Textos

Educação e consciência

Entrevista de Olavo de Carvalho a Luís Mauro Martino

Educação, julho de 1999

“O autor deste livro é um sujeito cheio de: a) ressentimento e inveja; b) incompreensão dos caracteres da cultura brasileira; c) maquiavelismo autopromocional”. Esse questionário, ao estilo do imposto de renda, abre O Imbecil Coletivo, obra mais famosa do filósofo Olavo de Carvalho.

A brincadeira é uma resposta às inúmeras críticas recebidas pelo livro. Não é para menos: nos dois volumes de O Imbecil, Olavo de Carvalho ataca com veemência as “atualidades inculturais brasileiras.” Inclui-se sob essa denominação a “elite intelectual, arrebatada por modas e paixões que a impedem de enxergar as coisas mais óbvias.”

Coordenador do Seminário de Filosofia da Faculdade da Cidade, no Rio de Janeiro, o filósofo conseguiu um êxito raro no mercado editorial: seu Imbecil Coletivo, apenas três anos após o lançamento, já está em sua sexta edição.

A educação não escapa de suas cogitações. Não poupa críticas a Paulo Freire, às análises marxistas da educação e à “educação jornalística”. Mas também propõe mudanças na escola. O interesse dos alunos, e não o programa, determina o que será estudado. Além disso, estudos empíricos da realidade teriam lugar ao lado do estímulo à imaginação.

Educação – Em O Imbecil Coletivo, o senhor fala da “educação jornalística” em oposição à educação humanística.” Poderia precisar melhor a questão?

Olavo de Carvalho – “Educação jornalística” consiste, sumariamente, em selecionar os temas e autores segundo o destaque momentâneo que recebem na mídia. Você sabe quem era o autor mais lido e estudado nas nossas escolas secundárias por volta de 1910? Um tal de Pelino Guedes, que o tempo sepultou irremediavelmente, como amanhã sepultará Zuenir Ventura, Frei Betto, Leonardo Boff e todas essas nulidades esplêndidas que, por mero espírito de patota política solidária, o lobby da mediocridade esquerdista impinge aos nossos meninos de escola. Lendo Lima Barreto, nos escandalizamos com o fato de que nossos bisavós pudessem ter dado mais atenção a Pelino Guedes do que a ele. E a atual geração de professores, que prefere Zuenir Ventura a Alberto da Cunha Melo, Caetano Veloso a Bruno Tolentino, será objeto de riso dos nossos bisnetos.

Em contraste com essa educação interesseira e imediatista, o conceito de educação humanística pressupõe um recuo ante a moda presente, um esforço para ver a atualidade na escala de um tempo muito mais longo, em que as ninharias do dia desaparecem sem deixar vestígios.

Educação – Quais possibilidades educativas o senhor vê na televisão?

Carvalho – A televisão, como o cinema, só pode ajudar a educação num sentido auxiliar, secundando o ensinamento verbal naqueles campos onde a documentação por imagens seja imprescindível como elemento de prova das afirmações. Mas a tendência hoje é fazer das imagens a parte ativa do ensino, reduzindo a palavra a um comentário auxiliar — e, quando se faz isso, o resultado é o emburrecimento líquido e certo, independentemente de qual seja a matéria ensinada e da qualidade das imagens que a transmitem. Pensar por imagens é para gatos e orangotangos. A imagem estimula a fantasia e produz um sentimento de simpatia ou antipatia, sem passar pela reflexão consciente. A “civilização da imagem” é a civilização da credulidade sonsa.

Estudantes viciados em aprender por imagens perdem toda capacidade e até mesmo todo desejo de compreender: tudo o que querem é obter da maneira mais rápida e impensada um sentimento de concordância com a idéia que lhes é apresentada — e, quando não conseguem sentir essa concordância, produzem a esmo objeções irracionais, que nas suas cabecinhas de melão fazem as vezes de “pensamento crítico”. O trabalho dos professores, hoje, consiste apenas em direcionar os sentimentos de hostilidade irracional do aluno contra alvos políticos pré-selecionados.

Educação – Existiria uma função pedagógica da mídia?

Carvalho – Qualquer meio de transmissão de idéias pode ter uma função pedagógica, se aqueles que o dominam assim decidirem. Mas tudo depende do que esses senhores compreendem por pedagogia. Para propagandistas baratos como Leandro Konder, Marilena Chauí ou Emir Sader, pedagogia consiste em suscitar hostilidade contra seus desafetos políticos do momento. Nunca um desses senhores escreveu na imprensa uma linha que não gotejasse ódio político e um grotesco moralismo maniqueísta. Na cabeça deles, se é que têm alguma, isso é pedagogia.

Quando me refiro aos “senhores da mídia”, não me refiro aos donos das empresas. Estes são apenas uns covardões e omissos que se deixaram seqüestrar pelos comitês políticos a que entregaram suas empresas. O nome Roberto Marinho, hoje, só serve para disfarçar sob uma fachada direitista o poder do lobby esquerdista que domina tiranicamente a Rede Globo.

Educação – Como o senhor considera o uso dos meios de comunicação como material pedagógico?

Carvalho – Os jornais devem ser lidos e analisados em sala de aula, sobretudo para mostrar o quanto mentem. Mas aí há um reparo a fazer: quase todos os instrumentos de análise ideológica foram criados por intelectuais esquerdistas e só servem para desmascarar a ideologia capitalista, nunca para evidenciar a manipulação esquerdista da opinião pública. Nesse sentido, o alegado desmascaramento ideológico transforma-se em mascaramento. Ademais, o desenvolvimento da consciência crítica não deve ser prematuro, não deve começar na infância ou na pré-adolescência, quando tudo tem um efeito emocional muito profundo. Nessa fase, o esforço de despertar o espírito crítico só consegue produzir a sua caricatura emotiva, que é o ódio passional e a suspeita irracional contra tudo e contra todos.

Isso seca a alma, produz neuroses sem fim e não tem proveito educativo nenhum. Muitos pretensos educadores, hoje, dedicam-se a produzir isso e nada mais, e se acham grandes benfeitores da humanidade quando conseguem envenenar a alma de um adolescente contra os pais, contra a História, contra tudo, exceto, é claro, contra eles mesmos — os manipuladores bem protegidos atrás de um muro de malícia.

Educação – Em seu livro, o senhor aponta que a crença em Deus parece excluída dos círculos intelectuais. Como situar a questão das aulas de religião nas escolas?

Carvalho – Todo estudo de religião nas escolas torna-se apenas um discurso sobre as religiões enquanto fenômenos sociais e históricos. Pessoas educadas nessa base acabam automaticamente dando por pressuposto que a moderna ciência social e histórica tem uma perspectiva “superior” à das antigas religiões, uma perspectiva capaz de abrangê-las e explicá-las — a superioridade, enfim, da consciência real sobre a fantasia subjetiva. Mas essa idéia é que é fantasista, já que a ciência social e histórica das religiões ainda é feita sobre hipóteses e conjecturas e profundamente contaminada de preconceitos ideológicos.

Só para lhe dar um exemplo, a psicologia ascética, que é uma disciplina prática desenvolvida pelas religiões antigas, é um saber rigoroso, fundado em séculos de observação. É ridículo supor que uma cienciazinha improvisada, que se imagina muito séria só por ser materialista, possa abranger e explicar a velha psicologia ascética.

Educação – Gramsci e Althusser criaram uma tradição, muito difundida, sobre a atuação da escola como um “aparelho ideológico” do Estado. Como o senhor considera essa questão?

