Textos

Petismo e revolução armada

Entrevista de Olavo de Carvalho à Rádio Gaúcha

21 de agosto de 2000

Transcrição de Luiz Triches dos Reis

NB – Todas as correções que introduzi estão assinaladas entre colchetes. – O. de C.

Ranzolin: O senhor é filósofo e jornalista, conhecido dos gaúchos pelos artigos que publica em Zero Hora. Por que o senhor tem afirmado que a esquerda tornou-se hegemônica?

Olavo de Carvalho – Veja que, desde que começou o regime militar, a esquerda brasileira começou uma vasta operação, que já vem de muitas décadas, que consistia, primeiro, em infiltrar-se em todos os escalões do aparelho de Estado. Segundo: tomar de maneira avassaladora todos os meios de comunicação, as instituições culturais, o aparato educacional e até mesmo os consultórios de psicologia, consultórios de aconselhamento matrimonial, todos os canais por onde o povo ouve alguma coisa.  Isso chama-se, na estratégia do teórico esquerdista Antonio Gramsci, que é a grande influência da esquerda brasileira, a “Revolução Cultural”. Ou seja, operar uma transformação tão sutil na escala de valores, no imaginário, na mente das pessoas, que se possa fazer uma transição para um governo comunista quase que de maneira indolor. A dor só será sentida depois, quando os comunistas já estiverem com o poder na mão e começarem as perseguições, as ações punitivas. Mas a transição ninguém percebe que já está acontecendo, e acontece diariamente, diante dos nossos olhos, sendo que o público está muito mal-informado. Veja, por exemplo, o PT. Ele é um partido sui generis. Se você vê a propaganda do PT, o que [os candidatos dele] falam em palanques, anúncios, artigos e discursos na Câmara, é uma coisa. Se você lê o material interno, discutido em congressos do PT, é outra. Para fora eles falam em combate à corrupção, em democracia. Dentro, eles falam em tomada do poder, em luta de classes, em toda aquela velha conversa comunista. É um partido que por dentro é uma coisa, por fora, é outra. Isso já é uma coisa de uma desonestidade tão grande, que nem vejo como um partido desses possa existir legalmente. É o único partido que adquiriu os meios e o direito de agir na esfera legal e na ilegal. Por um lado participa de eleições, por outro lado, tem ramificações [clandestinas] e apóia o movimento armado. Ou uma coisa ou outra. Ou você participa da esfera legal, das eleições, ou você parte para a esfera ilegal e pega em armas e faz uma revolução armada. Agora, o PT tem o direito de atuar nas duas frentes.

Ana Amélia: Se há essa infiltração da esquerda dentro do “establishment” governamental e em todas as áreas que o senhor acabou de citar, como é que eles não denunciaram os desmandos no caso do TRT de São Paulo, por exemplo, já que eles estão dentro do sistema?

Olavo de Carvalho – Veja, tudo isso é feito de uma maneira lenta e calma. O processo é de uma sutileza fantástica. Na Itália, onde essa técnica foi utilizada pela primeira vez, o Partido Comunista tinha preparado a tomada do poder durante quarenta anos, tanto que ofereceram ao seu secretário-geral, Palmiro Togliati, o cargo de primeiro-ministro. Ele não aceitou, por achar que era prematuro. Isso depois de quarenta anos. Imagine a sutileza do negócio. Isso não é feito do dia para a noite. E veja: incentivar a corrupção para depois denunciá-la é uma coisa característica [dos comunistas]. A atividade cultural da esquerda, dentro das escolas, sobre a mente popular, visa sempre destruir o centro de valores, o centro de moral. Isso incentiva [a corrupção, é] uma das principais causas da corrupção. Aí, quando a corrupção acontece, o partido a denuncia. E jamais assume a sua responsabilidade por esse estado de coisas.

Ranzolin – Professor, não quero perder a oportunidade de perguntar o que o senhor quer dizer quando afirma que dentro da ideologia comunista o significado de luta pela democracia tem um significado específico, bem diferente do que tem na linguagem corrente.

