Textos

Entrevista de Olavo de Carvalho à Revista Digital

Olavo de Carvalho

Revista Digital, 23 de março de 2001

Participando de um ciclo de palestras promovido pela ACLAME (Associação da Classe Média do RS) em universidades do interior do estado – em cidades como Cruz Alta, Ijuí, Santa Cruz do Sul, Erechim, entre outras – intitulado Universidade Para Quê?–, o polêmico filósofo e jornalista Olavo de Carvalho fala de assuntos na pauta dos gaúchos: o papel da universidades e a Uergs, o governo Olívio Dutra e os guerrilheiros colombianos, Fórum Social x Fórum da Liberdade, a ascensão do PT ao poder, segurança pública, e muito mais! Leia e discuta essa entrevista exclusiva para a Revista Digital.

Professor, o senhor está visitando o Estado a convite da Aclame (Associação da Classe Média do Rio Grande do Sul), para um ciclo de palestras intitulado Universidade pra quê?. Qual é a função da universidade, na opinião do senhor? O senhor acredita que a universidade brasileira perdeu sua função original?

— A universidade pode ter inúmeras funções diferentes. Porém, a característica que a define é a de constituir o maior centro de busca e preservação do conhecimento. É uma grande ilusão pensar que a universidade se destinasse a formar a classe dominante. Na Idade Média, havia esta consciência do benefício incalculável que o conhecimento representa, pela sua simples posse. Não se pensava na hipótese de usar isto para outra coisa, ao contrário, isto era o supremo benefício.

Com o tempo, a universidade vai adquirindo finalidades secundárias. Em primeiro lugar, na Renascença, começou a disputa entre os reis e o papado pelo domínio da universidade. O declínio da intelectualidade católica dominante da época é terrível – se você compara os intelectuais dos séculos XII e XIII com aqueles idiotas do Concílio de Trento, é algo absolutamente deplorável. Há uma queda do nível das universidades ocasionada pela sua politização, por culpa dos papas e dos reis. Com a restauração na Alemanha, a universidade conserva uma imensa autonomia, possibilitando o surgimento do movimento notabilíssimo que foi o romantismo e o idealismo alemão. Filho direto da liberdade, da não interferência dos poderes externos na universidade.

No entanto, a partir daí, esta intervenção é cada vez maior, sobretudo e em primeiro lugar no sentido comercial. A universidade vai se transformando em uma instituição para a formação profissional, e, logo em seguida, como efeito quase imediato, vem a politização da universidade. Não que essas finalidades econômicas e políticas não devam ser atendidas, mas para elas há outros instrumentos.

O senhor acha então que dever-se-ia separar essa questão do conhecimento instrumental, voltado para fins técnicos e para a formação profissional?

— A universidade pode abranger tudo isso, mas sem abrir mão da consciência do valor do conhecimento objetivo. Nesse sentido, ela poderia se tornar o árbitro das disputas sociais e políticas, realmente dando uma ajuda na esfera econômica. Mas, se ela perder a sua função própria e se prostituir a fins comerciais ou políticos, ela perde a autoridade e se transforma em um órgão auxiliar, ela é subjugada. É o que acontece hoje.

A maioria dos políticos usa a universidade sem nenhum respeito ao conhecimento objetivo. Os partidos, sobretudo o famoso PT e esse pessoal comunista todo, quer instituir a sua doutrina partidária como programa de universidade, vetando inclusive o conhecimento de doutrinas antagônicas. Isto é o máximo da prostituição que se pode conceber na universidade. E no Brasil isto acontece em todas as universidades, sem exceção.

O senhor traçou uma origem bastante antiga para esse processo de intervenção política. E no Brasil, quando é que isso começou?

— O Brasil não tem tradição universitária. Ele tem, ao contrário, uma tradição das faculdades isoladas, que, por não poderem exercer esta função mais elevada, acabavam virando centros de agitação política. O tempo que os estudantes perderam fazendo passeatas e revoluções foi tempo roubado à formação da elite intelectual nacional. A desvantagem que o Brasil leva no cenário internacional ocorre simplesmente pelo despreparo e pela burrice da sua elite política. Em vez de estudar, ficavam fazendo passeata. Hoje, temos como resultado esse Congresso de analfabetos. Em outros países, é uma tradição os políticos de primeiro plano serem homens que dominam a arte da palavra. Na França, um político não se incomodará de ser acusado de corrupção, mas o desafiará para um duelo se você disser que ele cometeu um erro de gramática. Nos Estados Unidos, um dos políticos mais populistas, como Theodore Roosevelt, era autor de ensaios literários de valor extraordinário. Abraham Lincoln era um dos maiores estilistas da língua inglesa. E isso é uma tradição, que há em quase todos os países.

