Olavo de Carvalho
Apostila do Seminário de Filosofia
25 de dezembro de 1997
Estas notas serviram de base para as aulas do Seminário de Filosofia de janeiro de 1998, onde receberam extensos desenvolvimentos orais. — O. de C.
1. O simbolismo natural
Há três métodos de uso corrente para a explicação do símbolo:
1º O método etnológico, que o refere às intenções e valores de uma cultura em particular ou de várias delas comparativamente.
2º O método psicológico, que os refere às estruturas mais ou menos permanentes da psique humana.
3º O método esotérico (às vezes chamado também tradicional, no sentido estrito que René Guénon confere ao termo), que refere o símbolo a uma intencionalidade supra-humana.
Esses três métodos são redutivistas: os dois primeiros, ostensivamente; o terceiro, veladamente. Reduzem o símbolo a um véu, a um disfarce: de normas culturais implícitas, no primeiro; de anseios ou temores inconscientes, no segundo; no terceiro, de realidades metafísicas.
Nenhum dos três, portanto, nos responde à pergunta: Que é o símbolo? Fingindo respondê-la, substituem-na pela pergunta: De quê o símbolo é símbolo? E, tendo-nos dito o simbolizado, pretendem que aceitemos isso como conceito de símbolo — como um homem que, interrogado sobre o que são as palavras, respondesse indicando as coisas que elas nomeiam.
Esses três métodos desviam a nossa atenção do fenômeno “símbolo” enquanto tal e a dirigem às causas reais ou supostas da produção do símbolo, escorregando do quê para o porquê — o expediente clássico de quem não sabe de quê está falando. Isto não quer dizer, evidentemente, que tudo o que essas teorias tenham a dizer sobre as causas do símbolo seja despropositado ou falso; quer dizer apenas que é destituído de fundamento suficiente e que este fundamento só poderia ser encontrado justamente na investigação que essas teorias eludem e pretendem substituir, que é a investigação do quid — a primeira de todas as investigações, se não na ordem do tempo, ao menos na ordem da prioridade lógica.
Dito de outro modo, esses três métodos tomam por implícito que uma interpretação de símbolos, desde que se feche num sistema mais ou menos completo, coerente e fundamentado, já é, por si, uma elucidação suficiente quanto à natureza do símbolo — confusão idêntica à de quem tomasse a interpretação exaustiva de uma obra poética — ou mesmo de várias — como resposta suficiente à questão: Que é a poesia? Ora, pode ocorrer, por desgraça, justamente o contrário: que a elucidação da natureza da poesia acabe por impugnar todas essas interpretações, por exaustivas e coerentes que sejam, e por mais amparadas que estejam em conhecimentos científicos, revelando nelas algo assim como uma paralaxe, um desvio do eixo de atenção em relação ao centro de interesse do objeto, uma concentração das questões em objetos parecidos, associados ou circunvizinhos, uma metabasis eis allo genoscomo tão freqüentemente sucede nas investigações científicas não suficientemente ancoradas numa consciência crítico-filosófica das complexidades e peculiaridades do objeto que se pretende investigar.
A estratégia que proponho para a abordagem do símbolo adotará como ponto de partida metodológico a seguinte regra: todo empenho sistemático de interpretação de símbolos deve ser posto entre parênteses como meramente hipotético, até que se alcance uma elucidação suficiente da natureza do símbolo. Esta elucidação, por sua vez, deve ser independente de qualquer chave ou sistema interpretativo ou explicativo-causal previamente dado, por elegante, completo ou prestigioso que seja.
Como objeto inicial da investigação, não admitirei nada mais senão o fato bruto de que existem palavras, grafismos, objetos, entes enfim, aos quais os homens atribuem um tipo especial de significação que denominam “simbólica”, diferente de uma outra que denominam “não simbólica”. Este é um fato de ordem histórica e cultural. A crença nele subentendida refere-se a uma dualidade de modos de significação. Nossa primeira tarefa será simplesmente verificar se essa dualidade é possível e, se possível, em que pode ela consistir.
2. A perspectiva rotatória
1. Cada termo significa uma constelação de intenções atualizáveis. No curso habitual do pensamento, essas intenções permanecem latentes e em germe, como que comprimidas no invólucro do termo. Não as atualizamos senão quando temos algum motivo especial para fazê-lo. Uma pergunta, uma dúvida, podem convidar-nos ou obrigar-nos a desdobrar as significações que supomos carregar em algum canto obscuro do nosso “interior”. Então às vezes verificamos que elas não estão lá; foram-se, ou então a enumeração não vem tão completa quanto esperávamos.
2. Esse caráter meramente potencial da intenção significante revela-nos que, na comunicação habitual, as funções expressiva e comunicativa da linguagem ( K. Bühler ) prevalecem amplamente sobre a função denominativa, com a qual contamos, apenas, como com uma reserva bancária sobre a qual passamos cheque após cheque sem verificar o saldo.
