Textos

Bruno Garschagen entrevista Olavo de Carvalho

“Ser conservador é não ser jamais o portador de um futuro radiante.” – Olavo de Carvalho

Bruno Garschagen, janeiro de 2008

Em 2007, quando comecei a colaborar com a revista Atlântico, de Lisboa, fiz uma lista de pessoas do Brasil que eu gostaria de apresentar aos portugueses leitores da revista. Era uma forma de restabelecer uma aproximação cultural entre os dois países que não se limitasse à esfera diplomática e governamental.

O primeiro entrevistado foi Diogo Mainardi. O segundo, Reinaldo Azevedo. O terceiro, Olavo de Carvalho, cuja conversa, feita por e-mail, reproduzo hoje integralmente. Por questões de espaço, a revista publicou uma parte pequena, embora substancial, da entrevista (o quarto entrevistado foi Nelson Ascher). Antes, porém, algumas considerações.

Considero Olavo um dos grandes responsáveis por reabrir na imprensa e na vida intelectual um espaço de debate que no Brasil já era tido como morto, enterrado, goodbye, so long, farewell. Foi nos anos de 1990 que o filósofo brasileiro inaugurou uma nova fase na filosofia e na discussão político-cultural em Terras de Vera Cruz.

Sua faceta notavelmente provocadora é apenas uma das pontas de um trabalho criativo de pesquisa e reflexão que não vejo similar no âmbito do debate público. Ao lançar obras filosóficas da envergadura de Aristóteles em nova perspectiva e O Jardim das Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César, entre outras, imprimiu no pensamento filosófico brasileiro um rumo completamente diverso da dominação doutrinária impingida pelos autoproclamados filósofos que eram (e são), apenas, professores universitários ligados à esquerda, de forma consciente ou não. No Brasil, a revolução gramsciana foi tão bem executada na educação, artes e meios de comunicação que a maior parte da população assimilou o espírito degenerado do esquerdismo sem sequer saber que fora estrategicamente convertida em inocente útil da causa.

Mediante aulas, cursos e divulgação de idéias pelos jornais, revistas, site e talkradio (www.olavodecarvalho.org), Olavo segue com seu trabalho abnegado de construir um pensamento original e tentar formar uma elite intelectual. Uma rápida googlada dá uma idéia, embora pálida, do efeito explosivo que esse trabalho vem provocando desde a década de 1990. Aos 60 anos, o filósofo mora com a família desde 2005 em Richmond, Estados Unidos, onde desenvolve seus estudos, principalmente, sobre a mente revolucionária e a paralaxe cognitiva, e trabalha como colunista do Diário do Commércio (SP) e Jornal do Brasil.

Olavo aceitou gentilmente responder algumas perguntas para a revista Atlântico, respostas essas que divido com vocês, não sem antes fazer um agradecimento especial à Roxane Andrade, mulher do filósofo, pessoa extraordinária e gentil que tenho a honra de ter como amiga. À entrevista:

O que é e há quanto tempo, Olavo, você desenvolve os estudos sobre a mentalidade revolucionária?
É uma longa história. Esse estudo surgiu da confluência mais ou menos acidental de duas investigações independentes que eu vinha desenvolvendo desde os anos 80. A primeira diz respeito às definições de direita e esquerda. Por um lado, havia uma tendência, na mídia e nos debates públicos em geral, de minimizar ou até negar explicitamente a diferença entre direita e esquerda. Essa tendência tornou-se ainda mais forte depois da queda da URSS. Por outro lado, a esquerda assumia cada vez mais orgulhosamente sua identidade de esquerda, ao mesmo tempo em que a sua influência política se tornava cada vez mais dominante. A direita, por seu lado, se encolhia numa timidez abjeta, negando sua própria existência, escondendo-se sob o rótulo de “centro” e copiando cada vez mais o vocabulário e a forma mentis da esquerda. Era claro que aí havia um problema, principalmente porque os mais obstinados negadores da diferença entre esquerda e direita eram provenientes da direita. O problema colocava-se portanto em dois níveis. Primeiro, o empenho de dissolver as diferenças entre dois discursos ideológicos não impedia que pelo menos uma das forças políticas correspondentes continuasse existindo historicamente como força atuante e perfeitamente identificável. Segundo: se a negação da diferença tencionava esvaziar a esquerda, diluindo a força atrativa do comunismo num vago e inofensivo “progressismo”, foi a própria direita que por meio desse artifício acabou se tornando vaga e inofensiva. Se era assim, era claro que havia um desnível entre a discussão pública e as forças políticas reais por baixo dela. A pergunta que surgia era: Em que consistem a direita e a esquerda como forças históricas objetivas, para além de seus respectivos discursos de autodefinição ideológica? Logo tornou-se claro que era impossível definir direita e esquerda em função de seus objetivos proclamados, que não só eram mutáveis, mas intercambiáveis.