E o Brasil também tinha esta tradição intelectual, até as décadas de 40 e 50. O tempo da ditadura ainda conservou um pouco, mas, pelo simples fato de ser uma ditadura, por não se ter uma circulação normal das idéias e dos debates políticos, rompe-se a tradição. E, na constituinte, se elegeram pessoas que não sabem conjugar um verbo, completar uma frase, não têm domínio do idioma. Você tem o exemplo grotesco do Lula, da Benedita, pessoas que oferecem a desculpa da sua origem pobre, mas a origem deles não é mais pobre que a de Machado de Assis, ou mais pobre do que a minha. Machado de Assis era filho de lavadeira, eu sou neto de lavadeira.

Qual tem sido a reação das comunidades acadêmicas visitadas pelo senhor neste ciclo de palestras?

— Em geral, eles gostam. Quando não gostam, não respondem nada. Ficam quietinhos [risos].

Existe alguma perspectiva de mudança deste quadro? E, se existe, qual o papel do governo nisto, ele ajuda ou atrapalha?

— O governo só atrapalha! Ele é o culpado direto disso aí. Não só este governo, mas todos os governos! Todos os governos sempre tentaram usar a universidade como instrumento de ação política.

E isto independentemente de partidos?

— E sobretudo criando esta ilusão de que a universidade deve prestar serviço público. A existência da universidade já é o serviço público! A finalidade da universidade se esgota na busca e na transmissão do conhecimento. Se você disser que a universidade tem que planejar a reforma social, então qual é a diferença entre a universidade e um ministério? Ou um partido político? Aí se cria uma confusão, perdendo-se a noção da função específica das várias instituições.

O senhor tem acompanhado a experiência do Rio Grande do Sul na área da educação, onde se discute a questão da criação da universidade estadual, a Uergs?

— Sim. Isso é uma palhaçada, mais uma palhaçada. Primeiro, você já tem um montão de universidades. Essa vai ser mais um cabide de empregos. Imagine, vai ser uma universidade feita pelo PT, vai ser uma universidade petista. E é apenas isso o que eles querem: mais um megafone para fazer propaganda. Aliás, a única coisa que esse governador daqui sabe fazer é propaganda, alardeia obras que ele não fez, até obras dos seus adversários.

O senhor fez duras críticas ao governador Olívio Dutra em seu artigo O direito de duvidar, publicado em Zero Hora de 11/03/2001. O senhor vê mesmo uma relação entre a guerrilha colombiana, o narcotráfico e a ascensão da esquerda ao poder no Brasil?

— Mas essa relação não sou eu que vejo, são eles mesmos que afirmam! Eles dizem isso! Eles se irmanam na luta pelo socialismo na América Latina, eles declaram isso. Não é uma interpretação que eu estou fazendo. Então, é evidente que, se o PT ganha votos aqui, isso é bom para a guerrilha colombiana lá. Se o colombiano ganha mais meio metro quadrado de terra, isto é bom para o PT aqui.  Agora, se o dr. Olívio Dutra não tem interesses ligados a isso, ele que condene as violências da guerrilha. Eu o desafio em público a fazer isso! Essa guerrilha todo mundo viu na televisão: os guerrilheiros amarraram uma bomba na cabeça de uma prisioneira e a mulher explodiu. Essa é a maior organização criminosa que já existiu no continente. Se o dr. Olívio Dutra for sincero, que condene esses crimes. Ele que chame o representante da guerrilha de criminoso, se ele tiver coragem. Esse é o tratamento que o governador tem obrigação de dar a essa gente. É esse o tratamento que ele está dando? Não, ele está tratando esses sujeitos como hóspedes normais! Você recebe o Al Capone na sua casa e o trata como se fosse um homem honrado e, sobretudo, empresta um megafone nacional para o sujeito falar, para fazer propaganda? O que fez o Fórum Social Mundial se não dar a esse pessoal da guerrilha instrumentos de propaganda? Ora, dar instrumento de propaganda não é cumplicidade? É o caso de facilitar meios para a apologia do crime. E essa guerrilha é criminosa.

O senhor tem alguma avaliação de por que este processo de ascensão do PT ao poder começou no Rio Grande do Sul?