Olavo de Carvalho – Isso é uma questão clássica, vem de 1910, quando o Lenin fez a revolução na Rússia. Você faz a revolução em duas etapas, a primeira [é] democrática, e a segunda é a revolução socialista. Exatamente como na Rússia, onde houve duas revoluções, exatamente como na China, ou em Cuba. Primeiro uma mudança democrática que só serve para abalar a estrutura do sistema. Na hora em que ele está destruído, você cria um caos, onde o grupo que comanda o processo adquire o poder absoluto. “Luta pela democracia” é um termo técnico, uma etapa para a revolução comunista. No Brasil, ninguém mais sabe disso. Fora do círculo que promove isso, o povo não sabe. O povo não tem mais informação, está acreditando que o comunismo acabou, que não existe mais, não é? A própria esquerda alimenta isso. Abrindo um parêntese: eu não sou contra a esquerda, não. O que não deve existir é uma esquerda revolucionária, isto é, a pior das corrupções, das maldades. As pessoas só acreditam em corrupção quando envolve dinheiro. Quando é uma corrupção gigantesca, que envolve a tomada do poder, para instalação de um poder absoluto, [o povo] não percebe que isso é corrupção.

Ranzolin – Mas aqui no Brasil houve, o senhor mesmo tocou nesse ponto, uma luta pela redemocratização, uma luta para retomar a normalidade democrática. Aí o senhor diz que apenas uma parte dos objetivos foi alcançada, a parte menor. Qual era a parte maior?

Olavo de Carvalho – No plano da esquerda — esse plano inclusive está escrito, está falado –, a revolução tinha duas etapas. A primeira era a redemocratização, que era simplesmente para criar uma situação caótica, seguida pela tomada do poder. É exatamente o que está acontecendo. Se você [examinar] todo o processo redemocratizatório e a Constituição de 1988, [verá que ele] é todinho conduzido pela esquerda. Um grupo de esquerda muito discreto, não necessariamente formado pelas pessoas que aparecem. Não estou falando em Luíza Erundina e Olívia Dutra, mas de gente muito mais sofisticada, que estudou o marxismo por vinte ou trinta anos, [pessoas] que estão habilitadas a implementar esse processo da revolução sutil, da revolução cultural, que eles chamam também de revolução passiva, o que é maligno, porque a revolução passiva é a que acontece sem ninguém perceber e onde a falta de reação do povo é interpretada pela cúpula comunista como aprovação.

Ranzolin – O senhor é a favor da extinção da esquerda?

Olavo de Carvalho – De maneira nenhuma! Todo país tem de ter esquerda, centro e direita. O que não pode é um partido usar instrumentos revolucionários.

Ana Amélia – O senhor citou alguns partidos que estariam comprometidos com essa revolução. Agora, o PPS, o PSB de Arraes, o PDT de Brizola, o PSDB, estariam nessa linha?

Olavo de Carvalho – O PSB eu não tenho informações corretas, eu não posso dizer. Mas as ligações entre o PT e o MST são evidentes. Há uma parceria. Um faz as coisas na esfera da violência e o outro se senta no Parlamento. Se você olhar a história do comunismo, vai ver que é assim há séculos. Só que a fórmula é escondida do povo. O povo não sabe dessa diferença [entre os] discurso das teses internas do PT e a sua propaganda. Essa diferença é notável. Mas o povo não lê esses documentos.

Ranzolin – O que fazer para fortalecer a democracia do País, em última análise?

Olavo de Carvalho – Em primeiro lugar, é necessário que os partidos que não são de esquerda, que não são coniventes com essa coisa, tomem consciência de que nós estamos vivendo em um processo revolucionário em preparação acelerada. Estamos à beira da tomada do poder pelos comunistas num processo revolucionário. O Brasil foi designado para ser o lugar onde a fênix comunista vai renascer. Isso é uma decisão firme tomada [pela] esquerda, o processo está em curso, acontecendo [sob as] nossas barbas. A primeira coisa é tomar consciência e se informar urgentemente. E adquirir também o senso de ter as informações para perceber que coisas que outros partidos consideram imorais, para os comunistas são perfeitamente normais. Por exemplo, você fazer uma campanha só de fachada, sem a intenção verdadeira de levar aquilo adiante, é uma coisa impensável. Para os comunistas, não. Por exemplo, a famosa Campanha Contra a Fome e a Miséria, do Betinho. Para o público o Betinho dizia uma coisa, em particular [dizia que seu objetivo] não era nada daquilo. Era chegar à socialização dos meios de produção. Dentro do regime comunista. [Em] público, [a campanha] era [para] socorrer os pobres numa emergência, no recinto privado eram recursos para fazer a revolução. Essa campanha contra a corrupção que [está] aí, você veja que nos autos de acusação nunca tem gente da esquerda, nunca tem gente deles. Compreendeu? Isso está muito bem articulado. Se você pegar a classe jornalística de São Paulo e Rio, 75% são petistas e estão coniventes com isso.

