Os histéricos no poder

Os histéricos no poder

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2012

Uma das experiências mais perturbadoras que tive na vida foi a de perceber, de novo e de novo ao longo dos anos, o quanto é impossível falar ao coração, à consciência profunda de indivíduos que trocaram sua personalidade genuína por um estereótipo grupal ou ideológico.
Diga você o que disser, mostre-lhes mesmo as realidades mais óbvias e gritantes, nada os toca. Só enxergam o que querem. Perderam a flexibilidade da inteligência. Trocaram-na por um sistema fixo de emoções repetitivas, acionadas por um reflexo insano de autodefesa grupal.
No começo não é bem uma troca. O estereótipo é adotado como um revestimento, um sinal de identidade, uma senha que facilita a integração do sujeito num grupo social e, libertando-o do seu isolamento, faz com que ele se sinta até mais humano. Depois a progressiva identificação com os valores e objetivos do grupo vai substituindo as percepções diretas e os sentimentos originários por uma imitação esquemática das condutas e trejeitos mentais do grupo, até que a individualidade concreta, com todo o seu mistério irredutível, desapareça sob a máscara da identidade coletiva.
Essa transformação torna-se praticamente inevitável quando a unidade do grupo tem uma forte base emocional, como acontece em todos os movimentos fundados num sentimento de “exclusão”, “discriminação” e similares.
Não me refiro, é claro, aos casos efetivos de perseguição política, racial ou religiosa. A simples reação a um estado de coisas objetivamente perigoso não implica nenhuma deformação da personalidade. Ao contrário: quanto mais exageradas e irrealistas são as queixas grupais, tanto mais facilmente elas fornecem ao militante um “Ersatz” de identidade pessoal, precisamente porque não têm outra substância exceto a ênfase mesma do discurso que as veicula.
À dessensibilização da consciência profunda corresponde, em contrapartida, uma hipersensibilização de superfície, uma suscetibilidade postiça, uma predisposição a sentir-se ofendido ou ameaçado por qualquer coisinha que se oponha à vontade do grupo.
No curso desse processo, é inevitável que o amortecimento da consciência individual traga consigo o decréscimo da inteligência intuitiva. As capacidades intelectuais menores, puramente instrumentais, como o raciocínio lógico verbal ou matemático, podem permanecer intactas, mas o núcleo vivo da inteligência, que é a capacidade de apreender num relance o sentido da experiência direta, sai completamente arruinada, às vezes para sempre.
A partir daí, qualquer tentativa de apelar ao testemunho interior dessas pessoas está condenada ao fracasso. A experiência que elas têm das situações vividas tornou-se opaca, encoberta sob densas camadas de interpretações artificiais cujo poder de expressar as paixões grupais serve como um sucedâneo, hipnoticamente convincente, da percepção direta.
O indivíduo “sente” que está expressando a realidade direta quando seu discurso coincide com as emoções padronizadas do grupo, com os desejos, temores, preconceitos e ódios que constituem o ponto de intersecção, o lugar geométrico da unidade grupal.
O mais cruel de tudo é que, como esse processo acompanha “pari passu” o progresso do indivíduo no domínio da linguagem grupal, são justamente os mais lesados na sua inteligência intuitiva que acabam se destacando aos olhos de seus pares e se tornando os líderes do grupo.
Um grau elevado de imbecilidade moral coincide aí com a perfeita representatividade que faz do indivíduo o porta-voz por excelência dos interesses do grupo e, na mesma medida, o reveste de uma aura de qualidades morais e intelectuais perfeitamente fictícias.
Não conheço um só líder esquerdista, petista, gayzista, africanista ou feminista que não corresponda ponto por ponto a essa descrição, que corresponde por sua vez ao quadro clássico da histeria.
O histérico não sente o que percebe, mas o que imagina. Quando o orador gayzista aponta a presença de cento e poucos homossexuais entre cinquenta mil vítimas de homicídios como prova de que há uma epidemia de violência anti-gay no Brasil, é evidente que o seu senso natural das proporções foi substituído pelo hiperbolismo retórico do discurso grupal que, no teatro da sua mente, vale como reação genuína à experiência direta.
Quando a esposa americana, armada de instrumentos legais para destruir a vida do marido em cinco minutos, continua se queixando de discriminação da mulher, ela evidentemente não sente a sua situação real, mas o drama imaginário consagrado pelo discurso feminista.
Quando o presidente mais mimado e blindado da nossa História choraminga que levou mais chicotadas do que Jesus Cristo, ele literalmente não se enxerga: enxerga um personagem de fantasia criado pela propaganda partidária, e acredita que esse personagem é ele. Todas essas pessoas são histéricas no sentido mais exato e técnico do termo. E se não sentem nem a realidade da sua situação pessoal imediata, como poderiam ser sensíveis ao apelo de uma verdade que não chega a eles por via direta, e sim pelas palavras de alguém que temem, que odeiam, e que só conseguem enxergar como um inimigo a ser destruído?
A raiz de todo diálogo é a desenvoltura da imaginação que transita livremente entre perspectivas opostas, como a de um espectador de teatro que sente, como se fossem suas, as emoções de cada um dos personagens em conflito. Essa é também a base do amor ao próximo e de toda convivência civilizada.
A presença de um grande número de histéricos nos altos postos de uma sociedade é garantia de deterioração de todas as relações humanas, de proliferação incontrolável da mentira, da desonestidade e do crime.