— Em parte é porque você tem uma tradição de estatismo forte, muito arraigada. Mas é curioso que justamente o gaúcho tenha essa mania, porque ele não precisa disso, o gaúcho é um tipo independente, que sempre teve iniciativa própria. Se fosse um povo fracote, incapaz, que precisa de um governo forte que o proteja, eu admitiria isso. Mas o gaúcho realmente não precisa disso, esta é uma situação irônica, uma excrescência. Isso ficou assim por falta de repertório cultural. Sobretudo, quando não há outras idéias em circulação, você adere às idéias que estão aí. Por exemplo, a tradição liberal é todinha ignorada aqui neste país. Você fala de liberalismo, as pessoas não sabem a que autores você está se referindo, não têm as fontes, nunca leram nada a respeito, você não vê os livros liberais nas livrarias. Você encontra, no máximo, um ou outro best seller sobre globalização, livros de terceira ou quarta categoria. Você não encontra os livros do von Mises, do Hayek, do Rothbard. Tudo o que há de mais significativo do pensamento liberal não chega aqui.

Falando nisso, o senhor vai ter uma participação no Fórum da Liberdade, que está em sua 14ª edição. Como o sr. vê a sua participação nesse fórum e mesmo a existência deste tipo de iniciativa, que já está consagrada no estado?

— Ah, isso vai ser muito divertido! Em primeiro lugar, porque eu tive um debate pela imprensa com o deputado José Dirceu, e eu vou encontrá-lo lá, eu quero que ele me diga, cara a cara, que ele não é um técnico em inteligência militar formado em Cuba. Ele diz que o PT só investiga nas fontes oficiais, o que é uma impossibilidade pura e simples porque, em certas CPIs, o PT aparecia sabendo até o número da cédula que foi dada em propina para um sujeito. O que mostra que existe espionagem. E o deputado José Dirceu nega isso aí. Ameçou até me processar. Agora, ele deve explicar como é que se deu essa estranha mutação na cabeça dele que, de agente secreto, se transformou em jurista. Esse é um dos motivos pelos quais eu estou ansiosíssimo para chegar lá, eu quero que ele me conte essa história.

Como é que o senhor contrasta uma iniciativa como o Fórum da Liberdade com o Fórum Social, por exemplo? No Fórum da Liberdade a gente vê que existe contraste de opiniões, o que não parece ser o caso do Fórum Social.

— O Fórum Social, que pretendeu ser um contraponto ao Fórum de Davos, verdade foi apenas uma caricatura do Fórum da Liberdade, uma macaquice muito mal feita, porque ali não tem Fórum nenhum, aquilo é um coro, o Coro Social Mundial. O conceito de debate deles é o do centralismo democrático leninista. É o debate interno dos comunistas. Nesse sentido, não digo nem que eles sejam contra a liberdade: eles são a favor da liberdade, só que da liberdade para eles! Quem não é da curriola deles não precisa de liberdade. Esse Fórum Social Mundial foi duplamente fraudulento: não só por se apresentar como Fórum, o que não verdade não foi, mas também por posar como o grande inimigo da Nova Ordem Mundial, que o financiou e o paparicou, passou a mão na cabeça dele e o carregou no colo. Toda a constelação dos grão-senhores da Nova Ordem Mundial apoiou essa porcaria e esses meninos ficam fazendo o papel de enfants terribles: “Nós somos os revoltadinhos.” São nada, são uns vendidos!

O senhor também atribuiu aos intelectuais de esquerda um papel de formadores de guerrilheiros, durante os anos em que estes intelectuais estiveram encarcerados com ladrões comuns, durante a época da ditadura no Brasil.

— Isso é um longo processo. A utilização do banditismo para a revolução é uma tradição. Começa na Revolução Francesa, Lênin aperfeiçoou a coisa e ela segue sendo usada, de maneira que não há novidade alguma nisso aí.

O senhor deve ter visto os movimentos de pequenos agricultores invadindo a Secretaria da Agricultura do Estado. Será que isso aí é o feitiço se voltando contra o feiticeiro, ou é pura tática de desinformação?