Ana Amélia – O fato de eles cuidarem mais da moralidade não é para ter essa imagem de pureza perante a opinião pública?

Olavo de Carvalho – Bom, é muito simples, de fato eles cuidam mais da moralidade. Pelo seguinte: eles têm mais poder sobre os seus militantes. Eles visam ao processo revolucionário e não vão permitir que os seus militantes estraguem a revolução roubando um pouquinho de dinheiro aqui e ali. São muito policiados, nesse sentido. Eles passam a impressão [de honestidade], mas essa honestidade é só com o dinheiro público. O que eles estão fazendo por trás, essa desmontagem do sistema, essa operação revolucionária clandestina, é infinitamente mais desonesta do que qualquer desvio do dinheiro público.

Ana Amélia – Como é que a direita está se articulando contra isso?

Olavo de Carvalho – Em primeiro lugar, não existe mais direita nenhuma. Há partidos muito enfraquecidos que nem têm uma tomada de posição. O pessoal do PFL só tem discurso em favor da iniciativa privada. E ponto. Como um discurso desses pode se opor a uma operação dessas [dimensões]? Não há ninguém no PFL que saiba disso que eu estou falando!

Ana Amélia – Nem o ACM?

Olavo de Carvalho – Que ACM? Aquele não sabe nada. É um homem ingênuo. É um bobão. É isso o que eu estou dizendo: [é] preciso cultura, é preciso conhecimento, é preciso ter estudado história. Nossos políticos são todos semi-analfabetos, não lêem livros. A história das revoluções comunistas ninguém conhece no Brasil, e [ela] está acontecendo de novo sob as nossas barbas.

Ana Amélia – Nesse  aspecto, pelo menos um setor não está agindo com a sutileza que o senhor comenta. É o caso do MST. Que é um dos movimentos mais importantes…

Olavo de Carvalho – (interrompendo) O MST é um dos braços. Como eu disse, existem duas frentes, ou dois andares. Existe a atuação legal, através do Partido Comunista (1), e a ilegal, que é preparar a guerrilha, os guerrilheiros, a rede de espionagem. O MST é uma das alas do negócio. Mas em perfeita consonância com o resto da esquerda. Não se estudam mais essas coisas. As pessoas ignoram. Na juventude fui comunista. Estudei as obras de Lenin, de Karl Marx. Fui um comunista até muito aplicado. Para um comunista experiente, isso que eu disse é arroz-com-feijão, mas, para a população brasileira, isso aqui é um [mistério] (2), ninguém tem a menor idéia disso. Tem pessoas aí que, se você [lhes disser] que o PT é um partido comunista, dirão que você está maluco, porque o PT jamais fala isso em público. Então, eu digo: leiam as atas dos congressos do PT, leiam o material interno do PT, que não é secreto, e vocês verão que as decisões, a estratégia, tudo  é exatamente igual a todos os partidos comunistas do mundo.

Ranzolin – E qual é professor, qual é o recurso ideológico dos liberais dentro desse quadro?

Olavo de Carvalho – Veja bem, em primeiro lugar: nunca se deve desejar destruir a esquerda. Tem de existir uma esquerda. Mas ela deve ser disciplinada para abdicar dos recursos revolucionários. Ela não pode ao mesmo tempo participar do processo eleitoral legal e estar tramando a guerrilha, treinando guerrilheiros, juntando armas, criando um aparato de espionagem. Como existe hoje uma rede de espionagem petista, todos sabemos que existe, com um serviço secreto muito mais vasto que qualquer serviço secreto do governo. Então, temos um partido político que tem o privilégio de operar secretamente campos de guerrilha – e não é bem um partido, é um aglomerado de partidos de esquerda – que tem uma série de direitos e de possibilidades que os [outros] partidos não têm. Você imagine, por exemplo: se se descobrisse que o PFL está treinando um grupo de terroristas para soltar bombas no PT, toda a cúpula do PFL seria presa na mesma hora. No entanto, nós descobrimos que o PT, o PC do B, através de suas ligações clandestinas, estão treinando guerrilheiros, e não acontece nada… Note bem que o Governo Fernando Henrique é cúmplice disso aí.

Notas

(1) Evidente lapsus linguae da minha parte. Eu quis dizer Partido dos Trabalhadores. Mas no fundo é a mesma coisa.

(2) Na transcrição consta “estouro”, mas lembro-me claramente de ter dito “mistério”.