Quem eram os ratos?

Quem eram os ratos?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 6 de dezembro de 2012

          

As épocas luminosas da História são aquelas em que um mesmo corpo de crenças é compartilhado pelo povo e pelos sábios, diferindo apenas no grau de compreensão refletida com que apreendem substancialmente as mesmas verdades.
Nas épocas de obscuridade, ao contrário, aquilo que os estudiosos sabem se torna dificilmente comunicável à população em geral, não por um mero descompasso de vocabulário técnico, mas por um abismo de diferença entre duas concepções do mundo mutuamente incompatíveis e intraduzíveis. É numa dessas épocas que vivemos.
Um setor da experiência humana onde isso se mostra evidente são as ciências. Enquanto nos círculos de estudiosos high brow ninguém ignora que uma ciência cada vez menos inteligível e mais reduzida a produzir aplicações práticas em lugar de explicações teóricas representa no fim das contas um fracasso colossal da inteligência humana, na mídia e na educação popular essas mesmas aplicações são festejadas como a prova final da autoridade da ciência, do seu domínio sobre o mistério do mundo.
Os cientistas vivem num inferno de dúvidas, perplexidades e temores; e a massa, em um paraíso de certezas inabaláveis, garantidas, segundo imagina, por esses mesmo cientistas.
É como se no século 13 a população fiel continuasse a orar piedosamente enquanto nos conventos e nos claustros os monges e santos se vissem obsediados por toda sorte de dúvidas céticas e rejeições ateísticas. Isso não aconteceu, é claro. A religião de Santo Tomás e do quase ilegível John Duns Scot não era diferente da do camponês analfabeto, só mais elegante intelectualmente.
Mas hoje um big shot como Brian Ridley, membro da Royal Society e portador da Medalha Paul Dirac por suas contribuições à física teórica, pode confessar que acha a relatividade e a teoria quântica cada vez menos compreensíveis, ao passo que a mesma confissão, publicada na mídia popular, atrairia sobre seu autor toda sorte de invectivas e chacotas. Definitivamente, Brian Ridley e o leitor de jornais não vivem no mesmo universo de crenças como Sto. Tomás e o camponês medieval.
No setor da política, então, a diferença entre o mundo do connoisseur e o do leigo ampliou-se de tal modo que os fatos se tornam tanto mais inverossíveis e inaceitáveis para o público geral quanto mais documentados e comprovados cientificamente.
Quando o matemático Christopher Monckton, visconde de Brenchley, calculou que era da ordem de 1 para 75 trilhões a possibilidade de serem acidentais os pequenos e grandes defeitos da certidão de nascimento de Barack Hussein Obama, esse cálculo estatisticamente impecável não afetou em nada o sentimento de verossimilhança popular, o qual, sem cálculo nenhum, continua jurando que a possibilidade de um falsário eleger-se presidente dos Estados Unidos ainda menor ou nula.
Foi assim que, no Brasil de 2002, o sr. Luís Inácio Lula da Silva se elegeu presidente com a estampa de reformador democrático, legalista e paladino da moralidade, quando doze anos de desempenho no Foro de São Paulo já o mostravam como um leninista cínico, disposto a todas as mentiras e todas as trapaças para manter o seu grupo no poder pelos séculos dos séculos.