Carvalho – No regime capitalista a escola só parcialmente está integrada no aparelho ideológico do Estado. A simples existência de escolas particulares assegura o pluralismo, a variedade, a liberdade. Só de maneira muito remota, problemática e, às vezes, invertida e contestatória a escola reflete, assim, a ideologia dominante. Mas, certamente, uma parte das escolas desempenha esse papel, sobretudo a rede de ensino público. Ora, que fazem, diante disso, os ideólogos tipo Freytag? Assumem que essa parte é o todo, fingindo ignorar que a escola particular é justamente o inverso de um aparelho ideológico estatal e, pregando a estatização de todas as escolas, aí sim transformam todo o sistema educacional num aparelho ideológico de doutrinação e propaganda. Ou seja: acusam os outros de fazer precisamente aquilo que eles próprios pretendem fazer. O mínimo que posso dizer desse tipo de teorização é que é vigarice.

Educação – A educação brasileira parece orientar-se segundo paradigmas contraditórios: o utilitarismo convive com a preocupação em criar novos paradigmas que contradigam o primeiro. Como o senhor analisa isso?

Carvalho – Sua colocação é perfeita: as duas ideologias em disputa procuram apenas utilizar, manipular as crianças, para torná-las instrumentos da economia e da política. Uns falam em nome da “eficácia”, outros da “mudança”. Ninguém está interessado nas crianças.

Educação – Nesse aspecto, qual a importância de Paulo Freire no cenário intelectual brasileiro?

Carvalho – Paulo Freire é um sujeito oco, o tipo acabado do pseudo-intelectual militante. Sua fama baseia-se inteiramente no lucro político que os comunistas obtêm do seu método. Esse método, aliás, não passa de uma coleção de truques para reduzir a educação à doutrinação sectária. Um dia teremos vergonha de ter dado atenção a essa porcaria.

Educação – Kant, Schopenhauer e Rousseau consideravam a leitura de romances, durante a infância e adolescência, prejudicial ao estudante. O que o senhor acha disso?

Carvalho – Penso exatamente o contrário. É bobagem querer ensinar a “realidade” a meninos que ainda não têm a mínima condição de discerni-la da fantasia. É muito mais importante estimular a imaginação, abrir o horizonte do possível, despertar aspirações. E isso a arte e a ficção fazem de maneira exemplar. Leibniz dizia que o menino que visse mais figuras, mesmo que fossem de coisas imaginárias e falsas, acabaria por se tornar o mais inteligente. A amargura, a irritação, o ceticismo doentio e a revolta da juventude são, muitas vezes, o resultado de um empobrecimento prematuro da imaginação, forçado por uma educação que, entre um garoto saudável e um neurótico pedante, prefere este último.

Educação – Quais modificações o senhor faria no modelo educacional?

Carvalho – Se eu fosse organizar um programa de ensino, privilegiaria as artes e a atividade física no ensino inicial, depois iria gradualmente introduzindo elementos de História dramatizados e o estudo das ciências no ambiente da natureza, estimulando ao mesmo tempo o espírito de aventura, a coragem, a iniciativa pessoal e os sentimentos mais elevados. O ensino da língua seria todo feito pela leitura e imitação dos clássicos. Só muito tardiamente se entraria na reflexão gramatical. É claro que essa graduação não seria rígida, mas se adaptaria aos talentos e demandas de cada aluno — pois o que melhor se aprende é aquilo que se quer aprender. As perguntas e o interesse espontâneo dos alunos devem ser uma indicação preciosa para o professor. Os autores de “programas de ensino” uniformes e padronizados são, para mim, encarnações do Dr. Simão Bacamarte — o psiquiatra doido d’ O Alienista.

Educação – Matthew Liepmann debate-se a favor do ensino da filosofia desde o primeiro grau. senhor concorda?

Carvalho – A filosofia é a reflexão crítica sobre o conhecimento e a cosmovisão. Ela pressupõe conhecimentos extensos, experiência da vida e um certo patrimônio de opiniões formadas que possam se tornar objeto de discussão. Sem isso, a discussão filosófica não tem matéria-prima e se torna puro confronto retórico vazio. Logo, não é atividade para crianças. O ensino da filosofia na escola secundária logo degenera em pura troca de opiniões, quando não em doutrinação ideológica rasteira.

Diana Nedelcu entrevista Olavo de Carvalho

Rádio Nacional, Bucareste, 12 de novembro de 1998

1. Quem é você, que teve a coragem de ter um pensamento tão livre neste fim de século?

Quando era jovem eu queria me tornar escritor, já possuía um domínio sólido de minha língua natal e todos me diziam que eu escrevia muito bem, mas eu me dei conta de que não tinha absolutamente nada a escrever, de que eu estava vazio de todo conteúdo que valesse a pena escrever. Assim, deixei de lado meu plano de me tornar escritor e concebi um novo plano de vida, que era o de me tornar um homem que soubesse verdadeiramente alguma coisa, mesmo não escrevendo nada. Desde então, tenho feito grandes esforços de atenção para extrair conclusões válidas daquilo que a vida me trazia e também daquilo que eu lia. Pus-me a distinguir minuciosamente, na massa de meus pensamentos e conhecimentos adquiridos, entre aqueles que eram certos e verdadeiros, aqueles que eram ao menos razoáveis e prováveis, aqueles que não eram mais que opiniões verossímeis e aqueles que eram puras fantasias da minha imaginação. Abdiquei de toda pretensão de ter uma carreira de homem de letras, para me devotar somente àquilo que se pode chamar a pesquisa da verdade para meu uso pessoal. Foi assim que me tornei filósofo. E foi assim que o mundo foi poupado de ler os execráveis livros de juventude que eu jamais escrevi.

Até os 35 anos, eu não falava de assuntos filosóficos com ninguém a não ser comigo mesmo; vivia numa solidão intelectual quase completa. Então, comecei a dar conferências para um pequeno grupo de estudantes. Eu também escrevia, mas apenas resumos para os meus alunos, e teria continuado de bom grado a fazer o mesmo a vida inteira se as circunstâncias não me tivessem tirado de minha solidão para fazer de mim uma espécie de inspetor da saúde mental dos intelectuais brasileiros. Estou feliz por ter abandonado a modéstia da vida solitária unicamente para fazer algo de útil e objetivo, sem concessões às minhas vaidades de juventude, as quais já estavam mortas.

Publiquei o meu primeiro livro apenas aos 47 anos, a pedido de meu amigo, o poeta Bruno Tolentino, e desde então não parei de publicar livros e artigos, mas tenho ainda mais de dez mil páginas de notas de aula, que talvez venham algum dia a se transformar em livros.

Eu não diria que a liberdade de pensamento é uma questão de coragem. Trata-se unicamente de ver as coisas como elas são, e para tal é preciso tempo, paciência e modéstia. Creio que uma carreira profissional de escritor ou professor universitário pode muito bem desviar um homem da pesquisa da verdade e, como eu sempre soube que era fraco como todos os outros homens, tratei de me colocar fora do alcance dessas tentações.

Se posso dizer as coisas tais como eu as vejo, sem fazer concessões à moda ou à pressão de grupos de opinião, é precisamente porque socialmente e profissionalmente não sou absolutamente nada. Sou apenas um homenzinho que não exige de forma alguma ser levado a sério pelas pessoas que se imaginam sérias.