E o que fez para avançar na investigação?
A idéia que me ocorreu então foi atacar o problema num nível mais profundo, buscando diferenças estruturais de percepção da realidade, das quais os sucessivos discursos historicamente registrados como de direita e esquerda pudessem se desenvolver com toda a sua variedade interna alucinante, sem prejuízo das estruturas básicas. Se eu conseguisse descobrir essas duas estruturas permanentes, a direita e a esquerda estariam delineadas por diferenças objetivas para muito além do horizonte de consciência dos indivíduos e organizações que personificavam essas correntes. Descobri várias dessas diferenças. A principal é a diferença na percepção do tempo histórico. A esquerda – toda a esquerda, sem exceção – enxerga o tempo histórico às avessas: supõe um futuro hipotético e o toma como premissa fundante da compreensão do passado. Em seguida, usa essa inversão como princípio legitimador das suas ações no presente. Como o futuro hipotético permanece sempre futuro, e por isso mesmo sempre hipotético, toda certeza alegada pelo movimento esquerdista num dado momento pode ser mudada ou invertida no momento seguinte, sem prejuízo, seja da continuidade do movimento, seja do sentimento de coerência por baixo das mais alucinantes incoerências.

Somando a isso a descoberta de Jules Monnerot de que a cada geração é a esquerda quem aponta e delimita a direita, nomeando como tal aqueles que lhe resistem, a direita aparecia portanto como o conjunto daqueles que, por mil motivos variados, resistem à inversão da razão histórica. Podem fazê-lo, por exemplo, por ser cristãos e acreditar que o “fim da história” é uma passagem para a eternidade e não um capítulo da história profana. Mas podem fazê-lo também por ser ateus de mentalidade científica que preferem moldar as hipóteses segundo os fatos e não alterar os fatos conforme as hipóteses. A segunda investigação foi da “paralaxe cognitiva”.

O que é a paralaxe cognitiva?
Assim denomino o deslocamento, às vezes radical, entre o eixo da construção teórica de um pensador e o eixo da sua experiência humana real, tal como ele mesmo a relata ou tal como a conhecemos por outras fontes fidedignas. Raro e excepcional na antigüidade e na Idade Média, esse deslocamento começa a aparecer com freqüência cada vez mais notável a partir do século XVI, dando a algumas das filosofias modernas a aparência cômica de gesticulações sonambúlicas totalmente alheias ao ambiente real em que se desenvolvem. Um exemplo claro é a teoria de Kant sobre a incognoscibilidade da “coisa em si”. Se não conhecemos a substância das coisas materiais, mas somente a sua aparência fenomênica, que esperança podemos ter de atingir um dia, a partir de indícios materiais, isto é, letras impressas numa folha de papel, a substância da filosofia de Immanuel Kant? Certamente o filósofo de Koenigsberg não se contentaria se apreendêssemos somente a aparência fenomênica da sua filosofia, a qual filosofia, nesse sentido, é radicalmente incompatível com o ato de escrever livros – e olhem que Kant os escreveu em profusão. Por mais coerente que seja consigo mesma, a filosofia de Kant é incoerente com a sua própria existência de obra publicada.

Outro exemplo: Karl Marx diz que só o proletariado pode apreender o movimento real da história, porque as classes que o precedem vivem aprisionadas na fantasia subjetiva das suas respectivas ideologias de classe. Mas, se é assim, por que o primeiro a perceber isso e a apreender o movimento alegadamente real da história foi o próprio Karl Marx, que não era proletário, não tinha nenhuma experiência da vida proletária e até a idade madura só conhecia os proletários por meio de leituras? Ou a ideologia de classe é inerente à posição social real do sujeito, ou é de livre escolha independentemente da posição social, mas neste último caso não é ideologia de classe de maneira alguma e sim apenas ideologia pessoal projetada ex post facto sobre uma classe, também de livre escolha. Os exemplos desse tipo são tantos que não espero jamais poder chegar a recensear senão uma amostragem ínfima deles. Inevitavelmente, a semelhança estrutural entre a paralaxe cognitiva e a inversão do tempo tinha de se tornar clara um dia, por mais lerda que fosse a minha cabeça.