Um vídeo da campanha do PT de 2002 exibe um bando de ratos roendo a bandeira nacional, enquanto ao fundo uma voz soturna adverte: “Ou a gente acaba com eles, ou eles acabam com o Brasil” (vejam em http://jorgeifraim.blogspot.com.br/2012/10/video-profetico.html). O vídeo, de autoria de Duda Mendonça, foi visto por todo mundo; as atas do Foro de São Paulo, por meia dúzia de pesquisadores curiosos cuja palavra, àquela altura, soava como a mais pura e doida “teoria da conspiração”. Hoje até as crianças sabem que os ratos eram os próprios petistas, mas por que esperar uma década para admitir o que estava provado em 2002?
O livro chinês dos Seis Estratagemas, que já citei aqui, ensina: “Todo fenômeno é no começo um germe, depois termina por se tornar uma realidade que todo mundo pode constatar. O sábio pensa no longo prazo. Eis por que ele presta muita atenção aos germes. A maioria dos homens tem a visão curta. Espera que o problema se torne evidente, para só então atacá-lo.”
O pior é que, no tempo decorrido para o problema se tornar visível na praça pública, os meios de atacá-lo podem ter-se tornado cada vez mais escassos, débeis ou inacessíveis. Se desafiado pelo Parlamento e pela OEA, terá ainda o nosso STF o poder de fazer valer a condenação dos mensaleiros? Terá, a respaldá-lo, as Forças Armadas, ou estas, temendo o rótulo de golpistas, tomarão o partido de quem fala mais grosso?
O fato é que o germe cresceu demais, tornou-se um monstro arrogante, seguro de si, dificilmente controlável. Isso jamais teria acontecido sem a proteção da mídia cúmplice, que por dezesseis anos se recusou a manchar a reputação do seus queridinhos com alguma menção aos planos criminosos do Foro de São Paulo.
Mesmo agora, quando tremem sob a ameaça do controle estatal, jornais e canais de TV ainda sonegam ao público o essencial da história, para não confessar sua parcela de culpa no embelezamento publicitário dos ratos.
Os “meios de difusão” tornaram-se “meios de ocultação” numa escala tal que já não há nenhum exagero em dizer que a mídia popular tem hoje por missão principal ou única tornar a verdade inverossímil ou inalcançável.
Qualquer pessoa que tenha os jornais e a TV como sua fonte principal de informações está excluída, in limine, da possibilidade de julgar razoavelmente a veracidade e a importância relativa das notícias.
A política tornou-se um assunto esotérico, em que somente um reduzido círculo de estudiosos pode atinar com o que está acontecendo.

Paulo Wernek entrevista Rodrigo Gurgel

“O sistema literário brasileiro está doente.” (Rodrigo Gurgel)

Folha de São Paulo, 2 de dezembro de 2012    

Conforme a Folha adiantou, Gurgel é o jurado “C”, aquele que atribuiu notas muito baixas a favoritos da categoria Romance da 54ª edição do Prêmio Jabuti, garantindo que seus livros preferidos fossem alçados aos primeiros lugares.

Até que pudesse se pronunciar –o regulamento não permitia que se manifestasse antes da revelação oficial do júri, –Gurgel foi atacado na internet durante semanas a fio– até de “jurado Carminha”, a vilã da novela “Avenida Brasil”, ele foi chamado.

A legitimidade do voto, no entanto, foi garantida pela Câmara Brasileira do Livro, que patrocina o prêmio –o que não a impediu de chamá-lo para dar esclarecimentos sobre seus votos, o que não havia acontecido nas três edições anteriores do Jabuti, nas quais foi jurado na mesma categoria.