3. A filosofia analítica pretende suplantar as “imprecisões” da linguagem corrente, explicitando até o extremo limite as intenções e significados latentes e submetendo-os à crítica filosófica. Mas uma certa latência e imprecisão não são inerentes à natureza mesma do pensamento, da percepção e do próprio ser das coisas? Uma explicitação plena de todos os significados só é realizável sob a forma de um sistema ideal de conceitos e juízos, que por sua vez não se atualizará na consciência todo de uma vez, mas parte por parte, enquanto as demais partes permanecem latentes no fundo. Ou seja, a consciência que temos desse sistema terá ela mesma a estrutura de perspectivas rotatórias que observamos na vida psíquica corrente e na comunicação habitual: um conceito vem para a frente, enquanto os outros vão para o fundo, desaparecem como conteúdos atuais da consciência para se tornarem esquemas compactos de conteúdos meramente atualizáveis.
4. Uma cadeia lógica não é, assim, mais conhecível de instantâneo e no todo do que uma casa ou uma paisagem. Temos de percorrê-la, e quando no fim cremos conhecê-la “no todo”, o que sobrou em nossas mãos não é mais que um esquema simplificado, ou seja, uma potência de reatualizar no tempo a cadeia percorrida. “Conhecer” um raciocínio é poder reproduzi-lo na seqüência, não é reproduzi-lo no todo e com todos os detalhes num instante sem duração.
5. Forçosamente, cada passo que é atualizado na consciência implica a virtualização dos outros, seu recuo para o depósito do meramente atualizável.
6. É isto o que quero dizer com “perspectiva rotatória”. É a estrutura do ato mesmo de conhecimento, seja do conhecimento pelos sentidos, seja do mero pensamento.
7. É, por outro lado, a estrutura mesma da fenomenalidade como tal: nenhum objeto, nenhum ser, pode se apresentar a um determinado sujeito cognoscente na totalidade instantânea dos seus aspectos. É ilusão pensar que o objeto meramente ideal pode fazê-lo. O conceito mesmo de “quadrado” só se apresenta a mim no resumo compacto de um termo, e não no desdobramento completo das propriedades que inclui. Tanto o pensamento abstrato quanto a percepção sensível têm a estrutura de uma perspectiva rotatória: o sujeito cognoscente circunda o objeto tanto quanto circunda o conceito, e o faz precisamente porque seu foco de atenção é circundado pelas latências de inumeráveis objetos, conceitos e signos.
3. Dado, sentido e unidade (I)
A percepção do mundo como amontoado ou coleção de “coisas” ou meros “dados” sem uma conexão espiritual última pressupõe um observador destituído, por seu lado, de sua própria conexão espiritual, do elo interior entre sensação e significado, consciência e ação, antes e depois; um observador estúpido, em estado de divisão hipnótica e quase paralisia catatônica. É curioso, ou mais propriamente absurdo, que o “mundo” fragmentário captado por essa percepção deficiente seja tomado como norma da “realidade” e medida de aferição da validade da conexão interior que apreendemos no universo. A percepção efetiva do real exige, na mais alta medida, as supremas faculdades de síntese, que nos revelam, para lá mesmo da própria unidade física do mundo, a unidade de um “sentido” do mundo para o qual convergem todos os atos conscientes de um homem no mundo, até os mais mínimos. O kantismo e outras escolas que tomam como “realidade” os puros dados sensíveis e reduzem toda síntese a uma contribuição subjetiva que a mente faz ao mundo ignoram que um mundo sem unidade não poderia ser “dado” a nenhum sujeito, para que o ordenasse segundo suas categorias a priori, porque toda ordenação pressupõe a unidade consciente do sujeito e esta unidade só se realiza, precisamente, nos instantes de coesão ótima em que o mundo lhe aparece como uno, não como um amontoado fragmentário de sensações. A fragmentação do mundo em “dados” supostamente pré-categoriais só se obtém por dois meios: pelos estados patológicos de divisão do eu ou por esforço pessoal de abstração imaginativa; no primeiro caso, o sujeito está separado de si funcionalmente; no segundo, hipoteticamente e, em suma, fingidamente. Os “dados” não são prévios à síntese significativa; obtêm-se, ao contrário, por divisão abstrativa desta última, seja como resíduos de uma sonolência alucinatória, seja como meras formas fantasiosas de um mundo construído pela imaginação. Os famosos “dados” são em suma construídos, e a unidade espiritual última do mundo, em vez de construída, é dada. Por isto fracassam todas as tentativas de construí-la (ou mesmo de reconstruí-la) por meio de criações mentais, seja na arte, seja na ciência, seja na metafísica. A verdadeira metafísica não constrói um mundo, não é metafísica construtiva; é fundamentação discursiva da unidade do mundo espontaneamente percebida. Daí também o fracasso de toda tentativa de “expressar” o sentido último; ele é o pressuposto de toda expressão; é o supremamente percebido, jamais construído; e, fatalmente, só expressamos o que nossa mente constrói. É uma ilusão deduzir, da inexpressabilidade do sentido, sua inapreensibilidade. Ele é inepressável justamente por ser apreensível eminenter, por ser “o” aprensível como tal, enquanto todos os demais apreensíveis só são apreensíveis nele e por ele, sendo por isto expressáveis.