Como conseguiu?
Substituí, no meu estudo, os termos “esquerda” e “direita” pelos de “revolução” e “reação”. Daí para diante, foi ficando cada vez mais evidente para mim a unidade histórica do movimento revolucionário desde as rebeliões messiânicas estudadas por Norman Cohn em The Pursuit of the Millennium até o Fórum Social Mundial. E aí foi que se tornou também claro, mesmo para o meu cérebro cansado e obscurecido, o centro da confusão entre os termos direita e esquerda – porque muitos movimentos tidos popularmente como “de direita” operavam, de fato, na clave revolucionária e não reacionária. De uma maneira ou de outra, esses movimentos acabavam jogando lenha na fogueira da revolução, e trabalhando, portanto, contra seus próprios ideais declarados. Captar e descrever a unidade do movimento revolucionário é desenhar claramente, perante os olhos dos homens “de direita”, a verdadeira natureza do seu inimigo permanente. É desfazer uma infinidade de confusões catastróficas, que determinaram, ao longo do tempo, outras tantas políticas suicidas. Se eu conseguir lançar nesse matagal toda a claridade que pretendo, creio que terei feito alguma coisa de útil, pelo menos para dar a Nosso Senhor Jesus Cristo um pretexto que ele possa alegar em minha defesa no Juízo Final.

A partir de qual momento e o que o levou a desenvolver o estudo da paralaxe cognitiva?
É outra história comprida, que vou abreviar dizendo que foi sobretudo uma motivação de ordem moral. Erneste Renan dizia que não conseguia pensar se não tivesse a garantia de que suas idéias não teriam a menor conseqüência no mundo real. Essa atitude sempre me inspirou horror. A cada frase que eu dizia em aula, sempre me ocorriam as perguntas: Até que ponto eu acredito mesmo nisso? E que direito tenho eu de persuadir os outros de alguma coisa em que eu mesmo não sei se acredito ou não? Não sei quando me ocorreu a idéia de fazer essas perguntas não só a mim mesmo, mas aos filósofos que eu lia. René Descartes, por exemplo, jura que a seqüência das suas “Meditações de Filosofia Primeira” não é um mero raciocínio, mas o relato de uma experiência real. Examinando essa experiência, notei que ela era psicologicamente impossível, exceto como dedução hipotética. Ou seja: Descartes tomava como sua história interior real o que era apenas uma construção lógica, confundindo o seu eu pessoal histórico com o eu filosófico abstrato. Isso tinha a estrutura exata de um fingimento histérico ou, se levado às últimas conseqüências, de um delírio esquizofrênico. Creio ter demonstrado isso em duas apostilas que vocês podem ler no meu website. Não é estranho nesse sentido que, ao expor suas teorias sobre a estrutura do mundo físico, isto é, sobre aquilo que pode haver de menos subjetivo, sobretudo no próprio sentido cartesiano da res extensa, ele tenha escolhido fazê-lo sob a forma de uma obra de ficção, o “Tratado do Mundo”. E isso justamente numa época em que o teatro como metáfora da realidade universal se tornava moda literária na Europa. A física de Descartes, afinal, era um conjunto de afirmações sobre a realidade objetiva, ou uma fantasia teatral? Descartes não o sabia, e eu muito menos.

À medida que fui descobrindo novos e novos exemplos desse fenômeno, acabei concluindo que quase toda a filosofia moderna se omitia de uma tomada de posição responsável que permitisse saber até que ponto seus criadores a levavam a sério como ciência objetiva ou apenas se deleitavam nela como num espetáculo de teatro. Quando chegamos a Nietzsche, a impossibilidade de decidir por uma coisa ou outra se torna total e invencível. Jamais saberemos “o que Nietzsche quis dizer precisamente”, pois toda sua obra é um convite à indistinção entre fantasia e realidade.