— Eu não creio que isso configure um caso de o feitiço virar contra o feiticeiro em escala maior. Essas coisas não são muito difíceis de controlar e são percalços no caminho de uma estratégia revolucionária. Isso acontece mesmo. Agora, no caso dos bandidos, é mais difícil governá-los. Mas nem por isso foi impossível fazer uma rebelião simultânea de 29 presídios em São Paulo, preparada desde a década de 70 por intelectuais esquerdistas presos, que ensinaram a essa gente as técnicas de guerrilha e de organização política. Esses mesmos intelectuais e líderes esquerdistas aparecem na televisão, falando das causas do banditismo como se fossem autoridades neutras e superiores no assunto. Ora, as causas são eles mesmos! Nosso banditismo não tem a ver com problemas sociais, miséria, principalmente porque os grandes centros produtores de violência não são as regiões mais pobres. Para falar em causas sociais do banditismo, você precisaria de causas sociais para transformar o sujeito pobre em um traficante em grande escala, e isso é impossível. Mas a idéia de que o banditismo tem causas sociais acaba funcionando como um pretexto legitimador do banditismo. Para o bandido, essa é uma retórica agradável aos ouvidos dele: o sujeito investe contra a sociedade e a sociedade é que é culpada. Para o bandido isso é uma delícia.

Do ponto de vista da segurança pública, o sr. deve ter acompanhado os protestos de cidades do interior do RS, nas quais a Brigada Militar está sendo retirada, concentrando suas operações em uns poucos municípios. Como é que o senhor vê esse processo?

— Isso tem uma lógica. Por um lado, você fomenta a formação de organizações revolucionárias, como o MST. Você paparica e dá apoio publicitário à guerrilha. E, por outro lado, você desmonta o aparato policial civil e militar. Você está agindo com muita lógica. Você está preparando uma revolução. Mas, como as pessoas hoje em dia não estudam mais estratégia leninista, só os que a praticam ainda a estudam, elas vêem esse fatos e os consideram coisas isoladas, quando tudo isso é de uma lógica absolutamente implacável. A Brigada Militar é um centro de resistência ao processo revolucionário, logo, temos de desmontá-la, é óbvio!

O senhor acha que isso é apenas a ponta do iceberg?

— Nem ponta de iceberg: o processo é visível! Não se pode nem mesmo dizer que é uma conspiração, porque o processo está acontecendo na nossa cara! Por exemplo, toda essa campanha pela ética, inventada em 1990, com a finalidade de atribuir à esquerda o monopólio da autoridade moral e de jogar as demais tendências umas contra as outras, está sendo feita na nossa cara, e, depois de doze anos de experiência, as pessoas ainda não se deram conta disso. A incapacidade de aprender com a experiência assinala uma grave deficiência mental. Um país que ainda não aprendeu a unidade desse processo está em um estado de torpor mental absolutamente patético!

O senhor chegou mesmo a comentar que a briga recente do ACM com o FHC era resultado desse processo.

— Esse foi um resultado maravilhoso! Prova que a coisa está funcionando. Eles estão arrebentando com todas as lideranças que possam se opor no caminho deles, desmontando o país com base em acusações de corrupção, com uma ressalva: eles próprios nunca são investigados, porque antes tiveram o bom senso de penetrar na Polícia Federal, no Ministério Público, e sobretudo na mídia. Se o petista que está no Ministério Público quer investigar um sujeito, o que ele faz? Ele solta aquilo para a imprensa, a imprensa noticia e aí ele usa o noticiário da imprensa como motivo para iniciar a investigação. Na hora que se inicia a investigação, o sujeito já está queimado, com indisponibilidade de bens, já se abre seu sigilo bancário. A reputação do sujeito está acabada. No fim, se ele for inocentado pela Justiça, a reputação dele será restaurada? Não, a reputação do juiz é que estará acabada! Se o sujeito é inocentado, isso não é prova de que ele é inocente, mas é prova de que o juiz é culpado. E as pessoas ainda não são capazes de ver aí a unidade de uma estratégia revolucionária, a qual os próprios revolucionários já confessaram.

E o senhor acha que há a possibilidade de mudança? Ou o processo de aprendizado vai ser muito longo?

— Bom, tudo depende de as pessoas se tornarem um pouco inteligentes. O Gilberto Amado dizia que tinha um orgasmo quando ele encontrava um brasileiro capaz de juntar causa e efeito. Aqui, para que isso aconteça, a gente precisa de uma sucessão formidável de orgasmos! Eu não sei se é possível ainda – mas, se as pessoas tomarem consciência, essa porcaria acaba em uma semana. A única força que esse pessoal tem é a ignorância e o torpor da opinião pública, sobretudo da elite, em especial a elite empresarial. As pessoas estão afundando, vão ser mortas daqui a pouco e estão brincando com essa coisa, dando dinheiro para financiar a sua própria liquidação. A primeira coisa a fazer é fechar a torneira do dinheiro. Aí a brincadeira esquerdista acaba em dois dias. Porque poder efetivo eles não têm, o poder deles é a ilusão que eles cultivam na cabeça dos outros. A ilusão, a cegueira, o poder das trevas.