2. Por que você escolheu o caminho do comunismo, quando era jovem?

Eu não escolhi nada. O comunismo tinha na ocasião o prestígio de uma verdade estabelecida; bastava ser comunista para ter o prestígio de um homem de idéias. Mas eu me dei conta de que o comunismo não era para mim, como para todos os outros, nada mais que o disfarce da minha ignorância, da minha mediocridade, da minha assustadora preguiça intelectual. Foi por causa disso que eu renunciei a fazer-me um jovem escritor: eu não tinha nada a dizer além do que já havia sido escrito mil vezes por outros escritores comunistas, jovens e velhos. O que é uma pena é que muitos de meus companheiros de geração tenham continuado a escrever as mesmas coisas durante três décadas e hoje eles não possam admitir que alguém tenha abandonado as suas mesmices para se lançar à pesquisa de algo mais interessante. Eles tomam isso como um insulto à dignidade da sua filiação ideológica.

Ademais, é falso pensar que as pessoas se tornam comunistas porque têm sede de justiça. Aquele que tem sede de justiça procura, em primeiro lugar, se abster de cometer injustiças ele mesmo e nunca se toma por um justiceiro supremo que vai punir todos os maus, porque isso não é senão uma vaidade pomposa e, em suma, a pior das injustiças. Os jovens somente se tornam comunistas por vaidade e por preguiça. A diferença entre mim e meus companheiros de geração é que eles tiveram mais sucesso do que eu em enganar-se quanto aos motivos íntimos de sua conduta. Eu não pude me impedir de ver a mim mesmo tal qual eu era: nada mais que um pequeno farsante comunista, que queria se descarregar de sua responsabilidade pessoal sobre as costas de bodes expiatórios abstratos — o capitalismo, os burgueses, etc. Quando eu me dei conta disso, compreendi o que Nietzsche queria dizer quando afirmava que “a vergonha é a mãe do aprendizado”. Os jovens esquerdistas de outrora que se tornaram apenas os velhos esquerdistas de hoje nunca tiveram consciência da miséria moral de suas motivações, auto-proclamadas idealistas e humanitárias.

3. Os brasileiros são tão superficiais quanto aparenta ser a sua imagem estereotipada?

Sim, a superficialidade, a leviandade são os pecados capitais dos brasileiros. Mas eu acho que isso só é verdadeiramente grave nos círculos intelectuais, porque entre o povo uma certa falta de seriedade foi o preço a pagar para construir uma sociedade como a nossa, onde as pessoas de todas as raças e de todas as culturas podem se entender e se amar umas às outras. Veja: os Estados Unidos são também uma sociedade multicultural, mas lá os grupos diversos trilham caminhos separados, cada qual no seu gueto, e dialogam somente ao nível político, por intermédio de seus representantes e sob a proteção da polícia. Enquanto que no Brasil, os negros, os árabes, os portugueses, os italianos, os alemães, os judeus sempre viveram juntos dentro dos mesmos bairros e são todos misturados ao nível da vida social, da amizade, do casamento, etc., sem que o Estado tenha jamais feito o menor esforço para ensinar-lhes essas coisas. No Brasil nunca houve combates de rua entre grupos raciais diferentes (exceto alguns conflitos menores durante a guerra, quando as pessoas de ascendência italiana e alemã eram um pouco perseguidas, mas mesmo isso terminou por completo da noite para o dia assim que a paz foi assinada). Para um homem viver em paz com pessoas muito diferentes é preciso que ele não se leve muito a sério, e os brasileiros se habituaram a pensar que as crenças políticas ou mesmo religiosas têm menos importância, na prática, do que a paz e o amor. Os brasileiros também são cristãos pragmáticos: eles acreditam que ter razão vale menos do que fazer um amigo.

É por isso que os brasileiros são o que são: um povo maravilhoso, fraternal, generoso, mas estranhamente desprovido de convicções sólidas e profundas. Mas se naquilo que diz respeito às pessoas do povo isso não é grave, nos intelectuais a falta de solidez se torna um perigo e uma doença assustadora, porque os intelectuais têm responsabilidades incomparavelmente mais pesadas. É por isso que eu vejo os brasileiros como um povo maravilhoso que produz os intelectuais mais abomináveis do universo.

4. Qual é o seu ponto de vista sobre a cultura norte-americana e européia de hoje?

Aquele que perde o senso do absoluto perde da mesma forma o senso das relatividades. Uma cultura que rompeu seus laços com o senso de infinitude metafísica está condenada a dar uma importância absoluta a imbecilidades que não têm nem mesmo importância relativa. A cultura européia e norte-americana de hoje me parece totalmente obcecada por questões menores da atualidade política e social. Veja: são sempre essas recriminações mútuas de grupos raciais, essas briguinhas de família, essas frustrações sexuais que exigem ser tratadas pela lei e pelo Estado — tudo isso é para mim o cúmulo da mesquinharia. O pior é que recursos extraordinários são postos a serviço de debates totalmente desprovidos de importância e dos quais ninguém vai se lembrar dentro de três ou quatro décadas. Em tais circunstâncias, o automatismo e o verbalismo tendem a se substituir à consciência.

Entrevista de Olavo de Carvalho ao Embaixador Caius Traian Dragomir

Caius Traian Dragomir, médico psiquiatra e escritor, foi embaixador da Romênia em Paris, é o presidente do Partido Liberal romeno e foi candidato à Presidência da República nas últimas eleições. Atualmente dirige a mais importante revista cultural romena, Viatsa Romaneasca, que publicou esta entrevista em novembro de 1998.

 

— Fale-nos sobre a sua formação, sobre as influências dominantes que moldaram o seu espírito.

Desde muito cedo, notei que o chamado “progresso do conhecimento” consiste quase exclusivamente em acumular registros – livros, teses acadêmicas, discos, fotografias, dados computadorizados -, que vão constituindo, ao lado ou em cima do mundo físico onde vivemos, uma segunda camada, um segundo mundo tão complicado quanto o primeiro e às vezes mais ininteligível do que ele. A “cultura” deixa de ser um patrimônio espiritual, um bem interior possuído pelos homens, e passa a constituir-se de objetos, de coisas, tanto quanto o é o mundo físico. Considera-se que um país é culto não porque tem muitos homens verdadeiramente sábios, mas porque tem muitas universidades, muitos institutos científicos, muitos museus, muitas galerias de arte, enfim: muitos depósitos de registros materiais. A cultura perde assim sua força explicativa e iluminante e se torna um amontoado opaco, necessitado, por sua vez, de explicação.

Muito jovem, decidi que meu caminho não seria o de participar dessa produção industrial de registros, mas de contribuir, de alguma maneira, para a inteligibilidade do conjunto, resgatar o sentido da cultura como atividade interior e não como produção material.

Esse foi o motivo de eu ter-me dedicado ao ensino direto, face a face com o aluno, e só ter estreado em livro aos 47 de idade – uma das estréias mais tardias das letras brasileiras. O preço desta opção é que a maior parte de minha obra ainda circula apenas sob a forma de apostilas e gravações de aula.

