Debate e preconceito

Debate e preconceito

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de junho de 2012

É ilusório esperar que a racionalidade científica prevaleça num confronto que envolve muitos interesses e paixões, mas não é demais desejar que algumas pessoas capacitadas acompanhem e julguem o debate desde um ponto de vista menos enviesado e mais compatível com o estado atual dos conhecimentos.

O número dessas pessoas é, com certeza, mínimo. O que se observa nas disputas correntes é que cada facção, no empenho de conquistar a adesão do povo inculto e distraído, procura não só simplificar suas idéias e propostas, comprimindo-as nuns quantos slogans e chavões que possam ser repetidos até impregnar-se no subconsciente da multidão como imperativos categóricos, porém busca simplificar ainda mais as do partido contrário, reduzindo-as a um esquema caricatural próprio a despertar incompreensão e repugnância. Para os fins práticos da disputa legislativa, é importante que tanto a adesão quanto a repulsa sejam alcançadas da maneira mais rápida possível, contornando discussões aprofundadas que poderiam amortecer as convicções da platéia ou adiar perigosamente a sua tomada de posição. Isso implica que as idéias do adversário não possam nunca ser examinadas objetivamente nos seus próprios termos e segundo suas próprias intenções, mas tenham de ser sempre deformadas para parecer tão repulsivas que a mera tentação de lhes conceder um exame benevolente soe ela própria como repulsiva, inaceitável, indecente.

O debate assim conduzido é, portanto, sempre e necessariamente uma confrontação de preconceitos, no sentido mais literal e etimológico do termo. Esse sentido contrasta de maneira chocante com o uso polêmico que no curso do próprio debate se faça desse termo como rótulo infamante. Carimbar as idéias do adversário como “preconceitos”, dando a entender que não passam de tomadas de posição irracionais e sem fundamento é, na maior parte dos casos, nada mais que um pretexto para não ter de examinar as razões que as fundamentam, muito menos a possibilidade de haverem nascido de boas intenções. Aquilo que aí se chama “debate” não é portanto nenhuma confrontação de idéias, mas uma mera disputa de impressões positivas e negativas, um jogo de cena.

É também natural que, justamente por isso, os debatedores procurem abrigar-se sob a proteção da “ciência”, mas nenhuma acumulação de dados estatísticos, nenhuma carga de citações acadêmicas ou mesmo de alegações cientificamente válidas em si mesmas dará qualquer legitimidade científica a um argumento, se este não inclui a reprodução fiel e a discussão científica dos argumentos antagônicos. Ciência é, por definição, a confrontação de hipóteses: se, em vez de ser examinadas extensivamente, as opiniões adversas são escamoteadas, caricaturadas, deformadas ou expulsas in limine da discussão sob um pretexto qualquer, de pouco vale você adornar a sua própria com as mais belas razões científicas do mundo. Não se faz ciência acumulando opiniões convergentes, mas buscando laboriosamente a verdade entre visões divergentes.

O teste da dignidade científica de um argumento reside precisamente na objetividade paciente com que ele examina os argumentos adversos. Quem logo de cara os impugna como “preconceitos” nada mais faz do que tentar criar contra eles um preconceito, dissuadindo a platéia de examiná-los.

Que as pessoas mais inclinadas a usar desse expediente sejam em geral justamente aquelas que mais apregoam a “diversidade”, a “tolerância” e o “respeito às opiniões divergentes”, não deve ser necessariamente interpretado como hipocrisia consciente, mas muitas vezes como sintoma de uma deformidade cognitiva bastante grave; deformidade que, por afetar pessoas influentes e formadores de opinião, arrisca trazer danos para toda a sociedade.