Já o mesmo não se pode dizer da filosofia de um Leibniz, de um Schelling (na velhice ao menos), de um Husserl ou de um Eric Voegelin. Esses estão tentando falar mortalmente a sério, mesmo quando erram. A exploração dessa diferença é que resultou na tese da paralaxe cognitiva.

De que modo age social e politicamente o portador da mente revolucionária e de que forma é possível combatê-la?
A mentalidade revolucionária não é só inversão do tempo: é inversão das relações lógicas de sujeito e objeto, dos nexos de causa e efeito, da relação entre criminoso e vítima, etc. Uma boa parte do meu estudo é dedicado ao recenseamento dessas inversões, psicóticas no sentido clínico mais estrito do termo. Elas são a essência do movimento revolucionário, mas essa essência pode se manifestar sob uma impressionante variedade de formas. É por isso que o movimento revolucionário não pode ser definido nem pelo conteúdo concreto dos seus objetivos declarados a cada momento, nem pelo discurso ideológico com que os legitima. É preciso sempre buscar, sob a variedade dessas aparências, a resposta à pergunta: Tal ou qual movimento político ou cultural, nas circunstâncias precisas em que atua, impõe ou não impõe a seus militantes e simpatizantes aquele pacote de percepções invertidas? Se a resposta é “sim”, então torna-se claro que se trata de um movimento inserido na corrente revolucionária. Se ele tem mais consciência ou menos consciência disso, é perfeitamente irrelevante para os resultados históricos objetivos que ele vai desencadear necessariamente por meio da inversão da consciência de populações inteiras.

Se o oposto de revolução é “reação” ou “conservadorismo”, um reacionarismo ou conservadorismo consciente não atacará o movimento revolucionário apenas na superfície dos seus ideais proclamados ou da sua conduta política ostensiva, mas na base mesma, que é a inversão revolucionária da consciência e das consciências. Como todo movimento revolucionário se arroga o papel de representante do futuro, ele só responde perante o tribunal do futuro, mas como esse futuro, por definição, é móvel, o seu autonomeado representante no presente não tem jamais de responder perante ninguém. A mentalidade revolucionária é, na base, a reivindicação de uma autoridade ilimitada, de um poder divino. As pretensões explícitas de tal ou qual líder revolucionário podem até parecer modestas e sensatas na formulação verbal que ele lhes dê no momento, mas no fundo delas está sempre essa reivindicação, essa exigência implícita. Os movimentos revolucionários não criaram as grandes ditaduras genocidas do século XX por um desvio dos seus belos ideais ou por um acidente histórico qualquer. Eles as criaram por necessidade intrínseca da própria dialética revolucionária, que sempre terminará em totalitarismo sangrento, seja por um caminho, seja por outro caminho aparentemente inverso.

É nesse ponto, precisamente, que a mentalidade revolucionária tem de ser atacada de maneira implacável e incansável: ela é demência megalômana na sua essência mesma. Ela nunca pode produzir nada de bom. Ela é a mentira existencial mais vasta e profunda que já infectou a alma humana desde o início dos tempos. Ela é crime e maldade desde a sua raiz mesma – e é essa raiz que tem de ser cortada, não as ramificações mais aparentes apenas.

A boa notícia é que o movimento revolucionário não é uma constante na história humana. Ele apareceu numa dada civilização e num dado momento do tempo. Ele teve um começo e terá um fim. Apressar esse fim é o dever de todos os homens de bem.

Qual o reflexo do desenvolvimento da mentalidade revolucionária sem uma devida reação?
O principal e mais desastroso reflexo é que o próprio impulso conservador, um dos mais básicos e mais saudáveis da humanidade, acaba por não ter meios próprios de expressão e por copiar as estratégias e táticas revolucionárias, infectando-se da mentalidade que desejaria combater. Só para dar um exemplo, quando você rejeita alguma proposta revolucionária, logo lhe perguntam: “Mas o que você propõe em lugar disso?” Aí o conservador começa a inventar hipotéticas soluções conservadoras para todos os problemas humanos, e perde a autoridade da prudência, passando a discursar na clave psicótica das “propostas de sociedade”. Ser conservador é não ter nenhuma proposta de sociedade, é aceitar que a própria sociedade presente vá encontrando pouco a pouco a solução para cada um dos seus males sem jamais perder de vista o fato de que, para cada novo mal que seja vencido, novos males aparecerão. Ser conservador é não ser jamais o portador de um futuro radiante, é ser o porta-voz da prudência e da sabedoria. Ser um conservador é saber que os limites da capacidade humana não desaparecerão só porque Lênin mandou ou porque Trotski disse que no socialismo cada varredor de rua será um novo Leonardo da Vinci.

