Truísmo e ostentação

Olavo de Carvalho

25 de agosto de 2012

O último artigo do sr. Júlio Lemos, “Dixit Aristoteles?” é um belo esforço de provar algo de que ninguém discorda. Poderia ser assinado pelo Conselheiro Acácio. Embora todos estejamos sujeitos a fazer alguma citação errada de vez em quando, ou a entender mal alguma sentença latina, grega, hebraica ou árabe (e o próprio sr. Lemos fornece exemplos de como isso é freqüente), ninguém, ex professo, advoga a superioridade das citações imprecisas ou das traduções capengas. Uma coisa é apontar num texto algum erro dessa ordem. Outra coisa é pregar, genericamente, que tais erros não devem ser cometidos. Quando alguém sai defendendo com vigor uma obviedade universal jamais contestada, é porque quer se fazer de sábio perante uma platéia que ignora tudo a respeito (como um navegante renascentista que botasse banca ante os índios do Novo Mundo informando-lhes que o rio Sena atravessa Paris), ou então porque deseja lançar no ar uma vaga suspeita contra algum autor no qual, infelizmente, não encontrou nenhum erro determinado. Como não quero mal ao sr. Lemos, aposto na primeira hipótese. Só sugiro a esse articulista que, antes de posar de fiscal da erudição grega ou latina dos outros, aprenda o próprio idioma: um sujeito que escreve “intervia” em vez de “intervinha” deveria ser mais modesto nas suas pretensões doutorais.

Quanto ao comentário do sr. Adriano Correia, talvez seja bom lembrar que para ser filósofo é preciso ser também um homem adulto, coisa que ele nunca será. Um homem adulto, ou pelo menos aspirante a adulto, quando quer falar mal de alguém, cita-lhe o nome e aponta local, data e natureza do erro que nele critica. Um menino amedrontado, como o sr. Correia, se esconde no colinho da mamãe e faz insinuações genéricas com nome de destinatário implícito, para induzir os leitores a uma conclusão pela qual não tem a coragem de assumir responsabilidade.

Uma vez, numa discussão com o sr. Paulo Ghiraldelli, citei Platão no texto grego da Loeb Classics. Daí o sr. Correia conclui que “esses tais de ‘retóricos’, que geralmente são especializados em múltiplos assuntos (digamos, da astrologia à política internacional), sempre que recorrem ao texto grego citam-no da Loeb”, sugerindo por alto, como quem dá o tapa e esconde a mão, que desconheço “a existência de aparatos críticos e variadas edições de texto”, especialmente a de Immanuel Bekker, que ele e o sr. Lemos proclamam “insuperável”, mas da qual não demonstraram, até agora, ter qualquer conhecimento senão por ouvir falar.

Ora, quem conhece o sr. Paulo Ghiraldelli sabe que mesmo a edição Loeb, que é bilingüe, está infinitamente acima da esfera de interesses dele, cujo topo é o baixo ventre. Jogar o Bekker em cima daquela cabeça de minhoca seria um exagero grotesco de exibicionismo erudito perfeitamente deslocado da situação. Prefiro guardar essa preciosa edição para minha consulta pessoal, como faço desde 1990, quando a adquiri, numa época em que o sr. Correia ainda sujava fraldas como não parou de fazer desde então. Aliás, o sr. Correia, se é tão criterioso nas citações, não deveria fazer insinuações contra um autor que ele nem mesmo leu. No meuAristóteles em Nova Perspectiva refiro-me expressamente à edição Bekker, já então minha velha companheira, insistentemente vasculhada com o auxílio do Dicionário de Bailly e da comparação com pelo menos duas  traduções (Barnes e Tricot) para evitar, justamente, o risco das interpretações frouxas, do qual nem por isso me considero tão vacinado quanto os srs. Lemos e Correia. Não sou nenhum especialista em filologia grega, mas, garanto, minha familiaridade com essa edição (v. foto) vem de bem mais longe que a dessas duas criaturas, que no máximo lhe lamberam rapidamente umas quantas páginas em alguma biblioteca, isso na improvável hipótese de que tenham algum dia chegado a tocá-la.

Nem me passa pela cabeça contestar a tese genérica de que sem algum treino filológico é impossível interpretar seriamente qualquer texto da filosofia antiga. O que não apenas contesto, mas denuncio como farsa intolerável, é o uso desse truísmo como instrumento de ostentação de superioridade por parte de dois indivíduos que até hoje não nos forneceram um exemplo sequer, por mínimo que fosse, nem das habilidades filológicas que se arrogam, nem de qualquer proficiência no exame de alguma questão filosófica para além dos meros exercícios escolares e arrotos bloguísticos.