Mas, antes de me dedicar ao ensino, tive de me ensinar a mim mesmo. A questão que isso me colocava era a de como adquirir conhecimento na maior quantidade possível sem perder o elo entre conhecimento e consciência. Dito de outro modo: nunca permiti que entrasse na minha mente um conhecimento que fosse “meramente” funcional ou pragmático: tudo o que entrava tinha de ser pensado, analisado, avaliado, comparado com os conhecimentos anteriormente adquiridos, enfim personalizado. Inspirou-me nisso a frase de Piaget: “Quando o coelho come alface, não é o coelho que se torna alface, mas a alface que se torna coelho.” Parecia-me que, no ensino universitário, se fazia precisamente o contrário: as pessoas amoldavam-se facilmente ao linguajar, aos conceitos e ao modus ratiocinandi das disciplinas que aprendiam, mas não adaptavam esses conhecimentos ao seu próprio ser pessoal, de modo que eles formavam em volta das suas almas uma casca estranha, jamais assimilada, a cuja forma a sua consciência tinha de se amoldar, comprimindo-se e mutilando-se. Era como o aprendizado de um papel social no qual não acreditamos e que nem levamos a sério; que apenas usamos como um instrumento nas horas de trabalho, abandonando-o na soleira da porta quando retornamos para casa onde podemos voltar a ser nós mesmos. Era, com toda a extensão do termo, uma ciência sem consciência.

Isso acontecia mesmo no ensino de filosofia. O aluno amoldava-se ao linguajar e aos cacoetes mentais da filosofia ensinada, e tão logo conseguia falar como os professores, pensar como os professores, sentia-se realizado e seguro como um menino que, ao conseguir imitar os adultos mesmo sem compreendê-los, se sente adulto.

É evidente que esse vício não afeta só o ensino, mas o próprio modo de fazer ciência e de produzir cultura: produz-se uma ciência que é, no fim, inconsciente dos fundamentos da sua própria ininteligibilidade. Ora, uma ciência sem consciência logo se torna uma ciência sem outro valor científico que não o meramente convencional.

Desde cedo senti que esse tipo de ciência, esse tipo de cultura, seria o meu inimigo jurado, e decidi não descansar enquanto não o ferisse de morte, pelo menos na escala da cultura nacional brasileira. Vi nele o inimigo por excelência da consciência humana e a raiz de todas as tragédias do século XX: comunismo, racismo, nazismo, alienação, etc.

Toda a educação nacional estando comprometida com uma concepção da cultura coisificante e alienante, a questão de minha própria educação teve de ser resolvida por mim mesmo, por meios que eu próprio inventei.

Logo compreendi que a questão da inteligência, da consciência e da natureza do conhecimento seria para mim, ao mesmo tempo, um problema teórico e prático, isto é, que eu teria de investigar a natureza do conhecimento no próprio processo de ir adquirindo conhecimento. A teoria do conhecimento nada valeria se não fosse, ao mesmo tempo, uma ética e uma pedagogia, ou melhor, uma psicagogia ou guiamento da alma. Conhecer e aprofundar a natureza da inteligência era uma só e a mesma coisa que tornar-se inteligente, assumir as responsabilidades da inteligência, colocar a inteligência no centro e no comando da personalidade.

Isso ligava-se de perto a uma segunda questão: a inteligência é por natureza sistêmica, unificante, orgânica. Ela repele o inorgânico, o disperso, o fragmentário, que é morto. Logo, era preciso buscar a unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice-versa. Isto colocava enfim a questão do conhecimento como sistema orgânico, ou da unidade do conhecimento. Quando digo que essa unidade deve ser de tipo sistêmico – e não apenas “sistemático” -, subentendo que não pode tomar a forma de um sistema dedutivo, como no racionalismo clássico, mas sim a de uma unidade vivente que se identifica, em última análise, com a unidade de um ente vivo e consciente: o indivíduo humano real, unidade psicofísica e espiritual, é o padrão da unidade do conhecimento. O homem, o indivíduo humano, é o portador do conhecimento efetivo. O conhecimento enquanto bem social é apenas conhecimento potencial, é coleção de registros e convenções que, para tornar-se conhecimento efetivo, deve ser efetivado, atualizado na consciência do indivíduo vivente.

Mais ainda, só no plano do indivíduo autoconsciente é que o conhecimento pode adquirir validade: só na consciência individual vivente se realiza a prova apodíctica, só o indivíduo tem acesso efetivo às verdades universais, enquanto a coletividade deve se contentar com fórmulas mais ou menos convencionais — ou consensuais — de uma verdade meramente potencial.

Essa foi a inspiração originária de todo o meu esforço filosófico. É claro que, partindo dessa base, fui descobrindo, nos livros e nas aulas, muitos desenvolvimentos possíveis. Até agora, só publiquei uma parte ínfima de minhas notas de aula, sobretudo em Aristóteles em Nova Perspectiva e em O Jardim das Aflições; a maior parte de meus livros publicados trata apenas de crítica cultural, com uma filosofia subentendida mas não muito explicitada.

— Fale das influências recebidas.

Em filosofia, as influências determinantes que recebi foram a de Husserl (principalmente o de Lógica Formal e Lógica Transcendental e o da Crise das Ciências Européias), e a de Aristóteles. Do primeiro, recebi a noção da lógica pura como teoria da ciência; do segundo, a noção da organicidade do sistema das ciências, que depois submeti a uma reinterpretação ainda mais radicalmente organicista e até “holista” no livro Aristóteles em Nova Perspectiva.

Devo muito, no entanto, aos estudos de religião comparada e simbólica tradicional (René Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr) e às noções de alquimia natural e espiritual que recebi de dois amigos, Juan Alfredo César Müller e Michel Veber. O primeiro foi um gênio da psicologia clínica, que, além de me revelar todo o mundo do pensamento analógico e simbólico também me abriu os olhos para a obra de L. Szondi, o grande psiquiatra húngaro, o único pensador que conseguiu dar um sentido prático e clínico à dialética da liberdade e do destino. Do segundo, um instrutor de artes marciais doublé de artista plástico e aliás o mais importante escritor inédito do Brasil, recebi ensinamentos vitais sobre a alquimia espiritual na tradição chinesa.

Recebi ainda o impacto decisivo da doutrina vedantina, da qual tomei conhecimento por Swami Dayananda Sarasvati, diretor da Academia de Estudos Védicos de Bombaim, que eu e alguns companheiros trouxemos ao Brasil para dar conferências e se tornou um grande amigo do nosso país. Ele me pôs na direção certa em que devem ser lidas as obras de Shankaracharya, provavelmente o mais alto espírito metafísico que já habitou este mundo.

Um pouco mais tarde, descobri, esquecidas do mundo, as obras do grande filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, que fez um esforço de gigante para reordenar o conjunto das ciências filosóficas à luz de uma nova teoria do conhecimento fundada nos números pitagóricos, compreendidos não como quantidades, mas como categorias lógicas e ontológicas.

— Como v. interpreta o problema das relações entre civilizações hoje em dia? Há descontinuidades históricas ou geográficas no campo da civilização, ou só podemos falar de evolução contínua e suas nuanças?

A chamada civilização ocidental pôs sua pata sobre o mundo inteiro, e não existe nenhuma outra em condições de se opor a ela. A resistência islâmica é quixotesca, e tão contaminada de ocidentalismo que, na Arábia Saudita, para cumprir a lei tradicional que proíbe um homem de ficar sozinho num recinto com mulheres estranhas, as classes femininas assistem às aulas por um circuito interno de TV. Quem teve essa idéia imaginou estar pondo a técnica moderna ocidental a serviço da tradição, mas na verdade subjugou a tradição às exigências de uma civilização técnica avassaladora.

