farc poderiam receber por décadas de morticínio.

3) A absoluta ausência de educação num país cujos estudantes tiram sempre os últimos lugares nos testes internacionais, concorrendo com crianças de nações bem mais pobres; num país, mais ainda, onde se aceita como ministro da Educação um sujeito que não aprendeu a soletrar a palavra “cabeçalho” porque jamais teve cabeça, e onde se entende que a maior urgência do sistema escolar é ensinar às crianças as delícias da sodomia – sem dúvida uma solução prática para estudantes e professores, já que o exercício dessa atividade não requer conhecimentos de português, de matemática ou de coisa nenhuma exceto a localização aproximada partes anatômicas envolvidas.

4) A falta cada vez maior de mão-de-obra qualificada de nível superior, que tem de ser trazida de fora porque das universidades não vem ninguém alfabetizado.

5) A dívida monstruosa acumulada por um governo criminoso que não se vexa de estrangular as gerações vindouras para conquistar os votos da presente, e que ainda é festejado, por isso, como o salvador da economia nacional.

6) A completa impossibilidade da concorrência democrática num quadro onde governo e oposição se aliaram, com o auxílio da grande mídia e a omissão cúmplice da classe rica, para censurar e proibir qualquer discurso político que defenda os ideais e valores majoritários da população, abomináveis ao paladar da elite.

7) A debilitação alarmante da soberania nacional, já condenada à morte pela burocracia internacional em ascensão e pelo cerco continental do Foro de São Paulo (aquela entidade que até ontem nem mesmo existia, não é?).

8) A destruição completa da alta cultura, num estado catastrófico de favelização intelectual onde a função de respiradouro para a grande circulação de idéias no mundo, que caberia à classe acadêmica como um todo, é exercida praticamente por um único indivíduo, um último sobrevivente, que em retribuição leva pedradas e cuspidas por todo lado, especialmente dos plagiários e usurpadores que vivem de parasitar o seu trabalho.

Se me perguntam a causa desses oito vexames colossais, digo que é a coisa mais óbvia do mundo: quarenta anos atrás, as instituições que se gabam de ser as maiores universidades brasileiras lançaram na praça uma geração de pseudo-intelectuais morbidamente presunçosos, que na juventude já se pavoneavam de ser “a parcela mais esclarecida da população”. Hoje essas mentes iluminadas dominam tudo – sistema educacional, partidos políticos, burocracia estatal, o diabo –, moldando o país à sua imagem e semelhança. Matança, dívidas, emburrecimento geral, debacle do ensino, é tudo mérito de um reduzido grupo de cérebros de péssima qualidade intoxicados de idéias bestas e vaidade infernal. Dentre todas as gerações de intelectuais brasileiros, a pior, a mais predatória, a mais destrutiva.

Se querem saber agora por que os temas fundamentais não podem ser enxergados e discutidos na sua essência, por que as atenções são sempre desviadas para detalhes laterais e por que, em suma, nenhum problema neste país tem solução, a resposta também não é difícil: quem molda os debates públicos, por definição, é a elite dominante, e esta não permite que nada seja discutido exceto nos moldes do seu vocabulário, dos seus interesses, da sua agenda, da sua irresponsabilidade psicótica, da sua ambição megalômana, da sua auto-adoração abjeta.

Enquanto vocês não perderem o respeito por essa gente, nada de sério se poderá discutir no Brasil.

Que é uma sociedade justa?

Que é uma sociedade justa?

Olavo de Carvalho

OrdemLivre.org, 1 de junho de 2011

Quando se pergunta qual o conceito que fazemos de uma sociedade justa, a palavra “conceito” entra aí com um sentido antes americano – pragmatista – do que greco-latino: em vez de designar apenas a fórmula verbal de uma essência ou ente, significa o esquema mental de um plano a ser realizado. Nesse sentido, evidentemente, não tenho conceito nenhum de sociedade justa, pois, persuadido de que não cabe a mim trazer ao mundo tão maravilhosa coisa, também não me parece ocupação proveitosa ficar inventando planos que não tenciono realizar.