No mínimo, deveriam lembrar-se de que não estão discutindo com um amador, mas com o autor de pelo menos uma investigação de filosofia antiga que foi louvada por estudiosos da estatura de Alexandre Costa Leite, Mendo Castro Henriques, Jody Bruhn e Tudor Munteanu, além de escolhida (a convite) para apresentação no Unilog I, First World Congress and School on Universal Logic I, em Montreux, Suíça, 2005.

Quando tiverem fortalecido seus currículos com alguma realização desse porte, ainda assim esses dois senhoritos não estarão habilitados a falar de cima a alguém com o qual terão então apenas se ombreado com décadas de atraso.

Até lá, são duas nulidades arrotando grandeza. Nada mais. Nenhuma modéstia do mundo lhes seria excessiva, tal a miséria das suas realizações.

Especialmente o sr. Correia capricha no ridículo quando, na mesma mensagem em que se pavoneia de muito exato e rigoroso, se permite aludir com despeito a escritos meus sobre astrologia e política internacional, sabendo por dentro, e disfarçando por fora, que não pode discuti-los porque nada estudou dessas matérias e nem tem idéia muito clara do que penso a respeito. Errar nas nuances de um termo grego, como tantos filósofos ilustres erraram, será delito mais grave do que fazer pose de superior em domínios nos quais nunca se demonstrou a menor proficiência e nem sequer um pouquinho de conhecimento?

Será preciso mais para tornar evidente que se trata de um palhaço ostentador, de um saco de vento, de um pequeno aprendiz de charlatão?

P. S. – Tenho recebido, de um jovem de dezoito anos, cujo nome não revelarei por enquanto, mensagens que aprofundam a minha investigação dos “quatro discursos de Aristóteles” desde uma perspectiva histórico-filológica que vai muito além do que pude abranger naquele ensaio. Lemos e Correia, juntos, nunca fizeram nada que se comparasse, nem de longe, ao que esse garoto tem me ensinado. E no entanto ele se dirige a mim com o respeito que se deve a um antecessor, e que é, no intercâmbio acadêmico, a primeira prova de honestidade intelectual.  

Já notaram?

Já notaram?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de agosto de 2012

Vocês já notaram que, de uns anos para cá, a simples opinião contrária ao casamento gay, ou à legalização do aborto, passou a ser condenada sob o rótulo de “extremismo”, como se casamentos homossexuais ou abortos por encomenda não fossem novidades chocantes, revolucionárias, e sim práticas consensuais milenares, firmemente ancoradas na História, na natureza humana e no senso comum, às quais realmente só um louco extremista poderia se opor?

Já notaram que o exibicionismo sexual em praça pública, as ofensas brutais à fé religiosa, a invasão acintosa dos templos, passaram a ser aceitos como meios normais de protesto democrático por aquela mesma mídia e por aquelas mesmas autoridades constituídas que, diante da mais pacífica e serena citação da Bíblia, logo alertam contra o abuso “fundamentalista” da liberdade de opinião?

Já notaram que o simples ato de rezar em público é tido como manifestação de “intolerância”, e que, inversamente, a proibição de rezar é celebrada como expressão puríssima da “liberdade religiosa”? (Se não notaram, leiam http://andrebarcinski.blogfolha.uol.com.br/2012/08/15/ brasil-e-ouro-em-intolerancia/.)

Já notaram que, após terem dado ao termo “fundamentalista” uma acepção sinistra por sua associação com o terrorismo islâmico, os meios de comunicação mais respeitáveis e elegantes passaram a usá-lo contra pastores e crentes, católicos e evangélicos, como se os cristãos fossem os autores e não as vítimas inermes da violência terrorista no mundo?

O que certamente não notaram é que a transição fácil dos epítetos de “extremista” e “fundamentalista” para o de “terrorista” já ultrapassou até mesmo a fase das mutações semânticas para se tornar um instrumento real, prático, de intimidação estatal. Não o notaram porque nunca foi noticiado no Brasil que, nos EUA, qualquer cristão que se oponha ao aborto ou contribua para campanhas de defesa de seus correligionários perseguidos é tido pelo Homeland Security, ao menos em teoria, como alvo preferencial para averiguações de “terrorismo” (v. http://touchstonemag.com/merecomments/2012/07/big-sibling-janet- napolitano-may-be-looking- for-you/), embora o número de atos terroristas cometidos até agora por esse tipo de pessoas seja, rigorosamente, zero. Em contrapartida, qualquer sugestão de que as investigações deveriam tomar como foco principal os muçulmanos ou os esquerdistas – autores da maioria absoluta dos atentados no território americano – é condenada pelo governo e pela mídia como “hate speech”.