O Ocidente unificou o mundo, mas o unificou por baixo, pela técnica e pela economia, não por cima, pelo espírito e pelos valores. Não digo isso como quem lamenta, mas como quem constata um fato. Nos últimos séculos, toda superioridade material é obtida mediante a perda dos valores que dão sentido à vida. Isso acontece com as culturas e nações em particular e com a humanidade em geral. Veja por exemplo o caso dos judeus: tornaram-se poderosos política e militarmente, mas já não são mais judeus, no sentido espiritual do termo: esqueceram Jeová e se tornaram adoradores de si mesmos. Do mesmo modo, a civilização ocidental, cristã na sua inspiração originária, dominou as outras civilizações, mas já não é mais cristã. E tenho motivos para duvidar de que o fundamentalismo islâmico seja realmente fundamentalista; ele me parece ser antes uma inovação revolucionária, uma politização da tradição, sem verdadeiro fundamento espiritual, uma espécie de “teologia da libertação” islâmica. Todos perderam o sentido dos valores espirituais, com a diferença de que os ocidentais e os judeus tiveram um ganho material em troca, e os demais nem isso.

Em todo caso, não podemos esquecer que, quando o Império Romano unificou o mundo então conhecido, ele o fez também só pela força material desprovida de espiritualidade, e que logo em seguida veio o cristianismo insuflar vida nova no corpo da civilização romana, ao mesmo tempo que o poder político-militar romano se desfazia. Provavelmente, dentro de alguns séculos, ou talvez décadas, a civilização mundializada que hoje conhecemos virá a receber um novo influxo dos céus, ao mesmo tempo que se desfará em cacos a estrutura político-militar e midiática que hoje está sendo montada para sustentá-la.

Por via das dúvidas, acho que, longe de estar entrando num período de decadência, a americanização do mundo mal começou. O ciclo que o mundo vive hoje é o da Revolução Americana que se mundializa, e isto não está no fim: está no começo.

Os intelectuais de esquerda — a gente mais estúpida e ridícula que existe no mundo — acham que combatendo o liberalismo e propagando a socialdemocracia estarão se opondo à expansão do império americano. Isso é loucura. Os Estados Unidos são hoje uma socialdemocracia, onde a privatização da economia é compensada por uma intromissão cada vez maior do Estado nos outros setores da vida, a começar pela vida privada, pela alma dos cidadãos: o neoliberalismo da economia vem junto com um crescente socialismo da psique e da cultura; quer se lute em favor de um ou de outro, quem acaba favorecido no final é o Império mundial, o Império americano, cujos dois braços são a esquerda e a direita.

Quanto à socialdemocracia, é perfeitamente compatível com o neoliberalismo, como se vê no caso da Suécia, onde 95 por cento do capital industrial estão nas mãos de grupos privados e onde não obstante o Estado controla toda a economia através do sistema financeiro e previdenciário, assim como controla toda a vida social e psíquica através da espionagem interna, da doutrinação maciça, da estupidificação das massas pela educação estatal, do controle totalitário da vida privada e até da vida física dos cidadãos. A luta aparente entre neoliberais e socialdemocratas, que se observa hoje em toda parte, terá como único resultado transformar o mundo numa imensa Suécia de língua inglesa.

Se querem entender o que está se passando por trás dos conflitos aparentes, perguntem a si mesmos por que os grandes organismos internacionais, que são o núcleo do futuro governo mundial, favorecem, na economia, a adoção de princípios neoliberais, ao mesmo tempo que ajudam com verbas e apoio publicitário todos os movimentos esquerdistas e revolucionários, como por exemplo os “Sem Terra” no Brasil e os movimentos de imigrantes nos países europeus. É porque sabem que as duas linhas de ação irão convergir para um resultado único: o fortalecimento do poder mundial e da síntese “sueca”: privatização da economia, estatização de tudo o mais.

No meu país, os intelectuais de esquerda dizem que sou de direita, porque combato projetos ditos “progressistas” como o direito ao aborto, as quotas preferenciais de empregos para determinadas raças, etc. Não entendem que esses projetos estão enquadrados na política geral globalizante e que, ao defendê-los, servem ao Império Americano que ingenuamente imaginam combater. Sem perceber, a esquerda tornou-se serva do que antigamente ela denominava “imperialismo”.

Mais ridícula ainda é a luta pelo “multiculturalismo”, que, defendendo os direitos de determinadas raças ou culturas, imagina estar se opondo ao projeto globalizante, sem perceber que o multiculturalismo é a estratégia globalizante para a neutralização das diferenças. O negro que proclama seu direito de viver na América vestido de africano imagina exaltar a cultura africana, mas só faz provar a flexibilidade e a força do sistema americano: ele prova, de certo modo, a superioridade da cultura ocidental, ao mostrar que ela pode assimilar culturas africanas e não pode ser assimilada por elas.

— A civilização atual tem um potencial destrutivo que ameace a humanidade?

Certamente. O presente ciclo histórico, inaugurado no século XVIII, baseia-se na concepção prometéica de que o homem, em vez de apenas governar o mundo, deve reinventá-lo. O número de “receitas de mundo” que os filósofos inventaram nos últimos séculos é impressionante, e mais impressionante ainda é o número de vítimas que são imoladas no altar do suposto “mundo melhor”: a Revolução Francesa, em um ano, matou quase um milhão de pessoas – mais gente do que a Inquisição matou em cinco séculos. Daí por diante o preço do futuro em vidas ceifadas no presente não cessa de crescer, até chegarmos aos cem milhões de vítimas do comunismo. A monstruosidade do fenômeno comunista é tanta, que a mente humana se recusa a tomar consciência dele. Atônita, faz de conta que de nada sabe. Mas o comunismo matou mais gente do que duas guerras mundiais, somadas ao número de vítimas de todas as epidemias, terremotos e desastres aéreos e às de todas as ditaduras de direita. O comunismo foi, em suma, a coisa mais mortífera que já aconteceu à humanidade desde o dilúvio bíblico. Supor que tudo isso possa resultar de simples desvios acidentais de um ideal que permanece nobre em essência é, para dizer o mínimo, ingenuidade. A meu ver, o ideal comunista – a construção deliberada de uma “sociedade mais justa” – é intrinsecamente mau. Não existe justiça nenhuma em planejar de antemão a vida das gerações futuras, obrigando-as a arcar com o peso de milhares de decisões que não tomaram e com as quais talvez não venham a concordar. É monstruoso decidir hoje, de maneira irrevogável, a vida dos homens de amanhã. A idéia de uma intervenção global dos reformadores sobre a sociedade é monstruosa em si, independentemente do conteúdo das suas propostas (ou pretextos). Nenhum homem, a não ser que esteja investido de autoridade profética – atestada por milagres – deve ter tamanho poder.

Ora, a idéia central da nossa civilização (e não só do comunismo) é precisamente a busca da sociedade perfeita, do Estado perfeito, que implica necessariamente a moldagem planificada do futuro, a supressão fatal da liberdade de decisão das gerações futuras.