O que está ao meu alcance, em vez disso, é analisar a ideia mesma de “sociedade justa” – o seu conceito no sentido greco-latino do termo – para ver se faz sentido e se tem alguma serventia.

Desde logo, os atributos de justiça e injustiça só se aplicam aos entes reais capazes de agir. Um ser humano pode agir, uma empresa pode agir, um grupo político pode agir, mas “a sociedade”, como um todo, não pode. Toda ação subentende a unidade da intenção que a determina, e nenhuma sociedade chega a ter jamais uma unidade de intenções que justifique apontá-la como sujeito concreto de uma ação determinada. A sociedade, como tal, não é um agente: é o terreno, a moldura onde as ações de milhares de agentes, movidos por intenções diversas, produzem resultados que não correspondem integralmente nem mesmo aos seus propósitos originais, quanto mais aos de um ente genérico chamado “a sociedade”!

“Sociedade justa” não é portanto um conceito descritivo. É uma figura de linguagem, uma metonímia. Por isso mesmo, tem necessariamente uma multiplicidade de sentidos que se superpõem e se mesclam numa confusão indeslindável. Isso basta para explicar por que os maiores crimes e injustiças do mundo foram praticados, precisamente, em nome da “sociedade justa”. Quando você adota como meta das suas ações uma figura de linguagem imaginando que é um conceito, isto é, quando você se propõe realizar uma coisa que não consegue nem mesmo definir, é fatal que acabe realizando algo de totalmente diverso do que esperava. Quando isso acontece há choro e ranger de dentes, mas quase sempre o autor da encrenca se esquiva de arcar com suas culpas, apegando-se com tenacidade de caranguejo a uma alegação de boas intenções que, justamente por não corresponderem a nenhuma realidade identificável, são o melhor analgésico para as consciências pouco exigentes.

Se a sociedade, em si, não pode ser justa ou injusta, toda sociedade abrange uma variedade de agentes conscientes que, estes sim, podem praticar ações justas ou injustas. Se algum significado substantivo pode ter a expressão “sociedade justa”, é o de uma sociedade onde os diversos agentes têm meios e disposição para ajudar uns aos outros a evitar atos injustos ou a repará-los quando não puderem ser evitados. Sociedade justa, no fim das contas, significa apenas uma sociedade onde a luta pela justiça é possível. Quando digo “meios”, isso quer dizer: poder. Poder legal, decerto, mas não só isso: se você não tem meios econômicos, políticos e culturais de fazer valer a justiça, pouco adianta a lei estar do seu lado. Para haver aquele mínimo de justiça sem o qual a expressão “sociedade justa” é apenas um belo adorno de crimes nefandos, é preciso que haja uma certa variedade e abundância de meios de poder espalhados pela população em vez de concentrados nas mãos de uma elite iluminada ou sortuda. Porém, se a população mesma não é capaz de criar esses meios e, em vez disso, confia num grupo revolucionário que promete tomá-los de seus atuais detentores e distribuí-los democraticamente, aí é que o reino da injustiça se instala de uma vez por todas. Para distribuir poderes, é preciso primeiro possuí-los: o futuro distribuidor de poderes tem de tornar-se, antes, o detentor monopolístico de todo o poder. E mesmo que depois venha a tentar cumprir sua promessa, a mera condição de distribuidor de poderes continuará fazendo dele, cada vez mais, o senhor absoluto do poder supremo.

Poderes, meios de agir, não podem ser tomados, nem dados, nem emprestados: têm de ser criados. Caso contrário, não são poderes: são símbolos de poder, usados para mascarar a falta de poder efetivo. Quem não tem o poder de criar meios de poder será sempre, na melhor das hipóteses, o escravo do doador ou distribuidor.