Nesta entrevista, concedida num restaurante em São Paulo, na semana passada, ele explicou como viveu essas semanas de tensão após a abertura de seus votos no prêmio Jabuti.

Ele também falou do sistema literário brasileiro que além de “doente” está “dominado pelos departamentos de letras das universidades”, e de sua formação.

Nesse aspecto, trata-se de uma trajetória nada incomum na era Lula: ex-militante do PT, pelo qual chegou a tentar uma cadeira na Câmara de Vereadores de Jundiaí (SP) -recebeu 700 dos 850, 900 necessários–, e ex-colaborador de publicações da CUT, Gurgel bandeou-se para o outro lado do espectro político. Hoje é engajado aluno do filósofo Olavo de Carvalho, conhecido por suas ideias conservadoras e pelo combate ao relativismo cultural.

“Não havia uma ética”, diz ele sobre as primeiras “decepções” com a esquerda, no início do primeiro governo Lula. “O discurso era um. Mas a prática era a politica maquiavélica que é feita em qualquer partido.”

No campo literário, Gurgel cultivou a fama de severo, com julgamentos implacáveis contra “estruturalistas”, “desconstrucionistas” e outros advogados do experimentalismo.
Atualmente, desenvolve um projeto ambicioso: reler todo o cânon da literatura brasileira e submetê-lo a seu crivo em textos publicados no jornal “Rascunho”. O primeiro fruto, o volume de ensaios “Muita Retórica, Pouca Literatura – de Alencar a Graça Aranha” (Vide Editorial), foi publicado em agosto.

Sobra para todo mundo, inclusive Machado de Assis. De Raul Pompeia, o importante autor de “O Ateneu”, que vem sendo revalorizado pela crítica universitária, Gurgel diz: “Nós superestimamos, e eu superestimei durante muito tempo, o Raul Pompeia”. Ele pretende chegar até Osman Lins (1924-78), célebre pelos experimentalismos de “Avalovara” (1973).

“Sempre tive uma dificuldade com os escritores nacionais”, conta. “São muito retóricos, confundem literatura com eloquência, tem essa tendência a achar que a literatura não pode ser coloquial, tem que ter alguma artificialidade.”

A crítica também não é poupada: segundo ele, “Se você não inovar em termos linguísticos, se você não tentar recriar o “Finnegan’s Wake” [de James Joyce, marco da prosa experimental] o livro já não é bom” para os críticos brasileiros. O que fica são “exercícios narcisísticos”.

Quando foi servido o vinho, Gurgel provou-o em clima de suspense, examinando cada nuance do buquê.

Apreensivos, garçom e repórter tiveram certeza de que, rigoroso que é, Gurgel ia mandar devolver a garrafa. Não foi o caso, e o crítico ergueu um brinde à literatura brasileira.

*

FOLHA – Ao perceber a mudança no regulamento, você se deu conta de que poderia decidir o resultado do Jabuti?
Rodrigo Gurgel – O meu voto não foi nem maquiavélico, nem visionário. O Jabuti é um prêmio feito em duas fases, em que você não tem contato com os outros jurados. Então a decisão é sua, individual.

Na primeira escolha, que é classificatória, você necessariamente tem que dar as notas. Então você dá as notas, mas não na perspectiva de fazer um ganhador. Você escolhe, num universo de mais de 150 romances, os dez romances que na sua opinião são os melhores. O que não significa que sejam genais, o suprassumo da literatura nacional. É a aquilo que você tem naquele momento.

Quando a gente vai pra segunda fase, o jurado recebe a lista dos romances que passaram para a segunda fase, não em ordem alfabética, mas por ordem de classificação, de na ordem das notas que os livros receberam.

Já é um ranking.
Já é um ranking. Quando eu abri o papel, a primeira coisa que me chamou a atenção [na lista de finalistas] foi o livro do Wilson Bueno [“Mano, a Noite Está Velha”, ed. Planeta], que eu havia colocado em último lugar, apesar de ter dado uma nota de oito e pouco. Se um livro que você colocou em último lugar está em primeiro na lista, a primeira reação é dupla: você pensa em reler alguma coisa do livro, para ver se o julgamento continua de pé.