Essa idéia produz necessariamente a extensão indefinida da capacidade legisferante do Estado, que hoje, em certos países, regula até mesmo as relações íntimas entre seres humanos, os olhares e os sentimentos. Se o comunismo foi a versão mais radical dessa tendência, nem por isto ela deixa de ser crescente nas sociedades ditas democráticas, onde, se o Estado dá mais liberdade para a atividade econômica, para compensar vai suprimindo rapidamente todas as outras liberdades, como acontece na Suécia e nos Estados Unidos, onde o cidadão, livre para ganhar dinheiro, é cada vez mais fiscalizado e policiado em sua vida privada. O Estado procura inclusive jogar os indivíduos e os grupos uns contra os outros, para melhor imperar sobre todos: ele promete proteger os filhos contra os pais, as esposas contra os maridos, os pobres contra os ricos, os gays contra os heterossexuais, os não-fumantes contra os fumantes, e vice-versa, enfim, todos contra todos, e ninguém se pergunta como ele poderá fazê-lo sem o crescimento desmesurado do seu próprio poder. A ampliação dos chamados “direitos humanos” resulta, em última instância, num crescimento do poder, num crescimento da tirania. O pior é que os povos vão se habituando a isso e, enganados pela propaganda que os lisonjeia pelos maravilhosos direitos adquiridos, não se lembram de fazer a conta dos direitos perdidos. Fala-se, por exemplo, em direitos da mulher. Ora, durante toda a história do Ocidente a mulher teve o direito de não ser diretamente atingida pelas guerras; as batalhas travavam-se fora ou em torno das cidades, justamente porque dentro delas havia mulheres e crianças que deviam ser preservadas. Esse direito era líquido e certo. Hoje ele não existe mais: não apenas as guerras matam indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, mas todos os Estados vão inventando instrumentos legais para obrigar as mulheres (quando não as crianças) a prestar serviço militar. Outro exemplo: hoje já se aceita como coisa normal e legítima o uso de instrumentos subliminares para o controle de comportamento das multidões, que quatro décadas atrás era denunciado como monstruosa intrusão da autoridade tirânica.

Não digo que isso é um potencial destrutivo apenas: é a destruição em marcha.

Se me perguntarem o que se deve fazer, respondo que não sei, de modo geral, mas que uma coisa é certa: é preciso absolutamente deter a fúria planificadora dos governantes, é preciso acordar do delírio prometéico, é preciso reconhecer que nenhuma geração é sábia o bastante para resolver os problemas das gerações futuras, é preciso absolutamente anular as decisões que mutilem gravemente a liberdade de decisão dos que ainda não nasceram. Mas hoje a ambição prometéica é tão alucinada que já não quer só legislar sobre todas as coisas, mas pensa até em predeterminar geneticamente a vida das gerações futuras. Nossos governantes já não querem ser apenas profetas-legisladores: querem ser deuses. Primeiro equipararam-se a Moisés, depois ao próprio Jeová.

— V. atribui às civilizações sul-americana ou leste-européia algum estatuto distinto ou elas têm que ser consideradas como partes integrantes de outras unidades culturais e históricas ?

A situação hoje é bem clara: uma civilização, muitas culturas. É evidente que emprego os termos no velho sentido de Spengler: civilização como uma superestrutura técnica, econômica e administrativa, cultura como um modo de ver e sentir próprio de um determinado povo.

Ora, a civilização que se denomina Ocidental afasta-se cada vez mais de suas bases culturais mais amplas (greco-latina, judaico-cristã) para se tornar cada vez mais estreitamente moderna, tecnológica e anglo-saxônica. É uma tragédia que isso aconteça precisamente no momento em que essa civilização se mundializa e começa a imperar materialmente sobre todas as culturas. Nos Estados Unidos, país que está na liderança do processo civilizador, as elites se mostram cada vez mais incapazes de absorver o legado da cultura Ocidental e se fecham em concepções improvisadas, em arranjos de ocasião fundados nas contingências e interesses tecnopolíticos do momento. Nas universidades norte-americanas, ganha prestígio uma tese monstruosa chamada “autonomia filosófica”, segundo a qual é desnecessário estudar as filosofias anteriores ao ciclo intelectual iluminista, isto é, ao nascimento das concepções atualmente vigentes nos Estados Unidos. A filosofia, nesse sentido, começaria, no máximo, com Descartes. Em suma, a cultura norte-americana parece tornar-se cada vez mais limitada e provinciana (provinciana inclusive no sentido temporal do estreitamento da consciência histórica), ao mesmo tempo que crescem a importância e o poderio dos EUA como líderes da civilização mundial.

Os países da Europa Ocidental, ainda que mais apegados a suas raízes culturais, americanizam-se rapidamente e não parecem ter vigor para reagir à nova barbárie. A causa disto é que, acostumadas a identificar prestígio cultural e poderio político-econômico, tendem a inibir-se intelectualmente ante o país mais forte e deixar-se guiar por ele. Acostumadas a carregar numa mão o báculo (símbolo da autoridade espiritual), na outra o cetro (símbolo do poder monárquico), ao perder o cetro inibem-se de usar o báculo e acabam perdendo, junto com o poder material, toda autoridade espiritual.

É aí que culturas como a sul-americana (especificamente a brasileira) e a leste-européia (e especificamente a romena) podem exercer um papel benéfico e fundamental para o rumo das coisas no mundo. Nossos países jamais foram senhores do mundo, e por isto entre nós a elevação cultural e espiritual não esteve jamais associada ao poder material. Por esta mesma razão, estamos muito mais próximos das nossas raízes respectivas (e, a fortiori, das raízes gerais da cultura Ocidental) do que os EUA e a Europa Ocidental podem estar. EUA e Europa estão demasiado identificados ao momento histórico para poder transitar livremente pela atmosfera espiritual de outras épocas: tendem a julgá-las desde o ponto de vista cronocêntrico, que faz do hoje o topo e o juiz da História, e que é uma grande ilusão. Nós, ao contrário, sul-americanos e leste-europeus, podemos estar à vontade em Roma ou na Idade Média. Nós ainda compreendemos o que os homens dessas épocas queriam dizer e temos, por isto, um sentido muito mais agudo dos valores eternos e supra-históricos. Somente nós podemos, hoje, impedir que esses valores se percam para sempre no torvelinho globalizante que as nações mais poderosas nos impõem de maneira apressada e inconseqüente. Somente nós podemos exigir dos senhores do dia a obediência a valores espirituais que eles, arrastados na voragem do prometeanismo reformador, já nem sequer entendem mais. Eles são como um rei muito poderoso e semi-enlouquecido na contemplação eufórica do seu poder quase ilimitado. Nós somos o velho sábio asceta que pode devolver ao rei o uso da razão, porque nós vemos as coisas na perspectiva de um tempo mais longo e avaliamos melhor as conseqüências dos atos humanos.

Além disso, é preciso levar em conta os tesouros da psicologia nacional, que cada um de nossos povos conserva como um legado de sabedoria instintiva, que a civilização globalizada desconhece.

Os romenos, por exemplo, têm a arte de sobreviver num mundo cruel sem comprometer-se intimamente com a crueldade. Vocês se livraram de seus nazistas e de seus comunistas sem persegui-los, sem fuzilá-los, mas simplesmente absorvendo-os numa nova situação da qual eles participam por hipocrisia mas sem prejudicá-la seriamente. Isto é de uma sabedoria admirável, num mundo onde se considera que é absolutamente necessário punir crimes políticos cometidos quarenta ou cinqüenta anos atrás. É sabedoria comparável à de Maomé, que dizia aos fiéis: “Os hipócritas são nossos amigos, não nossos inimigos”, e que, ao invadir triunfante a cidade que o expulsara, puniu cinco e não mais de cinco inimigos, perdoando todos os demais. O purismo imbecil que quer aplicar a lei a ferro e fogo é pior que a hipocrisia: é o fingimento total, a mentira total. Que sentido existe em punir um Maurice Papon porque perseguiu judeus cinqüenta anos atrás e continuar exaltando ao mesmo tempo os comunistas que, apoiando o pacto germano-soviético, se tornaram cúmplices do crescimento nazista? Na verdade, quem grita pedindo a condenação de um criminoso está em geral encobrindo outro criminoso, ou vários.