A filosofia não é para os tímidos

Entrevista de Olavo de Carvalho a Zora Seljan

Jornal de Letras
, Academia Brasileira, julho de 2000

1 – O que é ser filósofo?

É acreditar piamente na capacidade humana de compreender a realidade — e apostar a vida nessa crença. A apoteose da razão começa com um ato de fé. Hegel já dizia isso: sem a fé no poder do espírito, nada de investigação filosófica. A filosofia, como o reino dos céus, não foi feita para os tímidos e recalcitrantes. Mas a essa primeira aposta segue-se um compromisso, que é o de nada ignorar da realidade propositadamente. O filósofo tem de abrir-se inteiramente à variedade dos fatos que se apresentam, sem se refugiar em explicações prematuras. Em vez de inventar explicações, tem de esperar que a realidade as sugira e as comprove, mesmo que, nessa espera, ele arrisque ficar quase louco na confusão dos dados. Por isso não gosto de chamar os filósofos de “pensadores”. Pensar é fácil. O difícil é pensar as coisas como são – e para isto é preciso contrariar muitas vezes o nosso pensamento, obrigá-lo a ir para onde não quer. Por isso, também, não vejo diferença substancial entre filosofia e ciência. As ciências são apenas estabilizações provisórias de certas investigações filosóficas, para as quais se encontrou um método consensual que pode ser praticado uniformemente por toda uma comunidade, mas que, de tempos em tempos, são dissolvidas de novo no mar do questionamento filosófico profundo.

2 – Como vê a situação atual dos estudos filosóficos no Brasil?

Desastrosa, embora menos do que seria de esperar. Revistas como a “Presença Filosófica”, a “Revista Brasileira de Filosofia” e a “Síntese” de Belo Horizonte (que não sei se ainda circula) salvam a nossa honra. Mas, no geral, o que se vê é empulhação ideológica mais rasteira dominando o cenário. Só para dar um exemplo: a capacidade quase instintiva para distinguir entre um conceito e uma figura de linguagem é a marca do talento para os estudos filosóficos, a condição inicial para o ingresso na filosofia. Nossos filósofos acadêmicos mais badalados, depois de décadas de estudo, ainda não adquiriram essa habilidade elementar. Só se ocupam de espalhar entre os alunos a confusão e a obscuridade de suas almas toscas, e compensam sua miséria interior mediante a participação exibicionista em campanhas políticas. O pior é a moda da filosofia para crianças, um cabide de empregos e um abuso da inocência infantil: a filosofia não é coisa para crianças, como supõe o nosso execrável Ministério da Educação. Alquimicamente falando, a filosofia é o enxofre que cristaliza o mercúrio, a mente volátil, para produzir o sal – a alma perfeita. A cristalização prematura é um desastre alquímico, o congelamento da alma. Os professores de filosofia estão ajudando nossas crianças a sufocar suas percepções autênticas sob um discurso pseudo-intelectual de um artificialismo desesperador.

3 – Como unir senso de humor, eloquência de argumentação e lucidez filosófica?

Essas coisas vêm sempre juntas ou então não vêm. O fundador da tradição filosófica, Sócrates, era uma síntese das três. Platão não ficava atrás. E até os escritos que nos restaram de Aristóteles, meros rascunhos técnicos para exposição em classe, deixam transparecer o fino senso de humor que certamente animava suas conversações com os alunos.

4 – Sua reinterpretação de Aristóteles pode levar-nos a uma visão unificada de toda a filosofia grega?

Sinceramente, espero que sim. Aristóteles estava muito consciente da sua posição no quadro evolutivo da filosofia que o antecedeu, e todo o seu pensamento é não apenas uma reflexão sobre essa evolução, mas quase a materialização dela sob a forma de ordem e sistema – como quando você ouve uma melodia e de repente percebe essa seqüência temporal sob a forma de um desenho, de um gráfico: o tempo que vira espaço. Primeiro os gregos conheceram o discurso mitopoético das epopéias e da lírica, depois o discurso retórico dos sofistas, depois a dialética de Sócrates e Platão e por fim a estrutura lógica revelada por Aristóteles. Essa seqüência histórica é idêntica à própria estrutura interna do sistema de Aristóteles, tal como acredito havê-la desvelado na “teoria dos quatro discursos”. Esse fenômeno de um sistema no qual se refaz e se perfaz conscientemente a evolução histórica é um grande milagre do espírito. Alguns místicos islâmicos consideram Aristóteles um profeta, e acho que têm razão.

5 – Como foi sua experiência recente na Romênia, suas conferências lá, seu contato com escritores e universidades da terra?

