Olavo de Carvalho

Zero Hora, 24 de julho de 2005

A coisa mais espantosa no falatório geral em torno da corrupção no governo é a insistência dos denunciantes, mesmo os mais inflamados, em manter a discussão do assunto encerrada no estrito limite prático-judicial, sem tocar nas fontes ideológicas da criminalidade petista.

Ora, a diferença essencial entre os casos de corrupção pré-Lula e os de agora é aquela que existe entre o delito avulso e o crime sistêmico, a iniciativa isolada de grupos em busca de vantagem própria e a organização maciça da delinqüencia em escala nacional, longamente preparada pelo entorpecimento metódico das consciências que, por isso mesmo, se vêem agora desarmadas para apreender a raiz da tragédia nacional, a ligação natural e indissolúvel entre política revolucionária e crime organizado.

De Marx a Antonio Gramsci, de Lenin a Fidel Castro, a tradição marxista é unânime tanto no seu desprezo à “moral burguesa” quanto na sua perfídia de imitá-la para destrui-la. Pode haver coisa mais burguesa do que colocar as leis e a ordem de uma sociedade nominalmente capitalista acima das conveniências estratégicas e táticas da esquerda? O petista que incorresse nessa fraqueza se sentiria réu do pecado mortal de traição à causa da “classe operária”. Fingir respeito, sim. Envergar uma máscara de idoneidade para ludibriar ricaços idiotas e pseudo-conservadores poltrões, sim. Adaptar-se às conveniências para não afugentar alianças indispensáveis, sim. Mas introjetar os princípios da moral vigente, guardá-los no coração e obedecê-los com sinceridade na prática política, ah, isto não! Seria o suprassumo da baixeza.

Se o PT no poder elevou o nível de corrupção acima do que exércitos inteiros de Anões do Orçamento ousariam conceber, foi porque se preparou para isso ao longo de décadas de auto-intoxicação ideológica que, arrogando à militância do presente os méritos imaginários do socialismo futuro, lhe concedia no mesmo ato o salvo-conduto para mentir em nome da verdade, roubar em nome da honestidade, delinqüir em nome da lei, até matar em nome da vida. Sim, matar, porque não há entre os líderes petistas (e esquerdistas em geral) um só que, pranteando as trezentas vítimas do regime militar até o limite do sentimentalismo kitsch e prodigalizando indenizações a seus descendentes até o limite da devassidão orçamentária, não considere de seu dever cuspir simultaneamente no túmulo das duas centenas de vítimas do terrorismo, recusando-lhes até mesmo o direito a um tímido esboço de homenagem verbal, que alguns deles, cheios de brios feridos e embriagados de ódio político imune à passagem de quatro décadas, descreveram como “um acinte” e “um show de horror”. Quando o simples respeito aos mortos é condicionado a exigências ideológicas, como não perceber que, na mente desses indivíduos, os preceitos mais elementares da moral, os sentimentos humanos mais básicos e universais foram esmagados sob o peso da idolatria partidária, da solidariedade mafiosa entre os irmãos de carteirinha? E, diante de tamanha deformidade do espírito, como não prever que, investidos dos meios de reforçar ilegalmente o esplendor do seu partido com recursos do Estado, tais indivíduos fariam exatamente isso? Gente capaz de prostituir no leito dos seus interesses partidários até a fé religiosa, como o faz a teologia da libertação, até os mais elevados sentimentos de compaixão popular, como se fez nas coletas do Betinho, até a aspiração nacional de ordem e decência, como na “campanha pela ética na política”, por que haveria de respeitar os bens do Estado em vez de usá-los para finalidades que, na sua imaginação narcísica, transcendem infinitamente em nobreza e importância o próprio Estado?

Esperar outra conduta do PT no poder, como o fizeram até as elites mais diretamente interessadas na preservação do capitalismo brasileiro, foi tão absurdo, tão irrealista, que, hoje, aqueles que apostaram nisso sentem o impulso de despolitizar a notícia dos crimes para não ter de denunciar, junto com eles, a sua própria recusa obstinada de ligar às causas às conseqüências, a sua vergonhosa e imperdoável covardia intelectual de capitalistas bajuladores de comunistas.

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