Seus estudos mostram como operou a mentalidade revolucionária em Portugal?
Para responder a essa pergunta seria preciso sondar mais cuidadosamente o antigo regime. O salazarismo foi uma estranha mistura de conservadorismo cristão com elementos extraídos do fascismo, o qual é sem a menor sombra de dúvida uma ideologia revolucionária. A característica das ideologias revolucionárias é ter um “projeto de sociedade”, em vez de respeitar a sociedade existente e tentar aperfeiçoá-la na medida modesta das possibilidades humanas e com a cautela que a prudência recomenda.

Qualquer nação que tenha se infectado profundamente da mentalidade revolucionária e tenha dado aos seus valores conservadores uma formulação política revolucionária corre o risco de estar sempre à mercê de novos projetos revolucionários, pelo simples fato de que perdeu de vista a noção de “ordem espontânea”, que é a essência mesma da democracia e do conservadorismo. Que é ordem espontânea? É o conjunto de soluções aprendidas ao longo do tempo. É uma ordem espontânea porque não foi imposta por ninguém. É ordem porque tem um senso arraigado da própria integridade e rejeita instintivamente toda mudança radical. Mas é também aprendizado, isto é, absorção criativa das situações novas por um conjunto que permanece conscientemente idêntico a si mesmo ao longo dos tempos por meio de símbolos tradicionais constantemente readaptados para abranger novos significados.

Examinem bem e verão que ordem democrática é precisamente isso e nada mais. Se, ao contrário, um grupo imbuído do amor a valores tradicionais tenta deter a mudança, ele está introduzindo na ordem espontânea uma mudança tão radical quanto o grupo revolucionário que deseja virar tudo de pernas para o ar, pois o que esse alegado conservadorismo deseja é imortalizar no ar um momento estático de perfeição hipotética. Se esse momento, na imaginação dele, expressa os valores do passado, isso não vem ao caso, porque na prática política esse ideal será um “projeto de futuro” tanto quanto o ideal revolucionário. Uma sociedade só embarca no projeto revolucionário quando perdeu todo o respeito por si mesma. Um respeito que, entre outras coisas, implica o amor aos valores do passado como instrumentos de compreensão e ação no presente, não como símbolos estereotipados de uma perfeição ideal no céu das utopias.

E onde entra o salazarismo nesse história?
Não tenho a menor dúvida de que Antonio de Oliveira Salazar foi um homem honesto e um grande administrador. Mas o salazarismo foi infectado da mesma ambição de controle burocrático total que é característica do movimento revolucionário. Quatro décadas desse regime, e Portugal não tinha mais conservadores genuínos em número suficiente. Os poucos que havia fizeram um esforço heróico para dar à nação a verdadeira estabilidade democrática, mas a ânsia das soluções totais estava, por assim dizer, no ar — e, dissolvido o salazarismo, só quem podia tirar proveito dela era a esquerda.

Não desejo dar palpites na política interna de um país que da minha parte só merece aquele amor cheio de reverência que a gente tem por um avô navegante e guerreiro. Não levem a mal essa minha análise, que é só um esboço sem pretensões. Espero um dia poder estudar mais profundamente a história de Portugal e tirar um pouco das minhas dúvidas.

Há alguma particularidade sobre o que houve aqui?
Há algo de trágico na história de Portugal, pois os filósofos escolásticos portugueses foram os primeiros a compreender a verdadeira natureza do capitalismo, séculos antes de Adam Smith, mas, quando se inaugurou a temporada de caça aos escolásticos, com o iluminismo, ela não trouxe consigo a modernização capitalista, e sim um burocratismo centralizador sufocante. Por uma triste ironia, os adversários do centralismo pombalino eram os jesuítas, eles também revolucionários, que sonhavam com uma república socialista de índios na América do Sul. Posso estar enganado, mas o drama de Portugal é o mesmo de “A Montanha Mágica” de Thomas Mann: um jovem bom e promissor aprisionado entre dois falsos gurus: um iluminista autoritário com discurso modernizador e um jesuíta comunista.

