Olavo de Carvalho


 O Globo , 8 dez. 2001

Um dos sinais alarmantes da estupidez endêmica do nosso mundo universitário é o uso que nele se faz dos termos “esquerda” e “direita”. Nenhum estudioso acadêmico tem o direito de ignorar que palavras como essas têm sentidos diversos quando usadas como autodefinições de grupos e partidos e quando usadas num contexto intelectualmente relevante como designações de fenômenos objetivos, identificáveis. Mas é precisamente essa distinção, elementar e obrigatória, que escapa a tantos analfabetos funcionais que hoje se dizem cientistas políticos, sociólogos e filósofos.

Para o militante que se creia “de esquerda”, e que identifique o esquerdismo com o bem, a verdade e a liberdade, “direita” só pode significar o mal, a mentira e a opressão, com o corolário inevitável de que ele atribuirá estas qualidades, a priori, ao que quer que contrarie a política autodenominada “esquerdista” no momento. Daí até o casuísmo mais arrebatado, que faz catalogações ideológicas gerais com base nas posições adotadas em face de questões muito particulares, muito miúdas — como a privatização de uma estatal ou uma greve de professores —, é apenas um passo. Transposto esse passo, atolamos de vez no lamaçal da mais grudenta inconsciência.
Que, passados uns anos, o que foi tido como direitismo e reacionarismo possa, numa visão retrospectiva, se revelar mais “progressista” aos olhos da própria esquerda do que aquilo que na época se rotulava esquerdismo, eis algo que não preocupa no mais mínimo que seja esse militante, o qual se deixa guiar pelos rótulos do dia como o burro é levado daqui para lá pelos repuxões das rédeas, sem ter a menor idéia de para onde vai.

Mas o historiador, o cientista político, o estudioso, se é digno da sua condição profissional, deve dar nomes às coisas, precisamente, conforme o lado para onde elas vão de fato e não conforme a impressão superficial que possam dar no calor da hora. O próprio Karl Marx não estava inconsciente dessa obrigação, ao confessar mais afinidade com o conservador Honoré de Balzac do que com os socialistas utópicos, porque aquele captava a direção da História (conforme Marx a entendia) e estes fugiam para a Terra do Nunca.

Mas num meio social onde o intelectual acadêmico em geral está mais comprometido com sua imagem popular de cabo eleitoral do que com as obrigações da ciência, seria possível esperar dele o reconhecimento de verdades óbvias?

É por exemplo uma verdade óbvia que o general Geisel, quando presidente, seguiu o programa convencional da esquerda em dois pontos essenciais da sua administração: a orientação econômica ferozmente estatizante e o ostensivo “terceiromundismo” nas relações exteriores. O fato de que os comunistas, durante o seu governo, estivessem geralmente na cadeia não modifica isso em nada, pois havia muito mais comunistas nas prisões de Cuba ou da China.

Na época, só um esquerdista percebeu que Geisel era de esquerda: Glauber Rocha. O raciocínio que o levava a essa conclusão era o mesmíssimo que a esquerda aceitava quando a aplicado a Gamal Abdel Nasser, ao General Alvarado do Peru ou — retroativamente — a Getúlio Vargas. Visto de longe, o governante durão que punha os comunistas de molho para mais livremente se tornar ele próprio a encarnação monopolística da política de esquerda podia ser aceito como um representante digno do esquerdismo essencial, pouco importando se revestido de direitismo nominal. De perto, o casuísmo dos ressentimentos políticos predominava descaradamente sobre a classificação objetiva. Glauber foi portanto chamado de louco, e Geisel continuou, para todos os efeitos, um “direitista”.

É que neste país a obrigação número um do acadêmico é bajular a massa, ainda que ao preço de danificar irreparavelmente seu próprio cérebro.

Mais vergonhosa ainda é a catalogação puramente emotiva e quantitativa dos direitistas em “moderados” e “extremados”, não segundo o conteúdo objetivo de suas respectivas propostas políticas, mas segundo a oposição mais discreta ou mais ostensiva que, ao sabor das circunstâncias passageiras, façam ao avanço do comunismo. A rigor — e se fosse para raciocinar coerentemente a partir da própria autodefinição do esquerdismo —, o leque das nuances da direita começaria na liberaldemocracia e terminaria nos autoritarismos de inspiração religiosa, como o franquismo, a ditadura católica de Dolfuss na Áustria ou a TFP do dr. Plínio Correia de Oliveira, todos mais ou menos herdeiros de Juan Donoso Cortés. No Brasil, porém, estas últimas correntes foram tão bem criminalizadas e excluídas do debate público pela censura gramsciana, que os liberal-democratas puderam, com a maior facilidade, ser removidos nominalmente para a “extrema direita”. Trocando de lugar no espectrograma ideológico por uma pura decisão do oportunismo esquerdista, eles são assim preparados para entrar por sua vez na lista dos criminalizados e excluídos, sem que a opinião pública dê pela anormalidade da coisa. A fraude adquire ainda maior potencial destrutivo quando reforçada pelo pressuposto — abolutamente mentiroso, conforme já demonstrei em artigos anteriores — que cataloga na direita o nazismo alemão, uma ideologia revolucionária, socialista, estatizante, materialista e anticristã como o marxismo, e que só se distingue dele por associar sistematicamente o ódio ao burguês com o ódio ao judeu. Assim, o liberal democrata tipicamente laico, céptico e voltaireano não só vai para a extrema direita junto o católico teocrata Donoso Cortés, mas também junto com Adolf Hitler, o sujeito que tinha como objetivos prioritários do seu programa político a abolição da liberaldemocracia e a promessa de “esmagar a Igreja Católica como se pisa num sapo”. Sim, a “bête noire” direitista contra a qual se volta o rancor esquerdista é uma síntese de Voltaire, Donoso Cortés e Adolf Hitler — um bicho certamente mais difícil de encontrar no universo real do que o Abominável Homem das Neves.

Orientado por professores capazes de operar no corpo da realidade essas cirurgias, mais radicais que mudanças de sexo porque trocam a própria identidade histórica dos fatos e pessoas, o estudante brasileiro só pode mesmo tornar-se um burro de presépio, um conformista idiota que, ao ecoar mecanicamente os urros da massa, ainda acredita piamente estar exercendo sua liberdade de “pensamento crítico”.

Não tenham a menor dúvida: quem quer que, falando de Roberto Campos, de José Osvaldo de Meira Penna, de José Guilherme Merquior ou de qualquer outro defensor do liberalismo, se refira a eles como a homens de “extema direita”, é um vigarista, um charlatão — sua presença numa cátedra acadêmica é sintoma de uma doença do espírito e uma vergonha para a cultura nacional.

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