 

Entrevista com Karl Marx

MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA

13 de março de 2001

Finalmente ele aceitou meu convite para uma entrevista. Eu mal podia acreditar. Estaria frente a frente com o homem que teve o mérito de desvendar aspectos novos da sociedade, apesar da inexatidão científica de suas profecias ou da dose de utopia e de messianismo contidos em sua obra. Mas seja lá como for, o monumental pensamento de Karl Marx havia povoado minha juventude com sonhos revolucionários de um romantismo inigualável, e não há dúvida que, ao explicar as mudanças através do conflito entre classes, ele muito contribuiu para a compreensão sociológica dos processos sociais.

Assim sendo, meu coração batia de ansiedade enquanto me dirigia para o lugar do encontro. Ele determinara que o local seria num dos mais belos shoppings centers de São Paulo, o Higienópolis, verdadeiro templo do consumo desvairado. Como desobedecer-lhe?  Para completar tamanha excentricidade,  exigira ser entrevistado enquanto tomássemos lanche no McDonald’s, o que estranhei bastante. Aliás, fiquei imaginando o que diria se nos visse o filósofo e baderneiro francês José Bové,  produtor de queijos de cabra que estudou em Harvard, e que nas horas vagas faz protestos contra os Estados Unidos, homem cuja birra aos lanches do McDonald’s acabou por conduzi-lo ao estrelato, especialmente no recente encontro anti-Davos, palco petista de Porto Alegre onde, ao que parece, foram proibidos hambúrgueres e servido todo dia um prato de salada russa. Não apurei se o cardápio continha ou não produtos transgênicos.

Pois é, se Marx queria ir ao símbolo diabólico da globalização, quem era eu para contrariar sua vontade.  Então, na hora  aprazada, postei-me na entrada da maldita lanchonete em meio a uma democrática e pequena multidão de anônimos comilões de sanduíches, formada por jovens da periferia e de pessoas da classe média que se distinguem ainda, como se sabe, pelo terrível vício de ingerir coca-cola, outro endemoninhado produto que mantém a pobreza mundial açucarada e alienada  aos apelos gastronômicos do imperialismo.

Depois de quarenta minutos de atraso que me angustiaram por uma eternidade, ele surgiu como o russo Anienkof o descrevera no passado. Sua cabeça parecia a de um leão de basta cabeleira grisalha, as mãos cobertas de pelos, as maneiras desajeitadas, todavia orgulhosas, arrogantes e autoritárias, que sem dúvida ficaram como legado para muitos dos seus seguidores. Todo esse aspecto conferia com o que eu esperava ver, menos o traje. Em vez da roupa desalinhada e preta, Marx vestia uma camiseta branca “dry fit” e ostentava calça jeans de griffe. Nos pés, botas, à moda Bush e Fox.

No que chegou me ordenou com sua voz metálica e vibrante, feita para emitir juízos radicais sobre os homens e as coisas, para pronunciar palavras imperativas: “A senhora me pega um big mac com fritas e uma coca de 500 ml que na seca não vou falar nada”. Obediente fui até a fila adquirir o lanche, enquanto o majestoso Karl Marx se aboletava numa mesinha da praça de alimentação, acomodando suas sacolas de compras na cadeira vaga. Tudo nos conformes, eu com meu queijo quarteirão e meu guaraná bem brasileiro, desferi a primeira pergunta com voz trêmula:

ML: Aonde e em que ano o senhor nasceu?

Marx: Em Tréves, em 1818.

ML: Gostaria de falar sobre seus pais?

Marx: Preferia não falar. Meu pai era um advogado judeu convertido ao luteranismo, que queria que eu seguisse a carreira jurídica para a qual não tinha vocação. Ele implicava com meu gosto pela poesia. Dizia que não queria me ver transformado num poetinha qualquer. Minha mãe vivia me dizendo que em vez de ficar escrevendo o Capital eu devia conseguir algum para mim. Ambos me aborreciam com seus sermões sobre minha vida boêmia em Bonn, quando eu, ainda jovem, gastava um dinheirão e tomava pileques homéricos. Achava-os muito burgueses. Hoje entendo que as mães têm sempre razão.

ML: O senhor teve um grande amigo, Engels.