E no Brasil?
O que em Portugal foi tragédia, no Brasil é uma palhaçada sangrenta. Se os portugueses têm uma consciência aguda da sua própria história e constantemente se interrogam sobre o seu passado, os brasileiros não conseguem se lembrar nem do que aconteceu quinze dias atrás, e não aprendem nada, absolutamente nada, com a experiência histórica. Mesmo porque não querem saber dela. Se não querem saber nem do presente, como vão entender o passado? O exemplo mais deprimente do desprezo brasileiro pelo conhecimento – e não digo do conhecimento superior, mas do simples conhecimento dos fatos da atualidade – foi a obstinada recusa geral de tomar ciência de um fenômeno chamado “Foro de São Paulo”. Coordenação estratégica do movimento comunista no continente, reunindo em seu seio partidos legais em pé de igualdade com organizações de terroristas e narcotraficantes, o Foro é a mais poderosa organização política que já existiu na América Latina. Tudo o que todos os partidos de esquerda, armados e desarmados, fizeram ao longo dos últimos dezessete anos foi ali tramado e decidido. E durante esses dezessete anos toda a mídia brasileira, todo o establishment acadêmico, toda a classe política, todo o empresariado, todos os formadores de opinião se recusaram obstinadamente a ouvir falar do assunto. É um fenômeno inédito, único na história da estupidez universal. É claro que uma opinião pública formada sob a influência dessa casta de jumentos não pode ter nenhuma visão da realidade. Vive de sonhos, de desconversas, de tagarelice oca e dispersão de suas melhores energias em esforços vãos para resolver problemas não raro inexistentes, enquanto à sua volta o caos e a violência vão tomando conta de tudo e ninguém sequer se dá conta de que, através do Foro de São Paulo, os narcotraficantes e terroristas já estão no poder. A proposta revolucionária é, para o brasileiro de hoje em dia, o substitutivo completo e satisfatório da realidade. Nas últimas décadas, à medida mesma que aquela entidade invisível dominava o continente inteiro com seu segredo de Polichinelo, a cultura superior era totalmente destruída no Brasil, nossas crianças tiravam sempre os últimos lugares nos testes internacionais e a violência crescia até chegar aos cinqüenta mil homicídios por ano – mais ou menos duas guerras do Iraque. Já tive muita pena dos meus conterrâneos, agora não tenho mais. Eles fizeram uma opção preferencial pela ignorância. Seu sofrimento não é injusto.

Você tem sido um crítico do liberalismo e, concomitantemente, um defensor do conservadorismo. Esse conservadorismo que você defende é herança do moderno modelo inglês inaugurado por Edmund Burke?
Eu não diria só inglês, mas anglo-americano. A Inglaterra e os EUA foram os países do Ocidente que mais profundamente se impregnaram do sentimento de respeito pelas tradições, o qual no fim das contas é respeito pelo povo. É verdade que mesmo nesses dois países os planejadores alucinados de sociedades perfeitas estão tentando, e com freqüência conseguindo, destruir esse sentimento. Não sei em que medida os ingleses percebem o mal revolucionário que os vem acometendo nos últimos anos, mas os americanos estão acordadíssimos. Ainda que sem uma clareza suficiente quanto à unidade histórica do movimento revolucionário, os conservadores americanos sabem mais ou menos onde está o mal. E, o que é melhor ainda, pouquíssimos dentre eles se deixam levar pela tentação do que poderíamos chamar de “conservadorismo revolucionário”. Eles nunca leram o brasileiro Jackson de Figueiredo, mas se o lessem endossariam com entusiasmo esta fórmula dele: “O de que precisamos não é uma contra-revolução. É o contrário de uma revolução”.

Quais as principais virtudes do conservadorismo?
A autoconservação é a necessidade básica dos seres vivos. A própria capacidade de crescimento, desenvolvimento e adaptação a novas circunstâncias não é senão o instinto de autoconservação visto sob seu aspecto ativo e – nos seres humanos – criativo. Goethe dizia que aquele que sabe guardar, proteger e conservar terá sempre, no fim, a melhor parte. (Goethe é, aliás, um dos grandes pensadores do conservadorismo, tão grande quanto Burke. Shakespeare é outro, como também Dante, Balzac e Dostoievski.)