Nenhum membro do Family Research Council tinha jamais atirado em ninguém, nem esmurrado, nem sequer xingado quem quer que fosse, quando a ONG esquerdista South Poverty Law Center colocou aquela organização conservadora na sua “Hate List”. Quando um fanático gayzista entrou lá gritando slogans anticristãos e dando tiros em todo mundo, nem um só órgão de mídia chamou isso de “crime de ódio”.

Em todos esses casos, e numa infinidade de outros, a estratégia é sempre a mesma: quebrar as cadeias normais de associação de idéias, inverter o senso das proporções, forçar a população a negar aquilo que seus olhos vêem e a enxergar, em vez disso, aquilo que a elite iluminada manda enxergar.

Não, não se trata de persuasão. As crenças assim propagadas permanecem superficiais, saindo da boca para fora enquanto as impressões que as negam continuam entrando pelos olhos e ouvidos. O que se busca é o contrário da persuasão genuína: é instilar no público um estado de insegurança histérica, em que a contradição entre o que se percebe e o que se fala só pode ser aplacada mediante o expediente de falar cada vez mais alto, de gritar aquilo que, no fundo, não se crê nem se pode crer. É um efeito calculado, uma obra de tecnologia psicológica. Algum militante gayzista pode sinceramente crer que, num país com cinqüenta mil homicídios por ano, cento e poucos assassinatos de homossexuais provam a existência de uma epidemia de ódio anti-gay? É claro que não. Justamente porque não pode crê-lo, tem de gritá-lo. Gritá-lo para não se dar conta da farsa existencial em que apostou sua vida, e da qual depende para conservar seus amigos, seu bem protegido lugar na militância, sua falsa identidade de perseguido e discriminado numa sociedade que não ousa dizer contra ele uma só palavra. O militante ideal desses movimentos não é o crente sincero, mas o fingidor histérico. O primeiro consente em mentir em favor de suas crenças, mas conserva alguma capacidade de julgamento objetivo e pode, em situações de crise, transformar-se num perigoso dissidente interno. O histérico, em vez disso, não tem limites na sua compulsão de tudo falsificar. O militante sincero usa da mentira como um instrumento tático; para o histérico, ela é uma necessidade incontornável, uma tábua de salvação psicológica. A inversão, mecanismo básico do modus pensandi revolucionário, é acima de tudo um sintoma histérico. É por isso que há décadas os movimentos revolucionários já desistiram da persuasão racional, perderam todo escrúpulo de honorabilidade intelectual e não se vexam de agitar aos quatro ventos bandeiras ostensivamente, propositadamente absurdas e autocontraditórias. Eles não precisam de “verdadeiros crentes”, cuja integridade causa problemas. Precisam de massas de histéricos, cheios daquela “passionate intensity” de que falava W. B. Yeats, prontos a encenar sofrimentos que não têm, a lutar fanaticamente por aquilo em que não crêem, precisamente porque não crêem e porque só a teatralização histérica mantém vivos os seus laços de solidariedade militante com milhares de outros histéricos.

Debatedores brasileiros

Debatedores brasileiros

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 20 de agosto de 2012

Se há uma coisa que brasileiro gosta, é de discutir. Gosta principalmente de escavar contradições no discurso alheio, exibindo-as com o ar triunfante de quem pegou o adversário de calças na mão. O nome dos que se dedicam a isso é legião. Valem-se, para tanto, de noções elementares de lógica, que lhes revelam os segredos da coerência silogística e lhes permitem facilmente perceber onde as conseqüências não se seguem das premissas ou clamam, coitadinhas, por uma premissa faltante. Com base nisso o discutidor pode, sem qualquer inibição, jogar no rosto do oponente – ou vítima – as acusações de “sofisma” e “falácia”, palavras que hoje em dia estão entre as mais populares nos debates eletrônicos. A elas acrescentam-se, para piorar as coisas, os nomes dos vinte e sete estratagemas erísticos de Arthur Schopenhouer, que tive a infeliz idéia de publicar e comentar em português, na ilusão de que os leitores os usariam para corrigir-se a si mesmos em vez de atormentar seus vizinhos.