Marx: De fato, Engels muito me ajudou. Fez vários artigos que eu assinava quando escrevia no New York Daily Tribune, escreveu obras comigo, me auxiliou financeiramente inúmeras vezes. Um amigão sem o qual teria morrido de fome com  minha família, e que andei depois escorraçando, mas no final nos entendemos apesar dele ter ficado muito magoado. 

ML: E sua esposa?

Marx: Chamava-se Jenny von Westphalen e era de família nobre. Uma santa. Suportou nossa vida miserável, porque eu não trabalhava, sem se queixar. Dois dos nossos filhos e uma filha morreram porque eu não tinha recursos para tratá-los, e a Jenny agüentou firme.

ML: Mas esse devotamento de Jenny não o impediu de ter uma filha com a governanta Helena.

Marx: Prefiro não falar sobre o assunto.

ML: Então me fale sobre suas idéias. Resuma seu pensamento sobre religião.

Marx: a religião é o ópio do povo e eu sou ateu.

ML: O senhor dizia que a colonização dos países do Terceiro Mundo era a condição fundamental para a criação do capitalismo de onde sairia um proletariado revolucionário, continua achando isso?

Marx: Como sabe a professora, a teoria na prática é outra. Assim, deu tudo errado. Previ o capitalismo plenamente desenvolvido para a Alemanha e a Inglaterra, o socialismo saiu na Rússia e aí, danou-se. Quanto ao capitalismo dos “boas vidas” é um arremedo, seu projeto de socialismo possui teor medieval, não têm propostas concretas e suas revoluções só servem para que tiranetes se locupletem no poder. Estou desencantado. Para culminar, o capitalismo vive superando suas crises e tornou-se algo diferente daquele do meu tempo.  Chamam a isso de neoliberalismo. Vejo marxistas triviais, repetindo palavras de ordem. Eles não conhecem minhas obras e assim sua ideologia é indigente. Aliás, sempre disse para Engels que eu não sou marxista. Para piorar, os chamados marxistas são intelectuais burgueses, que aqui em São Paulo comem no Fazano. Já o proletariado não quer saber de mim, mas de melhorar de vida, como aliás aconteceu.

ML: O senhor é contra a globalização?

Marx: Como poderia ser se escrevi no final do “Manifesto do Partido Comunista : “Proletários de todo o mundo, uni-vos”?

ML: Bem, agradecendo a honra desta entrevista, gostaria que deixasse suas palavras finais para a esquerda global.

Marx: Jamais a ignorância serviu a alguém. E me diga a senhora, aqui servem cerveja Kaiser?

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Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga, escritora e professora universitária.

E-mail: mlucia@sercomtel.com.br

Que é que você quer com a filosofia?

Entrevista de Olavo de Carvalho a Fabíola Cidral

Jornal Vidaqui (São Paulo), 31 de agosto de 2000


Em primeiro lugar, o senhor poderia definir a filosofia?

É um cacoete universal dizer que a filosofia não se define, mas estou persuadido de ter encontrado uma boa definição, da qual nenhuma das filosofias existentes escapa e que não se aplica a nenhuma outra atividade cognitiva: Filosofia é a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Esta definição aplica-se inclusive às filosofias que negam o conhecimento ou que negam a unidade da consciência.

No seu Seminário de Filosofia o senhor ensina a prática da filosofia. O que é praticar filosofia?

No meu curso, filosofar é partir de um problema colocado pela vida real e, mediante sucessivos exames, tentar elevar-nos a um ponto de vista universalmente válido a respeito dele. Em seguida, descer novamente para examinar nossas atitudes práticas, morais, diante dele. Nestas subidas e descidas, o auto-exame se torna tão importante quanto o estudo objetivo do problema e é inseparável dele.

Qual a sua dica para quem deseja começar a estudar a filosofia?

Decidir, em primeiro lugar, se você quer a filosofia como simples profissão acadêmica, como autêntica disciplina intelectual, como guiamento integral da alma ou tudo isso junto. A profissão acadêmica é hoje o túmulo da filosofia e recomendo-a a quem tenha vocação de coveiro. Se você quer a filosofia como disciplina intelectual, certifique-se primeiro de que tem já uma boa cultura científica e humanística (sobretudo literária e histórica) e um amplo domínio do idioma. Em seguida, anote as perplexidades e os problemas que essa educação adquirida suscitou em você, e, uma vez confirmado que esses problemas são realmente problemas para você, que você tem um interesse vital neles, vasculhe os clássicos da filosofia para saber o que disseram a respeito. Nessa pesquisa pode ser útil um bom dicionário de filosofia, ou um repertório como o que Mortimer Adler e Mark Van Doren organizaram para a série “Great Books of the Western World”. Organize as respostas em ordem cronológica e, se o conjunto delas não satisfizer à sua demanda de respostas, busque formular suas próprias respostas pessoais, tratando de manter a discussão num nível compatível com o que foi alcançado pelos filósofos que trataram do assunto antes de você. Quando você tiver conseguido fazer isso com um único problema filosófico, por modesto que seja, você já será um autêntico estudante de filosofia. Se daí para diante não puder mais prosseguir sozinho, venha falar comigo e lhe darei mais umas dicas.