Quando digo “deformidade cognitiva”, isso não deve ser compreendido no sentido de mera deficiência intelectual moralmente inofensiva. A recusa de examinar as opiniões alheias nos seus próprios termos e segundo suas intenções originárias equivale à recusa de enxergar no adversário um rosto humano, à compulsão de reduzi-lo ao estado de coisa, de obstáculo material a ser removido. Essa compulsão é de índole propriamente psicopática (v. a ótima entrevista da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa da Silva em http://www.youtube.com/watch?v=m_wUDsshdvk). Quando legitimada em nome de belos pretextos humanitários, torna-se uma força ainda mais desumanizante, pois remove a conduta moral do campo da vida psíquica concreta para o da simples  adesão a um grupo político ou programa ideológico. O ser humano então deixa de ser julgado bom ou mau por seus atos e sentimentos pessoais, mas por aderir à facção previamente autodefinida como detentora monopolística das boas intenções — facção dispensada, por isso mesmo, de conceder ao adversário a dignidade da atenção compreensiva. A percepção direta das motivações humanas é aí substituída por um sistema mecânico de reações estereotípicas, altamente previsíveis e controláveis. E quando o programa já se tornou tão disseminado na mídia, no sistema de ensino e no vocabulário corrente ao ponto de já não precisar apresentar-se explicitamente como tal, mas passa a soar como a voz impessoal e neutra do senso comum, então a desumanização preventiva do adversário torna-se o procedimento usual e dominante nos debates públicos.

Não é preciso dizer que esse estado de coisas já vigora no Brasil desde há pelo menos uma década. Estamos em pleno império da manipulação psicopática da opinião pública.

A camuflagem da camuflagem

A camuflagem da camuflagem

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de junho de 2012

Repito, pela enésima vez, o conselho de Georg Jellinek: no estudo da sociedade, da política e da História, a precaução número um é distinguir entre os processos que nascem de uma ação consciente e os que resultam da confluência impremeditada de fatores diversos.

Ao longo da minha vida de estudos, fui colhendo, aqui e ali, alguns preceitos que, por sua evidência máxima e seu poder elucidativo, acabaram se incorporando definitivamente às minhas faculdades de percepção e continuam guiando os passos da minha vacilante inépcia entre as brumas e a fumaça da confusão contemporânea.

Esse é um deles.

O vício de tudo querer reduzir a “leis históricas”, “estruturas”, “causas” e outras forças anônimas, suprimindo do panorama os agentes conscientes e todo elemento de premeditação, só tem de científico a aparência enganosa que deslumbra e fascina multidões de estudantes devotados a alcançar, como supremo objetivo na vida, a perfeita macaqueação do discurso pedante sem o qual não se avança na carreira acadêmica.

Isso é tão prejudicial à compreensão dos fatos quanto o velho mito carlyleano que fazia do universo histórico inteiro o cenário passivo da ação criadora de uns quantos indivíduos notáveis, heróis ou monstros sobre-humanos.

Jellinek acertou na mosca quando transpôs ao cenário maior da história e da sociedade um dado do senso comum, que até os mais burros e inexperientes sabem aplicar na existência de todos os dias, e que mais tarde Ortega y Gasset resumiria na fórmula exemplar: “La vida es lo que hacemos… y lo que nos pasa.” Nossa vida resulta da mistura entre aquilo que fazemos e aquilo que nos vem de fora sem qualquer iniciativa da nossa parte.

O culto unilateral das causas impessoais resulta, em parte, de um preconceito positivista e marxista que aliás nem Comte nem Marx jamais subscreveriam, em parte de um instintivo desejo humano de pular fora de toda responsabilidade pessoal concreta (fazendo, por exemplo, dos criminosos as vítimas inermes e santas da má distribuição de renda). Mas resulta também, e com muita freqüência, da astúcia dos próprios agentes históricos, que se escondem por trás de forças anônimas para não ser pegos de calças na mão em pleno ato de implementar algum plano que dependa, para o seu sucesso, da discrição e do segredo. Não há nada de estranho em que esses agentes, com aquela expressão inconfundível de dignidade ofendida que só os mais rematados hipócritas conseguem imitar com perfeição, recorram ao rótulo infamante de “teoria da conspiração” sempre que alguém os acuse de fazer o que estão fazendo. Também é compreensível que ninguém tenha feito apelo mais reiterado e constante a essa camuflagem do que aquele movimento que, desde suas origens, assumiu a clandestinidade como condição essencial do seu modo de ação e a duplicidade escorregadia da dialética como seu linguajar oficial. Refiro-me, é claro, ao movimento comunista. E mais compreensível ainda é que essa auto-ocultação sistemática tenha redobrado de eficácia desde o momento em que Antonio Gramsci ensinou a seus companheiros que a mentira e o fingimento não eram apenas um instrumento tático, por obrigatório e consagrado que fosse, mas sim a própria natureza íntima, a essência e a chave do processo revolucionário como um todo.