A Romênia é hoje a minha segunda pátria. Tenho tantos amigos lá quanto no Brasil, e nenhum inimigo exceto o frio. Também tenho ótimos amigos entre os romenos que vivem aqui, como Gheorghe Legmann, valente batalhador em prol das relações Brasil-Romênia. Os romenos são um povo cultíssimo, com a alma aprimorada pelo sofrimento. O número de sábios “per capita” lá é impressionante. É também um país lindíssimo, a maior reserva natural da Europa, com florestas cheias de ursos e lobos que nunca ouviram falar de crise ecológica nem do Ibama. Mas os países vizinhos não deram à Romênia a menor chance. Invadiram e roubaram a infeliz o quanto puderam, e lhe impuseram a camisa-de-força dos regimes totalitários, primeiro o nazismo, depois quarenta anos de comunismo. Hoje os romenos, espoliados pela Nova Ordem Mundial, são um povo cansado, esgotado, descrente, com dificuldade para enxergar suas próprias qualidades mais óbvias. No entanto, no meio da mais negra miséria, não perdem o gosto de estudar. São um exemplo para os brasileiros, que só admitem o estudo como meio de arranjar emprego ou de adornar conversações de salão. Os romenos adoram o Brasil (deram até o nome de Copacabana a uma praia no Mar Negro, e o hino da seleção romena de futebol é um samba), e a nossa presença lá faz bem a eles. Talvez ninguém tenha feito mais para melhorar a auto-imagem dos romenos do que o embaixador brasileiro, Jerônimo Moscardo, hoje um imbatível “pop star” em Bucareste. Acho que todo brasileiro deveria passar um tempo lá para ver o que é dignidade na miséria e para deixar de chorar de barriga cheia. Bucareste é a capital mais pobre da Europa – e a mais pacífica. Simplesmente não há assaltos à mão armada. Quando volto a este nosso país onde um frango assado custa dois dólares, fico perplexo ante a classe média tão gordinha e tão revoltada, que só reclama da vida e que justifica a violência em nome da “miséria”: queria que essa gente fosse ver os milhares de meninos de rua que em Bucareste têm de se esconder no esgoto durante o inverno, e que vêm nos pedir esmola em inglês, francês ou alemão, com um ar de inocência que dia a dia vai desaparecendo dos olhos das nossas crianças, corrompidas por falsos educadores.

6 – Como vê a obra de Emil Cioran no pensamento de nosso tempo?

Cioran não pode ser lido ao pé da letra, senão você estoura os miolos, coisa que ele próprio não fez, o que mostra que estava ciente da dose de ironia dos seus escritos (ele dizia que era um farsante e que as pessoas perceberiam isso se o compreendessem). Cioran assume a palavra em nome do demônio, acusador da humanidade, e nos desafia a assumir a responsabilidade da defesa. Jogando entre verdades patentes e exageros verossímeis, ele sempre nos deixa uma brecha salvadora, e é precisamente nesses hiatos, nessas falhas propositais da sua argumentação, que reside o mais inteligente da sua obra, na verdade mais pedagógica ou psicoterapêutica do que filosófica. Cioran pode induzir você ao desespero, à resignação estóica ou a uma retomada da fé e da esperança. Ele pode ser um veneno ou um remédio: você decide.

7 – Dá-se bem com o computador?

Maravilhosamente. Foi uma afinidade à primeira vista. Na verdade, acho que eu nunca teria publicado livros se não existisse computador: foi ele, e só ele, que me permitiu colocar em ordem escritos acumulados ao longo de vinte anos. E hoje a internet é meu principal meio de informação.

8 – Acha o exercício do jornalismo regular importante na sua obra?

Quando a gente escreve só para um círculo de alunos, como fiz por muito tempo, tende a criar um estilo compacto, cheio de abreviaturas e subentendidos, que no fim vira um negócio hermético, ou então a multiplicar as explicações com um didatismo minucioso que se prolonga demais. Voltar ao jornalismo regular foi uma disciplina muito saudável, que me obrigou a exercícios diários para conciliar aquilo que Horácio considerava inconciliável: brevidade e clareza. De outro lado, isso me deu a oportunidade de colocar em circulação idéias que vim “chocando” na solidão ao longo de vinte anos, e que me parece que podem ser úteis para o Brasil.

9 – Signo, preferências, família.

Signo: Touro com ascendente Aquário (como Karl Marx, droga!), Lua em Leão, Marte e Mercúrio em Áries, Júpiter culminante no Escorpião.