Na medida em que a expressão “sociedade justa” pode se transmutar de figura de linguagem em conceito descritivo razoável, torna-se claro que uma realidade correspondente a esse conceito só pode existir como obra de um povo dotado de iniciativa e criatividade – um povo cujos atos e empreendimentos sejam variados, inéditos e criativos o bastante para que não possam ser controlados por nenhuma elite, seja de oligarcas acomodados, seja de revolucionários ambiciosos.

A justiça não é um padrão abstrato, fixo, aplicável uniformemente a uma infinidade de situações padronizadas. É um equilíbrio sutil e precário, a ser descoberto de novo e de novo entre as mil e uma ambiguidades de cada situação particular e concreta. No filme de Sidney Lumet, “The Verdict” (1982), o advogado falido Frank Galvin, esplendidamente interpretado por Paul Newman, chega a uma conclusão óbvia após ter alcançado uma tardia e improvável vitória judicial: “Os tribunais não existem para fazer justiça, mas para nos dar uma oportunidade de lutar pela justiça”. Nunca me esqueci dessa lição de realismo. A única sociedade justa que pode existir na realidade, e não em sonhos, é aquela que, reconhecendo sua incapacidade de “fazer justiça” – sobretudo a de fazê-la de uma vez para sempre, perfeita e uniforme para todos –, não tira de cada cidadão a oportunidade de lutar pela modesta dose de justiça de que precisa a cada momento da vida.

Má conselheira

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de maio de 2011

Quando reagem aos ataques cada vez mais virulentos que a religião sofre da parte de gayzistas, abortistas, feministas enragées, neocomunistas, iluministas deslumbrados etc., certos católicos e protestantes invertem a ordem das prioridades: colocam menos empenho em vencer o adversário do que em evitar, por todos os meios, “combatê-lo à maneira do Olavo de Carvalho”. O que querem dizer com isso é que o Olavo de Carvalho é violento, cruel e impiedoso, humilhando o inimigo até fazê-lo fugir com o rabo entre as pernas, ao passo que eles, as almas cristianíssimas, piedosíssimas, boníssimas, preferem “odiar o pecado, jamais o pecador”. Daí que, em vez de ferir os maliciosos com o ferro em brasa da verdade feia, prefiram admoestá-los em tom de correção fraterna ou, no máximo, argumentar genericamente em termos de direitos e valores.

São, em primeiro lugar, péssimos leitores da Bíblia. Cristo, é verdade, mandou odiar o pecado e não o pecador. Mas isso se refere ao sentimento, à motivação íntima, não à brandura ou dureza dos atos e das palavras expressas. Ele nunca disse que é possível reprimir o pecado sem magoar, contrariar e, nos casos mais obstinados, humilhar o pecador. Quando expulsou os comerciantes do templo, Ele chicoteou “pecados” ou o corpo dos pecadores? Quando chamava os incrédulos de “raça de víboras”, Ele se dirigia a noções abstratas, no ar, ou a ouvidos humanos que sentiam a dor da humilhação? Quando disse que o molestador de crianças deveria ser jogado ao mar com uma pedra no pescoço, Ele se referia ao pescoço do pecado ou ao do pecador? O pecado, não só nesses casos em particular, mas em todos os casos possíveis e imagináveis, só pode ser reprimido, punido ou combatido na pessoa do pecador, não em si mesmo e abstratamente. Discursar genericamente sobre o pecado, sem nada fazer contra o agente que o pratica, é transformar a moral numa questão de mera teoria, sem alcance prático.

Em segundo lugar, não têm discernimento moral. Não o têm, pelo menos, na medida suficiente para avaliar a gravidade relativa dos atos privados e públicos, nem para distinguir entre a paixão da carne e o ódio aberto, demoníaco, ao Espírito Santo.