Sim, a verdade é essa. Despido dos adornos humanitários que o embelezaram ex post facto, e que comparados à truculência grossa e crua de seus antecessores soviéticos  lhe dão mesmo uma aparência angélica, o gramscismo não é nada mais, nada menos, que a mais completa, abrangente e meticulosa sistematização do engodo como método essencial da ação política — e o é em escala ainda mais vasta e em sentido ainda mais radical do que o Príncipe de Maquiavel, que lhe serviu de inspiração remota e esboço primitivo.

Como descrever, senão nesses termos, uma estratégia sutil planejada para que todas as pessoas vão se tornando socialistas pouco a pouco, sem percebê-lo, e da noite para o dia acordem em plena ditadura socialista sem ter a menor idéia de como, quando e por que mãos se operou tão tremendo milagre?

Essa é, sem nenhuma imprecisão ou exagero, a definição e a fórmula da estratégia de Gramsci para a conquista do poder absoluto pelo movimento comunista.

Mas toda camufagem que se preze é dupla: encobre primeiro o objeto que quer ocultar e depois se camufla a si mesma, para passar despercebida. Tão logo as obras de Antonio Gramsci começaram a ser publicadas em 1947, a intelligentzia esquerdista se apressou a classificá-las – e a elite conservadora a aceitá-las sonsamente – como expressões de um “marxismo ocidental” original, não-dogmático, marginal e independente do tronco oficial do movimento comunista.

O que aconteceu foi que, após ter sido oficialmente impugnada até à morte de Stalin em 1955, a estratégia gramsciana foi adotada integral e entusiasticamente pela KGB e, desde o início dos anos 60, aplicada em todo o Ocidente com a pletora de recursos financeiros e instrumentos de ação acessíveis àquela que era, e é ainda sob outro nome, a maior e mais poderosa organização de qualquer tipo que já existiu no mundo. Na verdade, o próprio Stálin só rejeitou a parte do gramscismo que preconizava a independência dos partidos comunistas nacionais, mas não deixou de se utilizar de técnicas da “revolução cultural” desde a década de 30, especialmente nos EUA.

Esses dois fatos poderiam ter sido antevistos em tempo, com um pouco de inteligência. No entanto, mesmo depois de bem comprovados pelos documentos dos Arquivos de Moscou, ainda há quem teime em ignorá-los.

O poder anônimo

O poder anônimo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de junho de 2012

Distinguindo entre a ação das forças da natureza e a do poder humano, Romano Guardini assinalava que esta se distingue por um senso de propósito, portanto pela presença de um agente humano responsável. É tão absurdo perguntar quem foi o culpado por um terremoto quanto imaginar um poder político, econômico, militar ou cultural sem um ou vários agentes responsáveis por trás dele. Guardini escreveu isso no seu livro Der Macht (“O Poder”), de 1951. Já naquela época ele notava um fenômeno que então despontava no horizonte, mas que com o tempo só fez crescer até proporções colossais: o poder anônimo, sem agentes responsáveis conhecidos ou conhecíveis.

Ninguém, hoje em dia, escapa à experiência de ligar para uma empresa em busca de assistência técnica, ou de explicações sobre uma cobrança indevida, e ser atendido por sucessivas camadas de secretárias eletrônicas, em busca de um inacessível gerente humano.

Mas esse é só o aspecto mais banal e cotidiano do fenômeno. Mudanças políticas, jurídicas e culturais que afetam brutalmente a vida da população são quase que diariamente introduzidas em vários países ao mesmo tempo, sem que o cidadão tenha a menor possibilidade de rastrear de onde partiram, quem responde por elas.