Por não fazer parte nem do mundo pragmático que construímos com nossas ações, nem do mundo imaginativo que construímos com nossa arte, nossa ciência, etc., ele acaba por parecer, à reflexão filosófica de primeira instância (reflexão sobre a cultura, sobre o mundo construído pelo homem), como um “x” remoto e distante, ao qual só poderíamos chegar no termo de uma caminhada que começa no “dado” sensível. Mas é uma ilusão de ótica, que inverte a ordem do real; ao sentido não se chega, pois ele é o pressuposto da própria percepção e, mais ainda, da caminhada reflexiva. O objetivo desta não é atingir o sentido, mas recuperar, no nível discursivo (portanto intersubjetivo), a certeza inicial e intuitiva do sentido. O objetivo é tornar patrimônio comum essa certeza inicial e fundamental que o homem só possui enquanto individualidade vivente, não enquanto ser social falante, plural na variedade de seus papéis e idiomas. No curso dessa recuperação, muitos desastres acontecem, que separam o homem da recordação do sentido e o levam a imaginar, seja que pode construir um sentido a partir dos dados, seja que pode encontrar um sentido partindo de dados sem sentido, seja que pode provar a inexistência do sentido ou a separação abissal entre o dado e o sentido, seja que não necessita de um sentido e pode viver entre puros dados. Tal é o panorama da história da filosofia.
As presentes considerações vão um pouco além do que habitualmente se chama “realismo”. O realismo afirma somente a realidade do mundo. Elas afirmam que a realidade do mundo é um dado, e que também o são, inseparavelmente dela, a unidade espiritual e o sentido do mundo. Realidade, mundo e sentido não podem ser construídos, seja pelo filósofo, seja pela cultura; só podem, por isto, ser percebidos intuitivamente, subentendendo que a intuição pressupõe um sujeito cognoscente dotado de unidade autoconsciente ótima no momento do ato intuitivo. Todo o trabalho da filosofia – e da cultura – é registrar o mundo intuído e defendê-lo, mediante a faculdade discursiva, da dissolução. E quem o ameaça de dissolução é a própria faculdade discursiva, constitutivamente dupla e auto-antagônica – dialética, em suma – ; dupla pela duplicidade de suas operações (significatio e suplentia), dupla pela duplicidade de suas funções (pensar e comunicar).
4. Dado, sentido e unidade (II)
A percepção imediata do sentido e da unidade do mundo, a que me refiro, é simplesmente o saber imediato que temos acerca do que estamos fazendo nele naquele preciso momento, e de aonde pretendemos chegar em seguida, e de aonde pretendemos que vão dar, no fim, todas as nossas ações. Sem esse pressentimento, seríamos incapazes de dar o próximo passo. Seria tolice imaginar que um homem dá seu próximo passo independentemente de qualquer consideração do que vem depois – um próximo passo isolado, atomístico. O “viver cada momento” é apenas uma figura literária. Aquele que diz “viver o momento” o faz sobre o pano de fundo de toda uma concepção do universo, a qual inclui, forçosamente, uma expectativa de continuidade. Tanto que, se fosse informado de sua morte iminente, seu momento seguinte seria bem diferente daquele que experimentaria se lhe dissessem, ao contrário, que a dama de seus desejos o espera no quarto ao lado.
A expectativa de uma continuidade que se prolonga para além da morte, seja na forma de uma vida celeste, seja sob a forma da simples permanência temporal do mundo após nossa saída dele, seja sob qualquer outra forma que se imagine, é uma conditio sine qua non do agir humano, e está subentendida mesmo nas nossas ações mais mínimas e corriqueiras. Mas essa diversidade de imaginações e suposições traduz apenas a variedade de reações individuais a uma experiência que é única e a mesma em todos os seres humanos: a experiência do movimento geral do cosmos, que vai para alguma direção e nos leva. Essa experiência pode ser vivenciada de maneira consciente, com mais probabilidade, na infância, mas em geral ela se torna inconsciente pelo fato mesmo de ser a mais constante e ininterrupta experiência humana, fundamento e condição de toda e qualquer experiência em particular.
5. Unidade e unidades
Mas, se a unidade do mundo é dada e a unidade de cada ente conhecido é apenas potencial, atualizada parcialmente e passo a passo pela perspectiva rotatória, uma conclusão se segue imediatamente: cada ente conhecido só é uno e só é ente a título de imago mundi. Da unidade total extraem sua unidade as unidades parciais.