Mais imbuídos de moralismo sexual burguês que de autêntica inspiração evangélica, abominam, na mesma medida, a prática homossexual em si e o uso dela como instrumento público de ofensa deliberada a Jesus, à Igreja, a tudo quanto é sagrado. Não sabem a diferença entre a tentação carnal, que é humana, e o impulso de humilhar a cristandade, que é satânico. Falam de uma coisa e da outra no mesmo tom, como se o pecado contra o Espírito Santo fosse tão perdoável quanto uma fraqueza da carne, um deslize, um vício qualquer. Assim procedendo, colocam-se numa posição logicamente insustentável. Sentindo então a própria vulnerabilidade sem perceber com clareza onde está o ponto fraco, vacilam, tremem e passam a atenuar seu discurso como quem pede licença ao adversário para ser o que é, para crer no que crê. Daí é que lhes vem o temor servil de “combater à maneira do Olavo de Carvalho”, a compulsão de marcar distância daquele que não se deixa inibir por idêntica fragilidade de coração.

É verdade que o Olavo de Carvalho usa às vezes palavras duras, deprimentes, humilhantes. Mas ele jamais elevou sua voz em público para condenar qualquer conduta privada, por abominável que lhe parecesse. De pecados privados fala-se em privado, com discrição, prudência, compaixão. Pode-se também falar deles em público, mas genericamente, sem apontar o dedo para ninguém. E o tom, em tal circunstância, deve ser de exortação pedagógica, não de acusação. Examinem a conduta do Olavo de Carvalho e digam se alguma vez ele se afastou dessas normas. Quando ele humilha o pecador em público, é sempre por conta de pecados públicos, que não vêm nunca de uma simples fraqueza pessoal e sim de uma ação cultural ou política racional, premeditada, maliciosa até à medula.

Homossexualismo é uma coisa, movimento gay é outra. O primeiro é um pecado da carne, o segundo é o acinte organizado, politicamente armado, feroz e sistemático, à dignidade da Igreja e do próprio Deus – algo que vai muito além até mesmo da propaganda ateística, já que esta se constitui de meras palavras e aquele de atos de poder. Atos de prepotência, calculados para humilhar, atemorizar e aviltar, preparando o caminho para a agressão física, a repressão policial e o morticínio. O cinismo máximo dessa gente é alardear choramingando a violência pública contra os gays, estatisticamente irrisória, e alegá-la justamente contra a comunidade mais perseguida e mais ameaçada do universo, que já forneceu algumas centenas de milhões de vítimas aos rituais sangrentos dos construtores de “mundos melhores”. O indivíduo que se deixou corromper ao ponto de entregar-se a esse exercício de mendacidade psicótica com a boa consciência de estar servindo a uma causa humanitária está longe de poder ser atingido, na sua alma, por exortações morais, apelos à “liberdade de religião”, queixas formuladas em linguagem de debate acadêmico pó-de-arroz ou mesmo argumentações racionais maravilhosamente fundamentadas. Só uma coisa pode inibi-lo: o temor da humilhação pública, que, nas almas dos farsantes e hipócritas, é sempre exacerbado e, às vezes, o seu único ponto sensível.

Sim, o Olavo de Carvalho usa às vezes palavras brutais. Mas ele o faz por premeditação pedagógica, que exclui, por hipótese, qualquer motivação passional, especialmente o ódio, ao passo que outros só se esquivam de usar essas palavras porque têm medo de parecer malvados, porque têm horror de dar má impressão e buscam abrigo sob uma capa de bom-mocismo, de desculpas evangélicas perfeitamente deslocadas, nisto concorrendo em falsidade e hipocrisia com os próceres do gayzismo.

Cometem, aliás, o mesmo erro suicida em que os liberais brasileiros caíram desde duas décadas atrás, quando, fugindo ao exemplo do Olavo de Carvalho, preferiram debater economia de mercado com os petistas em vez de denunciar o Foro de São Paulo e a lista inumerável de seus crimes. Hoje estão liquidados. A covardia é sempre má conselheira.