Quando Cristo disse “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”, quis enaltecer aqueles que buscam ser justos, que buscam abster-se de fazer injustiças, não aqueles que querem espalhar cadeias, guilhotinas e cadeiras elétricas pelo mundo a pretexto de fazer justiça. Acho que esse sentido da fragilidade – e às vezes da absurdidade – da justiça humana é particularmente desenvolvido no povo romeno e na cultura romena.

Quanto aos brasileiros, que foram poupados às grandes tragédias do século, eles têm um senso muito agudo da pessoa humana concreta, que tem mais valor do que sua ideologia, sua classe, seu grupo racial, sua herança cultural etc. No Brasil é coisa muito comum, banal mesmo, milionários terem amizade com homens do povo, pessoas de uma raça se casarem com as de outra. Quanto aos grupos religiosos, já éramos ecumênicos muito antes que essa palavra entrasse na moda. Meu pai freqüentava ora o culto católico, ora o protestante, e ninguém via nisso a menor contradição. Mesmo pessoas radicalmente diferentes podem conviver, mais que em paz, num ambiente de verdadeira e sincera cordialidade. Veja você: minha mãe, que sempre foi muito católica e durante décadas trabalhou no escritório do Arcebispo de São Paulo, ficou escandalizada quando um casal gay (um travesti com seu “marido”) se mudou para o seu prédio. Passadas algumas semanas, começou a achar graça e levar a coisa para o lado cômico. Depois de uns meses, vou visitar minha mãe e encontro-a tomando chá com a travesti, conversando animadamente como velhas amigas. Uns anos depois a travesti morreu de Aids e minha mãe chorou copiosamente, repetindo: “Ela era tão boa amiga…” O mais extraordinário de tudo é que, em tese, minha mãe ainda continua até hoje absolutamente contrária à legalização dos casamentos gays. Não era portanto por convicção ideológica que ela aceitava a travesti sem discriminações ou preconceitos: era por legítima afeição humana, que se sobrepunha a todos os abstracionismos ideológicos. São coisas maravilhosas que só existem no Brasil.

— V. ainda considera importante o papel histórico das revoluções ?

Há na cultura mundial de hoje toda uma mitologia, toda uma idealização das revoluções, como se não fossem acontecimentos separados, mas sim etapas de uma caminhada em direção à liberdade crescente. Pode-se discernir, de fato, um sentido geral e unitário na sucessão de revoluções — mas ele não aponta na direção da liberdade crescente e sim no do crescimento do poder, no do aumento da distância entre o poderoso e o homem comum. Na Idade Média, as armas do senhor de terras não eram muito diferentes daquelas que um camponês enraivecido poderia usar em caso de necessidade: espada, machado, maça. Ademais, o senhor feudal vivia entre os camponeses, participava do seu cotidiano e estava ao seu alcance. O poderoso de hoje dispõe de armas que estão até mesmo acima do que o homem comum pode imaginar, e pode, à distância, destruir cidades inteiras. Ele dispõe também de uma rede de informantes que, por meios eletrônicos, podem fiscalizar o cidadão vinte e quatro horas por dia sem que este perceba. O Estado pode hoje, instantaneamente, saber tudo sobre a vida econômica, profissional, social, sexual e mental de qualquer cidadão. A vida do homem comum tornou-se indefesa e transparente, enquanto a autoridade se tornou opaca, invisível e onipresente. É absolutamente ridículo pretender que os pequenos direitos conquistados pelo cidadão compensem esse crescimento desproporcional da autoridade.

As revoluções foram o instrumento por excelência do processo de extensão ilimitada do poder. Luís XIV, para recrutar soldados, tinha de ir pessoalmente de cidade em cidade, implorando que os nobres e a plebe se alistassem. Conseguiu juntar 140 mil homens, o maior exército da Europa. A Revolução instaura o recrutamento militar obrigatório e em poucas semanas reúne um milhão de soldados, número logo superado pelas tropas em luta — igualmente recrutadas à força — na Guerra Civil Americana, que completa a obra da Revolução da Independência consolidando o Estado americano. A Revolução Russa cria o recrutamento obrigatório de mulheres e crianças e instaura o maior Estado policial da História.

A força transformadora das revoluções provém menos da violência do que do caos e da nebulosidade em que se desenrolam, e no qual as pessoas perdem todo o senso dos valores e das proporções, sentindo-se desorientadas e dispondo-se a aceitar, para escapar da insegurança, toda exigência absurda que a nova autoridade lhes faça. A fraude que faz um povo aceitar a escravidão sob o nome de liberdade pertence à essência mesma das revoluções. E como as revoluções têm sido o meio essencial de transformação do mundo, é fatal que essa transformação vá sempre no sentido de um entorpecimento da consciência, no sentido de uma espécie de imbecilização que torna os homens escravos, dirigindo seu ódio contra inofensivos bodes expiatórios.

Mas é claro que não devemos chamar de “revolução” somente os processos violentos de tomada do poder. Qualquer aceleração intencional das transformações políticas, que ultrapasse a capacidade de compreensão do povo e o arraste numa sucessão de acontecimentos cujo sentido ele não pode captar, é uma revolução. Hoje assistimos a uma imensa revolução mundial, que vai instaurando um poder global cuja natureza pouquíssimas pessoas parecem compreender.

Ao longo de toda a história humana, só três constantes gerais foram observadas: a constante de Malthus, isto é, o aumento da população, a constante de Huntington (refiro-me ao geógrafo, Ellsworth Huntington, não ao politólogo, Samuel Huntington), isto é, a tendência à absorção de civilizações menores nas maiores, até à completa mundialização, e a constante de Jouvenel, isto é, a centralização do poder e aumento dos meios de dominação, um processo só aparentemente compensado pela democratização das instituições. A população jamais parou de crescer, os contatos entre civilizações jamais pararam de ser cada vez mais intensos, e o poder jamais cessou de se tornar cada vez mais forte e centralizado à custa da supressão dos poderes intermediários. Estes três processos, inicialmente independentes, começam a se interligar a partir do século XVIII, e as revoluções aceleram o processo global.

— V. falou sobre a globalização da ignorância. Como é que v. considera o fenômeno da globalização e que papel histórico tem a ignorância ?

“Globalização”, ou unificação financeira do mundo, não é um projeto. É um fato consumado. Mas para funcionar com pleno rendimento ela ainda tem de eliminar certos resíduos da velha autonomia dos poderes nacionais. É para isso que serve a esquerda, e para nada mais.

Na vasta estratégia concebida pelos senhores do mundo para a unificação econômica, moral, política e administrativa da espécie humana, cabe à chamada “esquerda” uma tarefa muito determinada, que ela cumpre com admirável subserviência e disciplina. Essa tarefa é tripla: em primeiro lugar, debilitar os Estados nacionais, despertando reivindicações que não possam ser atendidas com os recursos existentes dentro de suas fronteiras, mas requeiram ajuda externa que fatalmente os fará submeter-se cada vez mais às organizações internacionais. São características, nesse ponto, as reivindicações ligadas à ecologia, à distribuição da renda, aos direitos de trabalhadores imigrantes e de minorias étnicas, etc. Em segundo lugar, boicotar toda solução local ao problema do banditismo, de modo que este se agrave até requerer a intervenção de poderes transnacionais (unificação policial-militar do mundo). Finalmente, promover a destruição de todos os valores e símbolos associados à idéia de pátria, família, tradições – a base psicológica das autonomias nacionais. Neste tópico são decisivas a propaganda do aborto, a luta pela legalização das uniões gays e causas similares, que aos poucos vão acostumando os povos a novos padrões morais – uniformes em escala mundial – e a uma intervenção cada vez maior do Estado na vida privada: de modo que cada Estado nacional adquire tanto mais poder sobre seus cidadãos quanto mais se submeta, no plano externo, aos poderes internacionais. Num futuro que alguns analistas prevêem para muito breve, os parlamentos nacionais legislarão sobre trânsito e sobre uso dos banheiros públicos, mas não sobre economia ou política externa.

