Olavo de Carvalho


 O Globo, 5 de janeiro de 2001

O impulso essencial da modernidade, segundo o consenso dos estudiosos, é o imanentismo, a rejeição de um sentido transcendente da existência e a total circunscrição das esperanças humanas a este baixo mundo. Se a opção imanentista tem conseqüências lógicas bastante evidentes, a pertinaz ocultação delas, por outro lado, tem constituído uma das principais atividades culturais nos últimos dois séculos, dando origem a uma série interminável de desvarios e sofrimentos.

Desde logo, um “sentido” não pode ser imanente de maneira alguma, já que ele é, por definição, aquilo a que uma coisa remete para além dela mesma: o sentido da vida, se existe, está para além da vida. Mutatis mutandis, o sentido da História só pode estar na meta-História. Não há como escapar disso. Abolir toda transcendência seria reduzir o significado à materialidade do signo: a completa redundância do completo nonsense. Poucos pensadores — um Emil Cioran, um Nietzsche até certo ponto, na poesia um Wallace Stevens — sentiram-se preparados para aceitar essa conseqüência. O autêntico imanentista, dizia John Anthony West, é um tipo durão, um John Wayne da filosofia: o cavaleiro solitário, impávido ante o deserto do absurdo. Em geral o imanentismo alardeado fica bem aquém disso: não se livra de toda transcendência, apenas troca-a por um ersatz, uma caricatura de transcendência. Há portanto dois tipos de imanentismo: o forte, que assume o absurdo, e o fraco, que o camufla sob um pretexto de ocasião.

A forma mais disseminada de imanentismo fraco são as filosofias do progresso histórico, nas quais uma época futura, vagamente esboçada na imaginação, torna-se o “sentido” dos esforços presentes. É a transcendência projetada no amanhã. Chega a ser fantástico que a tantos pensadores tenha escapado esta observação elementar: todos os tempos históricos possíveis estão embutidos na mesma dimensão temporal, são etapas deste “século”, no sentido teológico de “secularidade”. Nenhum deles “transcende” os outros. O velho Leopold von Ranke já advertia: “Todas as épocas são iguais perante Deus.” Entre a transcendência e um tempo futuro só há um traço em comum: ambos são incognoscíveis desde o aqui e agora. As filosofias da “transcendência histórica” — “paz eterna” kantiana, socialismo, positivismo, nazismo — baseiam-se na falácia de que duas coisas, por serem igualmente desconhecidas, são a mesma coisa. Fazer de um tempo futuro o sentido dos tempos presentes é a mistificação a que os imanentistas de alma sensível recorrem para poder desviar os olhos do absurdo que não conseguem evitar. As filosofias do progresso histórico são filosofias da irresponsabilidade intelectual. Não têm sequer, como o imanentismo forte, a dignidade da loucura assumida.

Dessa irresponsabilidade básica derivaram, historicamente, leviandades e inconseqüências de toda sorte. Uma das mais notáveis aparece na atitude do progressismo ocidental ante as tradições orientais. Karl Marx, num primeiro momento, assumiu diante delas a única posição coerente para um devoto do progresso: decretou que eram arcaísmos condenados, que o avanço da modernidade capitalista ou socialista iria (e deveria) destruir implacavelmente. O imperialismo ocidental, nesse sentido, é progresso. Marx afirmou-o com todas as letras, e a coisa não ficou na teoria: o “socialismo real” protagonizou o modernismo destruidor em proporções jamais sonhadas por qualquer potência capitalista, arrasando onde pôde as culturas tradicionais, sobretudo na China, onde a educação comunista suprimiu da mentalidade das novas gerações os últimos sinais da herança taoísta e confuciana.

Stalin, porém, teve a brilhante idéia de tornar moralmente proibitiva às potências ocidentais a modernização imperialista que, nos territórios ocupados pela URSS, ele continuava aplicando com uma violência e uma crueldade que o mais ambicioso capitalista não ousaria sequer sonhar. Se no plano interno ele seguia fielmente a política marxista de terra arrasada, nas relações internacionais ordenou que os partidos comunistas assumissem a defesa das nações e culturas antigas contra o modernizador capitalista, dando ao confronto do moderno e do arcaico o sentido de “luta de classes”. Graças à força da metáfora, paxás, sultões, tiranos orientais e africanos, encarapitados sobre tronos de ouro construídos com o suor e o sangue de populações paupérrimas, tornaram-se de repente encarnações do “proletariado” em luta heróica contra a exploração capitalista. Costumes tribais, direitos feudais, estratificações de casta, religiões e ritos pré-históricos transfiguraram-se em “forças progressistas”, sob as bênçãos da intelligentzia avançada.

A durabilidade da farsa atravessou as décadas. É mais uma prova desta verdade histórica surpreendente: nenhuma influência individual sobre a cultura do século XX superou a de Stalin. Todas as políticas de “diversidade cultural”, hoje enaltecidas pela fina flor da intelectualidade ocidental como puras expressões da democracia, remontam a ele. Foi ele que as inventou; foram os partidos comunistas que as espalharam no mundo por uma complexa rede de agentes e simpatizantes. Passadas umas décadas, as propostas absurdas, premeditadamente concebidas como intoxicantes para confundir e paralisar o Ocidente, já não precisam sequer da máquina partidária para disseminar-se. Adquiriram pela impregnação do hábito um falso aroma de naturalidade: estão “no ar”, e aquele que as aspira, com a maior inocência, não sabe de onde vieram. Do stalinismo, perderam apenas o rótulo — não o espírito. Um stalinismo inconsciente, residual, é ainda uma grande força geradora de modas culturais no Ocidente.

Mas tudo o que se faz, neste mundo, tem um troco. O oportunismo esquerdista, ao promover as culturas antigas e orientais para usá-las contra a modernização capitalista, não pode impedir que elas, uma vez detentoras da atenção da platéia ocidental, façam ouvir sua própria voz, transmitam sua própria mensagem. E esta não somente é alheia a todo esquerdismo, socialismo ou comunismo, mas traz em si a crítica mais arrasadora ao imanentismo e à religião do progresso histórico. Leiam, por exemplo, “Knowledge and the Sacred” ou “Man and Nature” de Seyyed Hossein Nasr, que foi ministro da Cultura do Irã no tempo de Reza Pahlevi. Livros como esses nos trazem de volta, no refluxo da maré histórica deslanchada por uma grande mentira, as verdades que foram traídas e esquecidas no início do processo. “Ex Oriente lux”: a luz vem do Oriente. Pouco importa que tenha sido trazida, de contrabando, na bagagem de ladrões, genocidas e stalinistas. Isso não basta para ofuscá-la. É dela que depende em grande parte, hoje, a reconquista dos ideais ocidentais abandonados pela cultura imanentista dos últimos dois séculos.

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