Preferências: Livro – A Bíblia e o Corão, as escrituras hindus no comentário de Shânkara, a Metafísica de Aristóteles, a Divina Comédia, Dostoiévsky inteiro, Walter Scott e Pío Baroja selecionados, poesias de Camões, Antonio Machado e William Butler Yeats. Comida – Churrasco. Bebida – Café. Hobby – Fumar em lugares proibidos. Bichos – Cães e cavalos. Roupa – A mais barata. Perfume – Água e sabão. Cigarros – Ducados,espanhol, e Romeo y Julieta, cubano, da mesma fábrica dos charutos (cigarros bons são o meu único luxo). Música – Canto gregoriano; Bach; Haendel; Wagner; velhas canções italianas e irlandesas; música caipira de qualquer parte do mundo. Sonho de consumo: um “Irish wolfhound”. Custa uma nota e come muito.

Família: a melhor coisa do mundo. Pena que os filhos sejam apenas oito.

10 – E o futuro? Qual é o lugar do Brasil no mundo?

Acho que o Brasil passa pelo momento mais difícil e mais decisivo da sua História. Temos o sonho de ser uma nação e temos o direito de sê-lo, mas, no momento em que estamos quase para realizar esse sonho, as nações já não estão na moda e o governo mundial avança a passos de gigante. Nosso desafio é provar que somos capazes de representar os ideais superiores da humanidade melhor do que o governo mundial. Mas, para isso, precisamos de três coisas: absorver rapidamente o legado espiritual de todas as civilizações, aprender a esquivar-nos das alternativas ideológicas estereotipadas com que a estratégia mundialista nos divide, e superar um falso nacionalismo nativista, complexado e debilitante, que é hoje facilmente manipulável pelas esquerdas vendidas à Nova Ordem Mundial. Temos de criar um novo nacionalismo, capaz de competir no mercado mundial. Costumo chamá-lo de nacional-liberalismo, com a ressalva de que não é um sistema ideológico mas apenas um arranjo de ocasião, uma solução brasileira de improviso.

O maior obstáculo são os intelectuais, fortemente apegados a esquemas ideológicos absurdos, a ressentimentos antimilitares que são muito bem aproveitados (e bem pagos) pela estratégia mundialista para nos debilitar, e a ódios pessoais racionalmente inexplicáveis, como essa birra contra o Roberto Campos, um homem que, no campo das ações e não do blá-blá-blá, fez mais pelo Brasil do que toda a esquerda reunida. Para dobrar essa gente, só mesmo a paciência do Antônio Olinto.

Um acerto de contas com a astrologia

Entrevista de Olavo de Carvalho a Roberta Tórtora

Porto do Céu, Recife, junho de 2000

Como a Astrologia contribuiu para a sua formação?

Muito. Não existe possibilidade alguma de entendimento de qualquer civilização antiga sem o conhecimento da Astrologia. O modelo de visão do mundo baseado nos ciclos planetários e nas esferas esteve em vigor durante milênios e isto continua a estar, de certo modo, no “inconsciente” das pessoas. Apesar de algumas deficiências no modelo astrológico, foi ele quem estruturou a humanidade pelo menos a partir do império egípcio-babilônico, o que significa, no mínimo, cinco mil anos de história. A Astrologia é um elemento obrigatório, por isto quem não a estudou, não estudou nada, é um analfabeto, um estúpido. O trabalho mais vigoroso nas ciências humanas do século XX, por exemplo, só aconteceu depois da existência do Instituto Warburg, fundado em Londres por um milionário judeu fugido da Alemanha, que juntou, durante 20 anos, as melhores cabeças do século em torno de uma coleção de manuscritos astrológicos e alquímicos. Sem este estudo, a comunidade acadêmica nunca teria qualquer possibilidade de compreensão real das civilizações antigas.

Quais as conseqüências da perda deste conhecimento em nosso tempo?

A conseqüência é simplesmente não entender mais o passado. Se alguém não entende as civilizações antigas, não sabe mais onde está. É uma amnésia.

Como foi que o Sr. entrou em contato com a Astrologia?

Foi uma casualidade. O Dr. Müller contratou-me na época em que eu trabalhava no Jornal da Tarde para redigir um curso de psicologia baseado em astrologia, já que era argentino e não dominava muito bem o português. Depois destas aulas, um mundo sem limites se abriu para mim.

Qual é a sua relação com a Astrologia hoje?