E, é claro, depois que chegou à conclusão que o seu julgamento continua o mesmo, você coloca ele de volta onde colocou na primeira lista. Só que aí você quer que outros livros sejam os primeiros. Aqueles que você considera melhores. Então você derruba a nota.

Por isso você atribuiu notas diferentes a Wilson Bueno?
É, e tem que ser assim. E o regulamento permitia essa possibilidade. Um jurado que não tem escolhas é um jurado que não tem critérios claros, não há necessidade de julgar.

Qual foi a segunda coisa que me chamou a atenção? Em segundo lugar, estava o livro da Ana Maria Machado, que é um livro que eu já tinha descartado desde a minha primeira lista. Então eu não tive dúvida. Esse livro eu nem precisei olhar de novo. Tive que colocar ele na posição de penúltimo lugar.

Para ranquear as suas preferências?
Claro. É evidente. Tinha livros que eu achava que eram melhores: foram os que coloquei nos quatro primeiros lugares. Foi a mesma coisa que eu fiz com o livro da Luciana Hidalgo, que eu tinha colocado na minha lista inicial em sétimo lugar.

Quando ela surgiu em quatro lugar na lista, não tive dúvida: passei ela pra baixo também. Quais são os quatro livros melhores, na minha opinião? São esses, que eu coloquei em primeiro lugar. Foi isso, nada mais, nada menos. Em nenhum momento imaginei que o peso da minha nota poderia significar a desclassificação definitiva de alguém. Eu não fiz essa conta. Eu pensei: vou privilegiar os livros de que gostei e dar uma nota baixa para os livros de que não gostei ou gostei menos.

E você achou adequada a mudança no regulamento deste ano, que permitiu notas de zero a dez, em vez de limitar a oito a dez, como antes?
Acho que o Jabuti está buscando soluções. Essa mudança das notas deveria ter sido pensada. Quem estabeleceu a nova regra não fez as contas. Não pensou: bom, quais são as situações que podem ocorrer? Ou então acreditou que todos os jurados votariam sem compromisso.

O que, aliás, é o que mais me chama a atenção nas críticas que recebi. E as mais violentas foram de escritores. Eu acho interessante. Em nenhum momento passa pela cabeça deles que eles poderiam ser um dos livros escolhidos por um jurado que luta pelos livros de que gosta. Um jurado que não teme se comprometer.

Que reações foram essas?
Foram coisas na internet, as pessoas julgando a minha atitude como se fosse irresponsável, impensada, desonesta, quando não é nada disso. Sou apenas um crítico que se compromete com as coisas, eu digo o que eu penso, não tenho medo de julgar e julgo. E se me pedem para julgar e me dão os critérios, eu uso os critérios.

O que pensou da atitude de do curador do prêmio, José Luiz Goldfarb, de logo no anúncio dos finalistas atribuir ao jurado C a responsabilidade pela situação?
As informações que tenho sobre ele, de amigos em comum, são todas ótimas. Eu não vi uma pessoa até hoje falar mal do Goldfarb. Acho que a atitude dele foi a de quem foi pego desprevenido. Ele não tinha feito as contas, não estudou os cenários possíveis. Não falou: se dois críticos derem dez e os outro crítico der zero, o que acontece com esse livro?

Quando ele viu o que aconteceu, ele simplesmente não estava preparado. E quando você não está preparado, é claro, prevalece a emoção.

Ele procurou você?
Nós conversamos por telefone, por solicitação de uma pessoa que é da comissão coordenadora. Essa pessoa começou a me cobrar posições, que eu justificasse a minha atitude. Eu disse: escuta…

Isso já tinha acontecido em edições anteriores?
Nunca me perguntaram nada, nunca tive contato com ninguém. Eu nunca tinha conversado com o Goldfarb. Eu disse então faz o seguinte: me dá o telefone do Goldfarb e eu ligo diretamente para ele.