Quais os outros estudos que estão necessariamente ligados com a filosofia?

É o que eu vinha dizendo. A filosofia é uma reflexão sobre o conhecimento adquirido, e supõe, por isto, uma boa cultura pessoal, principalmente a cultura da imaginação (através das artes). Se eu fosse planejar a educação de um aluno ideal, primeiro eu abriria para ele os horizontes do imaginário, através do teatro, da literatura, do cinema, da música, dos mitos, das religiões, dos símbolos; depois o poria em contato com os debates públicos, a política, as leis, a constituição objetiva da sociedade. Quando ele chegasse a um ponto de saturação, com milhões de contradições se agitando na sua cabeça, aí sim começaria o aprendizado da crítica filosófica, complementado pelo estudo das ciências. Mas esse aluno ideal não existe, e essa gradação seriada, na prática, tem de ser feita de maneiras inversas, cruzadas e combinadas.

Qual o perfil das pessoas que freqüentam o seu curso?

Pessoas desiludidas com o ensino acadêmico da filosofia.

O senhor acredita que estudar filosofia pode mudar a vida de uma pessoa? A sua mudou?

Se o estudo da filosofia não mudar a pessoa – e quero dizer mudar para melhor –, é porque simplesmente não se realizou, ficou nas exterioridades, na imitação, na “cultura” filosófica. O estudo verdadeiro começa na hora em que, tendo obtido pela primeira vez uma solução pessoal válida para um problema filosófico, o aluno sente um repuxão na consciência, um apelo a se tornar melhor para ser digno daquilo que sabe.

Como foi a sua formação? Quando despertou este interesse pela cultura?

Meu interesse em saber nasceu na adolescência, diretamente suscitado por uma angustiante sensação de não estar entendendo nada – nem da minha vida, nem da conduta das pessoas em torno, nem do que me ensinavam na escola. Minha formação começou no autodidatismo, por absoluta impossibilidade de encontrar, na época, um ensino à altura do que eu necessitava. Mas não foi um autodidatismo de diletante, porque aos quinze anos eu já me preocupava com a questão mesma da auto-educação, lia muitos livros sobre o assunto e tentava manter meu aprendizado num nível comparável ao do que eu sabia existir nos melhores centros universitários, não só da época como também de outras épocas. Fica aí um conselho: se você quer se educar a si mesmo, tem de estudar primeiro a questão mesma da educação, para não cair num caos de leituras sem proveito.

Mais tarde, quando julguei ter chegado ao limite do que podia aprender sozinho, comecei a escrever para estudiosos consagrados, pedindo ajuda e orientação em questões específicas. Incomodei muita gente, no mundo todo, com minhas perguntas, e em geral fui muito bem recebido. Só tardiamente me interessei por um determinado curso universitário, então dirigido pelo Pe. Stanislavs Ladusans, um filósofo estoniano residente no Brasil. No fim de tudo você descobre que a única finalidade da educação é habilitar o sujeito a aprender sozinho, isto é, a ser um autoditada.

Quais os autores que mais o influenciaram?

Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz, Schelling, Husserl, René Guénon, Eric Voegelin, Xavier Zubiri, além, naturalmente, das escrituras sacras das várias tradições religiosas e também de algumas obras fundamentais da literatura (A Divina Comédia de Dante, as peças de Shakespeare) e das ciências humanas (os escritos de Max Weber, de Lipot Szondi, de Viktor Frankl, por exemplo).

Quais os filósofos da atualidade que o senhor admira?

Depois de Voegelin e Zubiri não apareceu mais nada de interessante na filosofia propriamente dita. Mas, nas ciências humanas, há esse esplêndido René Girard.

E qual o maior da história?

Aristóteles. Quanto mais tempo passa, maior ele fica. Hoje, na filosofia das ciências, Aristóteles é a grande novidade, depois que os biólogos o descobriram.