O meu acerto de contas com a astrologia foi o curso “Astrocaracterologia”, uma espécie de conclusão que tirei dos meus vinte anos de estudo e que fechou a minha contribuição para o assunto. Eu equacionei a Astrocaracterologia de tal modo que, para avançar de onde parei, só mesmo a pesquisa experimental. Para se formar uma ciência, é preciso levantar uma série de conceitos; destes conceitos, tirar hipóteses; das hipóteses, um método e dos métodos, as pesquisas. A parte teórica eu pude concluir, mas daí para frente, a Astrocaracterologia deixou de ser problema teórico para ser de investigação científica. Eu não tenho condições de dar continuidade a estas pesquisas porque precisaria de tempo, gente e dinheiro. Voltar a mexer neste assunto só me deixaria desesperado, porque eu não poderia realizar as investigações necessárias para responder as questões que levantei.

É possível resgatar a Astrologia tradicional nos dias de hoje?

Não sei. Isto é um tremendo abacaxi. Primeiro: não existe uma só astrologia tradicional, mas milhares. Quando falamos “tradicional”, estamos nos reportando a certas épocas, onde esta Astrologia estava integrada completamente nas civilizações. Se a pergunta é “nas condições da nossa sociedade, é possível produzir uma astrologia tradicional?”, a resposta é “não“. Precisamos retomar o estudo astrológico de um outro plano, para estruturar uma ciência. Só que não fizemos nem uma coisa nem a outra. Os astrólogos não fizeram porque têm preguiça e os outros, porque têm preconceito. Só quem se interessou realmente pela Astrologia foram historiadores e filólogos, cuja função não é desenvolver a Astrologia, mas estudar o que ela foi e qual o lugar dela nas civilizações antigas. Estes fizeram a sua parte e levaram a coisa a sério.

O trabalho dos astrólogos, então, seria pesquisar junto aos textos antigos e desenvolver a astrologia enquanto ciência, já que é impossível o resgate da astrologia tradicional?

Eu não diria que esta é a única possibilidade. Você não imagina como esta sua pergunta é difícil. A resposta é: não sei (risos). Não sei.

O Sr. afirma no seu livro “Astros e Símbolos” que não é possível a compreensão da Astrologia sem a prática de um esoterismo vivente, só alcançado através de um compromisso com um exoterismo ortodoxo. É neste sentido que é impossível a compreensão desta e de outras ciências tradicionais em nosso tempo?

A própria descrição de esoterismo e exoterismo, que levei a sério por muito tempo, eu não aceito mais. Ela não é suficiente, é muito pobre, apesar de poder ser válida. Esoterismo e exoterismo são conceitos que só se aplicam tal e qual no conceito islâmico, onde existe uma fronteira, uma lei exotérica clara que funciona para todo mundo, e organizações esotéricas, que são para os que estão interessados. Esta fronteira, tão clara no mundo islâmico, não existe no mundo cristão e em outras tradições. Como é que podemos falar em esoterismo e exoterismo no contexto budista, por exemplo? Na obra de René Guenon, ele aplica este conceito a todas as tradições, mas isto é uma espécie de “islamização” das religiões e o próprio Guenon estava consciente disso.

A Astrologia, então, pode ser resgatada num contexto cultural, mas não a astrologia tradicional?

A Astrologia esteve integrada de algum modo às tradições, mas hoje em dia não temos mais tradição espiritual nenhuma. Temos, sim, uma devastação. Como é que podemos recuperar somente a Astrologia, se ela é apenas um pedaço do equipamento? Só podemos no sentido de estudo histórico, de compreensão do passado ou então sob uma forma de ciência, do modo como as ciências hoje são compreendidas.

Esta visão que o Sr. tem hoje é diferente da apresentada nos seus livros sobre Astrologia.

Os três livros que escrevi sobre Astrologia foram redigidos para um grupo de pessoas que estavam metidas até a goela no esoterismo islâmico. Para entender-se o que está escrito, é preciso saber para quem foi escrito. Nada do que está ali pode ser transposto para um público geral sem que sejam feitas as devidas conversões. Se eu fosse reeditar estes livros, no lugar de uma página, teria que escrever trinta. Com estas perguntas, você não tem idéia da complicação que me arrumou (risos). A maior parte das coisas que está me perguntando, eu terei que responder “não sei”. São talvez as questões mais espinhosas da nossa civilização e, no entanto, tem gente que dá palpites sobre elas a torto e a direito.

Esta perda das tradições espirituais tem alguma coisa a ver com a era de Aquário?