O crescimento exponencial da administração pública, sua íntima associação com organismos internacionais, com macro-empresas sem nacionalidade definida e com uma rede imensurável de agências políticas não-governamentais faz do processo decisório um labirinto onde mesmo o estudioso especializado tem dificuldade de se orientar. Com freqüência as discussões no Parlamento ou na mídia não passam de uma camuflagem destinada a acobertar decisões que já vêm prontas de instâncias superiores inacessíveis ao olhar do público.

Um fator complicante é acrescentado pela extensão progressiva e ilimitada do campo de atuação dos serviços secretos. Antigamente restritos às áreas de interesse  militar, desde o começo do século XX passaram a interferir ativamente na política, na cultura, na educação, na indústria de comunicações e, por fim, cada vez mais na vida privada dos cidadãos.

Para fazer uma idéia da força avassaladora com que essas organizações influenciam e às vezes chegam a determinar não só o curso dos acontecimentos como até mesmo a imagem pública (falsa) que se faz dele, basta ter notícia do que se passou quando, no começo dos anos 90, os Arquivos de Moscou foram abertos, por um curto período, ao exame dos pesquisadores ocidentais: praticamente tudo o que o público imaginava sobre a história do comunismo no século XX revelou-se nada mais que um conjunto de mitos tranqüilizantes criados pelo próprio governo soviético e reproduzidos ipsis litteris pela mídia ocidental. A verdade que os documentos mostraram correspondia quase que milimetricamente àquilo que, décadas antes, a unanimidade dos bem-pensantes havia condenado como “teoria da conspiração”, “delírio de extrema-direita” etc.

Existe, ademais, a elite político-financeira global, cujos interesses, planos e meios de ação transcendem incalculavelmente os dos governos nacionais, reduzidos, em muitos casos, ao papel de aplicadores de decisões cuja origem permanece desconhecida do público. É tolice imaginar que esses grupos decidam a seu belprazer o rumo da História mundial, mas é tolice maior ainda imaginar que sua ação seja inócua ou inexistente.

Por fim, é preciso contar com o profundo despreparo dos “cientistas sociais” para lidar com o assunto. Georg Jellinek, na sua clássica Teoria Geral do Estado (1900), advertia que a precaução número um no estudo da sociedade, da política e da História deveria ser a distinção criteriosa entre os processos que atendem a um plano premeditado e aqueles decorrentes da acumulação mais ou menos fortuita de fatores causais impessoais. Por desgraça, as ciências sociais, desde o seu nascimento, infectadas de preconceitos positivistas e marxistas, teimaram em enfatizar unilateralmente o segundo tipo de processos, julgando que os elementos anônimos e coletivos eram mais suscetíveis de tratamento “científico” e criando assim a fantasmagoria de uma sociedade movida por “leis gerais”, sem responsabilidade humana. Resultado: quando uma vanguarda revolucionária ou uma elite de oligarcas bem assessorados impõe sua vontade a populações inteiras que não sabem de onde as ordens partiram, tudo se passa como se ninguém tivesse decidido nada, como se as mudanças tivessem caído prontas do céu. Já na década de 30 Antonio Gramsci havia codificado esse processo numa técnica sistemática para elevar o Partido Comunista às alturas de “um poder onipresente e invisível como um imperativo categórico ou um mandamento divino”. Em vez de lançar clareza sobre o seu objeto de estudo, muitas vezes as ciências sociais se transformam elas próprias em instrumentos de camuflagem. Aliás, se não fosse assim, talvez não recebessem subsídios tão polpudos de governos, serviços secretos, bancos internacionais, etc.

Embora tivesse observado somente os primeiros lances dessa gigantesca transformação da sociedade, Romano Guardini enfatizava que, nas condições que ela criava, a noção mesma de “responsabilidade” desaparecia por completo, as decisões do poder tornando-se inocentes, inimputáveis como fenômenos da natureza.

Será de espantar que, quanto mais cresce a capacidade de controle do poder anônimo sobre a sociedade, mais se espalhem por toda parte o caos moral, a confusão das consciências, a perda do discernimento? E quem disse que os próprios detentores do poder anônimo são imunes à desordem que criaram?