Como veio a idéia de lançar o primeiro livro?

Durante muito tempo eu mesmo publiquei meus livros, em tiragens pequenas, para um círculo de alunos e amigos. Em 1995, por insistência do Bruno Tolentino, lancei “O Jardim das Aflições” numa tiragem maior, por uma editora profissional. Aí, por uma coincidência, fui trabalhar na Editora da Faculdade da Cidade e lancei por lá “O Imbecil Coletivo”, que deu uma encrenca dos diabos e me lançou em polêmicas de imprensa, que não procurei mas das quais não fugi e nas quais, graças a Deus, me saí muito bem.

Como é a sua preparação para escrever uma obra? E um artigo?

Leio sempre de lápis na mão, anotando idéias, perguntas e objeções que a leitura me sugere. Faço também certos exercícios mentais, por exemplo o de tentar traduzir em imagens plásticas uma idéia abstrata, ou, ao contrário, o de tentar expressar em palavras certas impressões fugazes – sensações, recordações. Em seguida esqueço tudo e mudo de assunto. Meses depois a coisa toda reaparece organizada e límpida. Aí exponho minhas conclusões em aula e as submeto, com a ajuda dos alunos, a toda sorte de críticas, e faço novas leituras para tirar as dúvidas. Só então fixo a coisa por escrito. É um método complicado e apareceu sozinho, com a experiência. Não sei se serviria para outras pessoas, mas comigo funciona.

Para os artigos, não preciso me preparar, pois utilizo sobras das informações colhidas para as aulas. Apenas tenho de caprichar mais na redação, pois uma coisa é escrever para alunos, que me conhecem e já sabem situar tudo no contexto certo, outra coisa escrever para pessoas que nunca me viram mais gordo.

“O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras” foi a sua obra mais polêmica e mais vendida. Qual a causa do “Imbecil Coletivo”?

Eu ficava muito impressionado com a tolice cada vez maior dos nossos intelectuais, sobretudo no que eles escreviam em revistas e jornais de cultura. Peguei o hábito de toda semana, no começo da aula, a título de aquecimento mental coletivo, comentar essas coisas para a classe. Ao voltar para casa, escrevia o que tinha dito e na semana seguinte distribuía o escrito para os alunos. Assim fui colecionando, sem nenhuma intenção de livro, os capítulos que vieram a compor “O Imbecil Coletivo”.

É verdade que o senhor já recebeu ameaças de morte?

Ameaças, não. O que recebi foi informação de um “insider” arrependido, que me disse que um grupo a que pertencia já tinha mapeado meus trajetos e horários, já fazia ponto na esquina do meu prédio e aguardava o momento propício de armar uma tragédia. Contei a coisa a um amigo e ele me sugeriu que pusesse um aviso na minha homepage, para que o grupo soubesse que o plano tinha vazado. Um outro amigo, o ex-ministro da Cultura, Jerônimo Moscardo, embaixador do Brasil na Romênia, leu a coisa e me ofereceu um trabalho temporário em Bucareste. Fiquei lá uns meses até a coisa amansar e voltei.

Qual o seu maior sonho profissional?

Na área da investigação, completar as pesquisas que comecei. Como escritor, completar os livros em preparação, especialmente “O Olho do Sol” e “Ser e Poder”. Na educação, conseguir formar uma centena de intelectuais da pesada para eles educarem o Brasil de amanhã, se houver tempo. No jornalismo, quebrar o monopólio que domina a cultura brasileira e abrir espaço para um debate intelectual decente. Feitas essas coisas, pretendo me dedicar mais à vida espiritual, porque no fundo a única coisa interessante é Deus.

Quais leituras que o senhor indicaria para aqueles que queiram saber um pouco mais sobre Filosofia?

A “História da Filosofia” de Frederick Copleston e “Dialectics” de Mortimer J. Adler são um bom começo.

Quando será lançado o próximo livro? Qual o assunto?

Vou lançar em breve uma coletânea de ensaios, “História e Ilusão” e uma reedição de “O Jardim das Aflições”. Tenho também dois livros escritos pela metade, “O Olho do Sol”, sobre teoria do conhecimento, e “Ser e Poder”, filosofia política. Espero terminá-los logo.

Quantos artigos o senhor escreve por semana? Para quais jornais e revistas?

Escrevo quatro artigos mensais para “O Globo”, quatro para “Época”, dois para o “Jornal da Tarde”, dois para “Zero Hora” e um para “Bravo!”, além de colaborações esporádicas em revistas e jornais de estudantes.

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