Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de novembro de 2009

Georges Gurdjieff, que era um falso mestre espiritual mas um autêntico gênio do humorismo sádico, dizia ser a inteligência humana uma substância material, que existia no planeta Terra numa quantidade definida: quando um sujeito adquiria mais inteligência, ficava faltando para os outros. Essa teoria, evidentemente, só vale como piada, mas, nos meus momentos de depressão, chego a acreditar um pouco nela: afinal, como a experiência de décadas tem me confirmado, à medida que eu ia vencendo minha burrice natural e adquirindo alguma compreensão dos problemas da metafísica, da teoria do conhecimento e da lógica das ciências, ia concomitantemente observando meus contemporâneos perderem não apenas a capacidade para as distinções mais elementares, mas também a percepção das conseqüencias diretas e incontornáveis das afirmações em que acreditavam. Pior ainda: a diferença mesma entre inteligência e burrice ia se tornando para eles cada vez mais insensível, ao ponto de celebrarem como teorias respeitáveis certas idéias que, na geração anterior, um menino de escola perceberia de imediato serem totalmente autocontraditórias e inviáveis. A única explicação que encontro para esse fato é a hipótese gurdieffiana: cada vez que eu compreendia alguma coisa, a quantidade correspondente de potência compreensiva era suprimida de outros cérebros, fazendo com que eu progredisse na vida do intelecto às custas da imbecilização geral. Devo ser, em suma, um ladrão de conexões sinápticas.

Por exemplo, o dr. Richard Dawkins, que é um meu companheiro de geração. Sua teoria dos “memes” baseia-se inteiramente na incapacidade de perceber a diferença entre um programa de computador e um vírus de computador – entre um princípio organizador e uma força de dissolução entrópica. Ele começou por acreditar que tudo na natureza acontece por acaso, sem finalidade ou propósito. Até aí, tudo bem: é uma teoria como qualquer outra. Mas depois a glória midiática subiu-lhe à cabeça e ele começou a pensar que também podia explicar por processos randômicos e sem sentido tudo o que se passa no campo da história e da ação humana. Os memes não passam disso: são unidades de informação, sem nenhum significado especial em si mesmas, que se espalham e dominam sociedades inteiras simplesmente porque sim. A Catedral de Chartres e os Concertos de Brandeburgo, em suma, foram construídos pelos mesmos métodos do furacão Katrina ou de um acidente de trânsito. Acreditar nisso pressupunha, desde logo, abdicar de toda diferença entre possuir uma explicação e não possuir nenhuma. Ao mesmo tempo, era proibido aplicar a teoria memética a ela própria: quem quer que dissesse que ela era apenas um vírus de computador surgido por acaso numa mente em mau funcionamento tornava-se automaticamente um fanático, um réprobo, um ser anti-social indigno de participar de tão altas discussões.

Como, ao mesmo tempo em que o dr. Dawkins pensava essas coisas, os vírus de computador se espalhavam realmente pelo mundo e a multiplicação de informações sem sentido fazia da internet uma selva selvaggia na qual só podemos nos orientar mediante uma certa capacidade instintiva de recusar atenção a praticamente tudo, é claro que muitos processos de disseminação de idéias no mundo passaram a copiar quase literalmente a proliferação de vírus de computador, isto é, a dissolução de um pequeno núcleo de informações organizadoras num oceano de irrelevâncias estupidificantes.

Uma vez estabelecida como disciplina acadêmica a ciência ou pseudociência da “memética”, que o dr. Dawkins criou para descrever esses processos, tornou-se irresistível a tentação de aplicá-la a toda a história anterior da espécie humana, explicando-se então os progressos do conhecimento desde os tempos do homem de Neanderthal pelas mesmas causas que hoje espalham a estupidez coletiva, isto é, eliminando-se por completo a distinção entre conhecimento e ignorância, entre inteligência e burrice. Não duvido que a memética sirva para descrever, por exemplo, a própria evolução intelectual do Dr. Dawkins, que culmina na autocastração mental que o incapacita para as abstrações de terceiro e até de segundo grau. Perguntado quanto à origem da vida, ele respondeu que provavelmente os germes da vida foram trazidos por viajantes extraplanetários. Mesmo refreando, por uma questão de respeito, qualquer impulso maldoso de fazer piada quanto à teoria dos deuses astronautas, é impossível não perceber que a resposta exige uma incapacidade patética de distinguir entre o esquema geral “vida” e as encarnações concretas desse esquema na Terra – diferença que qualquer criança normal percebe instintivamente. Afinal, para que os germes da vida fossem trazidos, era preciso que eles existissem, e perguntar sobre a origem da vida é obviamente perguntar como vieram à existência e não quem os transportou de um lugar para outro. Isso não chega a ser propriamente uma sutileza, mas, para o dr. Dawkins, havia se tornado uma abstração inapreensível. Para que um homem com treino científico superior descesse a esse ponto, e para que sua platéia de estudantes não percebesse o vexame, foi preciso mesmo que uma quantidade assombrosa de memes se espalhasse pelos cérebros respectivos, cegando-os até mesmo para a boa e velha distinção aristotélica entre um ente corporal e sua forma inteligível, distinção sem a qual fica difícil captar a diferença entre remédio e bula, entre comida e cardápio ou entre sapato e número de sapato. Que isso é uma tragédia cognitiva sem precedentes na história humana, e que as conseqüências histórico-sociais da sua disseminação planetária arriscam ser as mais devastadoras, eis duas constatações que desestimulam qualquer veleidade de fazer troça a respeito.

Nos próximos artigos, explorarei algumas dessas conseqüências tal como aparecem no campo mais visível da política e do jornalismo.

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