E como foi?
Foi ótima, foi uma conversa no celular, e ele entendeu meu ponto de vista. Pelo menos foi a impressão que eu tive. Ele disse eu não concordo com a nota que você deu, não me lembro a expressão que ele usou, não sei se foi radical ou qualquer coisa assim, mas foi tudo dentro do regulamento e eu vou bancar, a CBL [Câmara Brasileira do Livro] vai bancar o seu voto. Nesse ponto eles foram extremamente éticos, muito corretos. Tivemos uma reunião, da qual o Goldfarb não participou, mas com os diretores.

Com os outros jurados também?
Não. Uma reunião comigo. Eu nem sei quem são os outros jurados, não faço ideia. Foram muito atenciosos e disseram: a única coisa que nós queremos dizer é que nós vamos prosseguir, o voto está dado, foi dentro das regras, você fique absolutamente tranquilo. Só não vamos defender em termos teóricos, em termos críticos, o seu voto.

Eu disse: mas isso é evidente, cabe a mim. Eu dei o voto e tenho uma justificativa para cada voto que eu dei. Reforçaram a questão de eu não me pronunciar até a entrega do prêmio [no último dia 28]… Eu disse: não tenham a menor dúvida, isso é inquestionável.

Por que houve tanta indignação com o resultado, especialmente em torno do livro da Ana Maria Machado?
Aí entram vários fatores. O primeiro fator é o ego do escritor. A primeira reação é essa que ela teve: “Ele votou contra o meu livro” [declaração da escritora em entrevista à Folha]. Ela não consegue imaginar que, na verdade, o procedimento foi outro. Eu votei a favor de outros livros, na minha opinião melhores que o dela.

Como relação especificamente a essa reação, não sei, talvez o fato de no momento em que abriram os votos da fase eliminatória, os últimos votos, me disseram que estava lá um jurado, e que ele reagiu muito mal. Fez um escândalo.

A abertura é pública, se eu quisesse, poderia estar lá. E também estava lá uma jornalista, se não me engano do jornal “O Globo”, e aí a coisa estourou. Agora, por que ele teve essa relação, não posso… não sem nem quem é, nem por que ele teve essa reação.

Qual é o valor do Jabuti?
É o prêmio mais importante, de mais nome. E inclusive do ponto de vista da forma que se dá à votação, do meu ponto de vista é a forma correta, em relação ao fato de que os jurados ficam incógnitos. Não há possibilidade de você sofrer qualquer tipo de assédio, qualquer tipo de pressão, diferentemente de outros prêmios em que os jurados são anunciados, os nomes são públicos, os jurados se encontram, discutem. Eu, particularmente, não acredito nesse tipo de democracia. Não funciona.

O que o episódio revelou para você da cultura literária brasileira?
Os nossos escritores não estão acostumados a serem julgados. O nosso sistema literário está doente. Por quê? Quem aliás falou um pouco sobre isso há alguns meses foi a [editora e agente literária] Luciana Villas-Boas, numa entrevista: as editoras estão controladas pelos departamentos de letras das universidades. Então o que acontece? Hoje, a hegemonia dos departamentos de letras pertence a dois grupos: os estruturalistas e os desconstrucionistas.

Quem são os desconstrucionistas?
Eu vou chegar lá. Essas pessoas têm a hegemonia ideológica nos cadernos culturais, nas poucas publicações literárias que nós temos, nas editoras de livros. Quando eles escrevem uma crítica, as preocupações deles são, primeiro, a questão formal, linguística. Há um exagero de preocupação em relação a isso.

Se você não inovar em termos linguísticos, se você não tentar recriar o “Finnegan’s Wake” [de James Joyce, marco da prosa experimental] o livro já não é bom, ou é um livro tímido, que revela insegurança. O que nós poderíamos chamar de narradores tradicionais já são repudiados por princípio. O mesmo acontece nas editoras. Esse é o pessoal mais considerado.