Num momento em que cada um se nomeia fiscal infalível da coerência alheia, cabe lembrar aos distintos que o próprio Aristóteles, inventor ou primeiro formulador das regras da lógica e das Refutações Sofísticas, advertia que esses instrumentos de nada valiam sem um longo adestramento preliminar nas artes da linguagem e no exercício da compreensão. Com muita prudência, ele antepôs ao aprendizado da silogística (e da sua irmã desnaturada, a sofística), os tratados sobre a interpretação, as categorias (ou tiposde predicados), os antepredicamentos (ou níveis de predicação), a psicologia do discurso (ou retórica) e a arte de distinguir entre as contradições reais e aparentes (a tópica, ou dialética). No topo de tudo isto foi que ele colocou a técnica do discurso científico coerente, à qual deu o nome de analítica, mais tarde chamada de “lógica”.

Saltando sobre todo esse aprendizado preliminar, como quem se alçasse direto do térreo ao quinto andar sem passar pelas escadas nem pelo elevador, nossos debatedores acreditam poder medir e julgar a coerência do discurso alheio sem precisar ter a percepção correta das nuances de sentido, dos níveis de predicação (categórico, modal, hipotético, etc), das variações de significado conforme o público e a situação dediscurso e, por fim, do jogo dialético onde aquilo que parece absurdo sob certo aspecto é uma verdade óbvia sob outro aspecto.

A lógica é uma espécie de geometria euclidiana do discurso. Aristóteles ensina que ela só se aplica diretamente ao discurso científico formal, onde as nuances, as cores, as ambigüidades poéticas e as figuras de linguagem da fala corrente e da escrita literária já foram eliminadas por um árduo trabalho de depuração conceitual e de redução detudo a significados estáveis e uniformes.

Ignorando essa obviedade, que lhes jogaria nas costas o pesadíssimo encargo deum sério adestramento nas artes da linguagem, os lógicos do território bloguístico, bem como do Orkut e do Facebook, amealham triunfos fáceis, mas perfeitamente ilusórios, apontando “falácias” e “sofismas” naquilo que não entendem.

Fazem isso porque as regras da lógica, malgrado a obscuridade da sua formulação técnica explícita, são aquilo que existe de mais simples, esquemático e até instintivo no pensamento humano, algo como a aritmética elementar, onde as quatro operações, uma vez apreendidas, podem continuar sendo aplicadas automaticamente a números cada vez maiores, sem necessidade de nenhum aprendizado suplementar. Embora esteja, do ponto de vista da coerência formal, no topo da hierarquia dos discursos, a lógica corresponde, na verdade, ao nível mais tosco e elementar do pensamento. Um gato, quando se prepara para um salto, avalia a proporção entre a altura do obstáculo e a força de empuxe que suas pernas terão de investir no empreendimento. Isso corresponde, esquematicamente, a uma equação trigonométrica, que é um tipo de raciocínio silogístico. Essa habilidade o gato compartilha com outros animais espertos, como os cães e os leões, mas também com alguns que não são tão notáveis pela inteligência, como os cavalos e as ovelhas. Mas nenhum gato jamais conseguiu distinguir uma figura de linguagem de um conceito formal, apreender nuances de sentido conforme a relação entre falante e ouvinte e muito menos lidar com duas proposições contraditórias que são ambas verdadeiras em sentidos diferentes. Eis por que os debatedores internéticos preferem se ater ao automatismo fácil das regras lógicas, aplicando-as de modo raso e sonso a discursos polivalentes e polissêmicos que, para se prestar a isso, teriam de passar antes por um complexo e dificultoso trabalho deinterpretação literária, compreensão em profundidade e formalização conceitual. Trabalho que às vezes resulta completamente impossível.

Esse é o motivo, também, pelo qual aconselho a meus alunos que não entrem no estudo das áreas filosóficas mais técnicas e mais dependentes da lógica antes de adquirir uma sólida cultura literária universal, o domínio de vários idiomas, um apurado senso das figuras de linguagem e, enfim, uma compreensão adequada do que lêem. Como já se vê pelos erros de gramática que pululam nas suas sentenças como girinos em volta da mamãe sapo, os fiscais da coerência alheia se abstêm dessa precaução e acreditam poder abrir caminho no mundo dos debates intelectuais armados tão somente deautomatismos lógicos ao alcance de um gato ou de um jumento.