A era de Aquário é exatamente isto, a era da farsa, e já estamos nela. O Anticristo já está aí. Hoje, através dos meios de comunicação, é possível que dez pessoas mintam simultaneamente para bilhões e a farsa fica estabelecida.

Existe alguma espécie de compensação para os homens que estão vivendo na nossa época?

Sim. As pessoas são julgadas com menos severidade. Deus, nesta época, suporta coisas que em outros tempos não suportaria. Nós estamos conversando sobre coisas aqui que, no passado, demoraríamos uns vinte anos para compreender, só depois de rezar muito. Hoje não precisamos passar por diversas práticas ou rituais de iniciação para compreendermos uma série de coisas. Esta é uma espécie de compensação natural ou sobrenatural, da mesma forma que o julgamento de Deus sobre as almas torna-se muito mais brando. Se você está no meio da confusão geral e ainda está tentando descobrir o que é o certo, no meio de pessoas que não sabem mais distinguir o bem do mal, então você já fez muito.

O Sr. não utiliza os planetas Urano, Netuno e Plutão em suas análises astrológicas. Acha impossível estabelecer um simbolismo correto para estes planetas?

Não sei. Deixei este assunto de lado, porque achei que ele era mais um abacaxi. Se há alguém que não pode opinar sobre o assunto, este alguém sou eu. Não atendo para leitura de mapas há uns vinte anos, mas foi exatamente depois que deixei de trabalhar profissionalmente que comecei a estudar mesmo a astrologia. Se você está em dúvida a respeito de tudo e mexendo nos pilares de uma ciência, não tem como trabalhar com ela no campo da prática diária. Não dá para desmontar um carro e andar nele ao mesmo tempo. O questionamento teórico da Astrologia é muito profundo. Não utilizei Urano, Netuno e Plutão porque percebi que isto me colocava perguntas muito mais complicadas do que aquelas com que eu estava lidando, utilizando apenas os sete planetinhas.

O que o Sr. pensa das interpretações atribuídas a estes planetas descobertos nos últimos séculos?

Urano, por exemplo, recebe uma interpretação já muito ligada ao próprio espírito moderno. Certas organizações esotéricas agem, ritualmente, no sentido da interpretação que elas próprias atribuíram ao planeta. Os ciclos destes astros começam a trabalhar mais neste sentido, porque são reforçados pela ação humana. Eu não acredito, realmente, que um planeta possa trazer a ideologia da revolução francesa. Agora, quando se quer realizar uma grande mudança no mundo, saber da existência de um novo planeta pode ser maravilhoso, já que possibilita a realização de toda uma reinterpretação da história, com base nos significados que você mesmo quis atribuir a ele. Acontece a mesma coisa com Netuno e Plutão, mas isto não quer dizer que estas interpretações não funcionem, porque parcialmente estes efeitos podem corresponder ao dos planetas, embora sejam apenas uma parte destacada do significado total daquele astro. Até o sétimo planeta, os astrólogos contavam com uma interpretação estável entre várias civilizações e não dá para justificar estas interpretações apenas como produto ideológico de tais civilizações. Mas nestes últimos, você tem interpretações específicas da astrologia ocidental, feita quase que totalmente por sociedades secretas. Essas interpretações não tem universalidade, apesar de poderem ser parcialmente válidas. Acho que somente lá perto do século XXV que será possível entender este problema. A gente pode perguntar tudo, mas não ter todas as respostas de uma vez.

A astrologia está, então, numa encruzilhada?

Sim, ela está em uma confusão miserável. Nunca um século foi tão difícil de ser entendido contemporaneamente como este. Nós estamos vivendo numa era verdadeiramente terrível. O número de coisas que dá para saber e utilizar como orientação é muito pequeno. A humanidade sempre soube mais ou menos o que estava acontecendo, as decisões de reis e príncipes não eram mistérios inimagináveis. Hoje são. As pessoas poderosas estão distantes, cercadas por muros e muros de segredos e mentiras. Os instrumentos de ocultação são monstruosos. Mais do que na era da informação, estamos na da ocultação.

Diante de todas estas confusões incorporadas à Astrologia nos dias de hoje, ainda vale a pena falar sobre o assunto?

Se é para as pessoas entenderem o que está acontecendo, é claro que vale a pena. As discussões públicas sobre isto são muito problemáticas, e é preciso ter paciência para explicar tudo, o que numa entrevista é impossível. Vale mais é ensinar para aqueles que estão dispostos a estudar ao longo dos anos.

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