Em termos de crítica literária, a preocupação desses críticos, na verdade, não é primeiro com relação à forma: é exclusivamente com relação à forma. Porque eles partem do princípio de que a obra é autossuficiente. A obra não tem que dialogar com a realidade. A literatura não tem que dialogar com o mundo. Tem que dialogar com ela própria.

O que você vê muito hoje em dia em termos de crítica são exercícios narcisísticos. Hoje uma crítica como a do Álvaro Lins, dizendo que determinada peça do Nelson Rodrigues é um horror, não existe. Aí entram os desconstrucionistas. Para eles, o texto nunca pode expressar a verdade. Ora, se nunca podem expressar a verdade, o texto não é nada, é só um mero exercício.

O que é um contrassenso, porque se o texto é um vazio, um somatório de fórmulas que ficam falando sobre si mesmas e nada mais, o próprio texto que o desconstrucionista escreve não tem valor nenhum. Estamos no centro de um sistema que está viciado.

Mas de onde vem isso?
O [crítico literário] Antonio Candido fala que o nosso sistema literário, no início, era assim: as pessoas que produziam eram as pessoas que consumiam. Esse é o nosso grande problema, nós não temos leitores. O escritor escreve para agradar o crítico, pra agradar o professor de teoria literária e para agradar os seus amigos.

Então ele precisa ser politicamente correto, precisa fazer experimentos linguísticos, esconder o narrador, abusar da metalinguagem. Precisa fazer do texto dele um resuminho daquilo que a vanguarda fez nos últimos anos, para agradar as pessoas. Se você não tem uma crítica que está disposta a agradar o público, numa linguagem que ele compreenda por que aquele livro é bom ou não é, você não forma leitores.

O leitor do caderno cultural não quer abrir o jornal e ter uma aula de estruturalismo. Não está interessado em Roland Barthes [crítico francês, expoente do estruturalismo], Roman Jakobson [linguista russo] e o diabo. Ele quer alguém que faça o meio de campo entre a obra e ele, leitor comum, e diga por que vale a pena ler aquele livro. A maior parte da crítica literária se recusa a isso.

Você é um crítico do relativismo cultural, como mostra o se livro.
Mas claro. Nós temos que fazer julgamentos. O Sílvio Romero desancou o Machado de Assis do começo ao fim. Tratava o Machado como se fosse um capacho. Ele fez mal? Não. Ele cumpriu o papel dele dentro do sistema literário, que é o de criticar. Isso diminuiu a obra machadiana? Até o momento, não. O que prevaleceu foi a obra machadiana, em detrimento da crítica do Sílvio Romero.

Isso diminui o valor do trabalho do Silvio Romero? Não. É uma figura importantíssima, precisa ser lido, precisa ser conhecido. Nós não podemos ter o temos de ocupar o nosso papel dentro do sistema literário. Precisamos deixar de lado essas coisas e dizer com absoluta franqueza o que a gente pensa.

Essa posição tem um custo para você?
É de ter muitos desafetos.

Mas você tem muitos desafetos?
Acredito que sim.

Nesse episódio, você foi criticado também pelas afinidades com o filósofo Olavo de Carvalho. Qual é sua relação com ele?
Eu sou aluno do Olavo. O Olavo tem um seminário de filosofia on-line do qual sou aluno, e sou admirador do trabalho que ele faz, seja como filósofo, seja como polemista. É uma pena que nós não tenhamos mais pessoas com a coragem que o Olavo tem, de falar as coisas com absoluta franqueza, e dar a sua opinião.

Não estou discutindo se ela é a certa ou a errada. Mas expressar a sua opinião de maneira clara e, como se diz no jargão, pôr a cara para bater. As críticas que fazem em relação ao Olavo se baseiam muito mais na figura dele como polemista.

Se as pessoas parassem e fossem efetivamente ler as obras do Olavo, de critica cultural, obras filosóficas, começariam a formar não digo uma ideia diferente, mas perceberiam que as coisas que o Olavo fala são fundamentadas.

Não é um louco que sai por aí atirando de maneira irresponsável. Ainda que, como polemista, seja essa a impressão que ele pode passar. Isso se deve também à hegemonia do marxismo. A hegemonia de esquerda foi lentamente construída.