Quanto mais a esquerda lutar por esses três objetivos, mais ela contribuirá para tornar mais pleno e eficaz o domínio planetário exercido por aquelas poucas dezenas de banqueiros dos quais já depende, hoje, a sorte das nações.

Nos países em que o pathos esquerdista inclui o forte apego a um discurso nacionalista, este discurso não apenas se mostra inofensivo na prática, como ainda contribui para tornar ainda mais invisível, aos olhos da população e da esquerda mesma, o resultado global que os esforços esquerdistas vão favorecer em última instância. Ele ajuda a conservar os militantes no estado hipnótico de falsa consciência necessário, por definição, a todo inocente útil.

Que a unificação do mundo se fará sob o signo do capitalismo, é coisa que já não se discute. O problema é saber qual tipo de capitalismo e qual o lugar que, no quadro mundial, caberá a cada nação. O primeiro desses problemas não posso discutir aqui. Quanto ao segundo, nada impede que economias fortemente estatizadas se integrem bem no conjunto capitalista do mundo: basta que o socialismo local siga as normas do jogo internacional e reserve dentro de seu território um bom espaço para a livre atuação de empresas multinacionais. A China, aliás, vive disso. O poder mundial está disposto a negociar com as esquerdas dos vários países, vendendo apoio para a conquista do poder local em troca de bons serviços à globalização. Uma esquerda boazinha e obediente concentrará então suas forças no combate a poderes regionais, que, uma vez destruídos, cedam lugar a uma das duas forças que então restarão no tabuleiro: o Estado e as multinacionais. As invasões de terras no Brasil, por exemplo, tornam a agricultura uma atividade muito cara e perigosa que, dentro de algum tempo, só o Estado e as multinacionais terão condições de financiar. Eis aí por que é o MST (Movimento dos Sem-Terra) e não os proprietários de terras quem recebe dinheiro do Exterior: é salário por serviços prestados, nada mais.

É simples: o projeto neoliberal que se diz estar em curso de implantação no mundo não é liberal. É uma fusão de elementos neoliberais e socialistas, destinada a fazer microcosmicamente, no seio de cada sociedade que governa, uma divisão territorial entre esquerda e direita similar àquela que dominou o mundo desde o acordo de Yalta: a economia fica para os capitalistas, a cultura e a política para os socialistas. À liberdade de mercado, no setor econômico, se alia o dirigismo socialista em tudo o mais – na educação, na formação psicológica das massas, nas relações de família, na ecologia, na moral pública e privada, em tudo, enfim, que não interfira nas decisões econômicas das grandes empresas. Desviando para esses setores extra-econômicos o clamor reivindicante que antes ameaçava desaguar numa economia socialista, os poderes multinacionais dividem o mundo segundo a mais confortável das repartições: liberdade para o dinheiro, burocracia estatal para os seres humanos. É por isto que os governos hoje chamados neoliberais e direitistas, como o de Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tempo que se esforçam por privatizar empresas, apoiam entusiasticamente políticas esquerdistas e revolucionárias, como o aborto sob proteção do Estado, o fornecimento estatal de drogas à população, as leis de affirmative action, etc. a estatização das escolas, etc. É a fórmula perfeita, para cuja consecução hoje colaboram, com inconsciência ovina, os rebanhos de sem-terra, de militantes negros, de gays, de lésbicas e tutti quanti – falsos rebeldes, muito bem protegidos pelo pastor estatal e pelo ruidoso cão-de-guarda midiático. Alguém tem dúvida de que essa orientação global, tão idêntica em todos os países, tão conveniente à harmonia do mundo, provém das mesmas fontes da tão execrada receita econômica do FMI?

É preciso ser cego para não perceber essas coisas, por trás do tênue véu de filó que a mídia tece para escondê-las.

— Qual é o lugar que v. atribui à literatura, na cultura do presente?

Hoje como sempre, a função da literatura é explorar e estruturar verbalmente o mundo do imaginário, do possível. Junto com as outras artes, a literatura abre um campo de possibilidades que delimita o mundo imaginário onde vivem os homens de uma época. É nesse campo e não para além dele que os homens fazem suas escolhas, colhem suas idéias, criam suas teorias e suas técnicas. A literatura, em especial, delimita o imaginário verbalizável e predetermina assim o campo inteiro das discussões. Para mim, não há uma separação dual, mas uma perfeita continuidade entre as artes, a filosofia e a ciência: formam como uma árvore, onde as artes são a raiz e a ciência o fruto. As obras de filosofia e ciência, nesse sentido, fazem parte da “literatura” ou são uma extensão dela.

Mas é claro que, assim como as artes abrem o espaço do imaginário, podem também fechá-lo, limitá-lo, torná-lo repetitivo e compressivo. Boa parte da literatura de massas hoje em dia faz exatamente isso, dando ao povo a ilusão de estar-se tornando culto quando na verdade está apenas assimilando cacoetes mentais, esquemas de valor padronizados, etc.

— Sei que v. dá uma grande importância à obra de Constantin Noica. O Senhor quer falar na sua aproximação dele?

Não conheço profundamente a obra de Noïca, li apenas alguns de seus textos e ouvi alguns depoimentos a respeito, mas parece-me que esse grande pensador tem a proposta de uma nova Paideia capaz de formar homens à altura de compreender o que se passa no mundo e de chegar aos cumes da autoconsciência humana.

Nos últimos anos, li poucos livros que me entusiasmassem tanto quanto as Seis Doenças do Espírito Contemporâneo, que busca restaurar o sentido da filosofia como medicina do espírito e reconquista da unidade da consciência — um objetivo que é também o de toda a minha vida e que faz de mim, espero, um irmão menor de Constantin Noïca.

— Quais são, segundo sua opinião, as figuras humanas paradigmáticas deste fim de milênio ?

Os grandes homens do século XX estiveram no campo do saber, não no da ação. Edmund Husserl é maior que Hegel ou Kant. Poucos séculos tiveram homens espirituais da altura de René Guénon, Râmana Maharshi e Franz Rosenzweig.

Mas, para mim, a figura paradigmática por excelência é Viktor Frankl, o médico judeu que, no inferno dos campos de concentração, redescobriu a idéia do sentido da vida e, em troca da dor, devolveu ao mundo o caminho da felicidade em vez de lições de ressentimento.

— Como é que o senhor contrói hoje em dia sua futura obra política e filosófica. Organizada acerca de que idéias e situações?

Resumidamente, busco resgatar o valor da consciência individual humana como sede única do conhecimento universal e apodíctico, e empreender em nome dela a crítica radical da cultura consensual, versão acadêmica da cultura de massas.

Até o momento concentrei meu trabalho de escritor filosófico principalmente em duas áreas: a crítica cultural, que a meu ver é o começo e a motivação de onde emerge uma filosofia, e a teoria do conhecimento, que é o princípio da elaboração dessa filosofia. Como professor e conferencista, no entanto, abranjo uma área muito maior, que vai da filosofia da religião à Teoria do Estado.

De modo mais detalhado, descrevo o meu trabalho no documento “Esboço de um sistema de filosofia”, que no momento eu não saberia resumir.

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