Veja um exemplo: quando você aprende uma língua, o que é mais importante, adquirir novas palavras ou conservar as velhas na memória? As novas só fazem sentido em função das velhas, mas estas são úteis em si mesmas, ainda que você não lhes acrescente mais nenhuma. Todo desenvolvimento deve buscar em primeiro lugar a conservação dos bens adquiridos, e só em segundo lugar a conquista de novos bens. Jean Fourastié observava que, se ao lado da história dos progressos do conhecimento fizéssemos também a história da ignorância, o recenseamento e reconquista dos conhecimentos perdidos, o progresso seria muito maior.

Para aumentar o patrimônio é preciso antes possuí-lo e conservá-lo. Antes de poder começar a desenvolver-se por sua própria iniciativa, uma criança tem de ser cuidada, protegida, conservada por vários anos. Assim também a sociedade. A riqueza e a cultura perdem-se com uma facilidade impressionante, e as perdas maiores ocorrem sobretudo quando das mutações revolucionárias. Não é coincidência que nenhum regime tenha conseguido matar de fome tanta gente — e com tanta velocidade — quanto os regimes revolucionários que alegam acabar com a fome. Para acabar com a fome, a condição número um é não fazer uma revolução, não destruir bens, não criar a desordem geral por meio da implantação forçada de uma nova ordem — mesmo que essa nova ordem seja nominalmente inspirada em valores tradicionais e conservadores. Por isso é que regimes como o fascismo ou o radicalismo islâmico não são de maneira nenhuma conservadores e sim revolucionários. Eles alegam valores aparentemente conservadores, mas buscam implantá-los por meio da mutação revolucionária que acaba por destruir esses valores.

O perdão, a tolerância, a paciência, a sabedoria e, sobretudo, o respeito pela fragilidade humana, tais são as virtudes em que se baseia o conservadorismo.

Lembro você ter escrito que, ao dialogar com alguns liberais, ao final da conversa constata que o sujeito é conservador com idéias liberais. Por quê isso acontece?
Isso nasce de um vício de linguagem. Como a mídia brasileira chama de “conservadores” os grupos de interesses sem nenhuma ideologia própria, o que é totalmente errado, a direita corrigiu um erro com outro erro, dizendo-se “liberal” em vez de conservadora. Da minha parte, uso sempre o termo liberalismo no seu sentido histórico de um capítulo do movimento revolucionário.

Às vezes, quando critico o liberalismo nesse sentido, alguns conservadores brasileiros acham que estou falando mal deles. O liberalismo, no sentido em que uso o termo, acredita que a liberdade é um princípio fundante da política, mas a liberdade é apenas uma regra formal, que, elevada à condição de princípio, resulta no esvaziamento relativista de todos os valores, fomentando a mutação revolucionária e a extinção da própria liberdade. A diferença entre princípio substantivo e regra formal é que o primeiro pode ter sua aplicação estendida indefinidamente sem levar a contradições, ao passo que a regra formal, se aplicada além de um certo limite, acaba por se negar a si mesma. A liberdade é uma regra formal porque ela sempre necessita de outras que a definam e não funciona fora delas. Os liberais — no sentido em que uso o termo — não entendem isso.

USP é templo de vigarice

Folha de S. Paulo, 24 de setembro de 2006

LIVROS

Polemista relança “O Imbecil Coletivo”, ataca intelectuais paulistas e culpa EUA pela “proliferação de tipinhos como Lula’

Para autor, quem ainda tem fibra para ser conservador está fora da política, seja por falta de vocação, seja por uma questão de higiene

“USP é templo de vigarice”, diz Olavo

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

EDITOR DA ILUSTRADA

Reunião de textos do jornalista, filósofo e polemista Olavo de Carvalho, “O Imbecil Coletivo” está sendo relançado. É o primeiro de um conjunto de três volumes que o autor pretende editar. O livro, que completa dez anos, ataca o pensamento de esquerda que seria hegemônico no meio cultural do país e, sem torneios, sustenta argumentos conservadores ou de direita. Desde 2005, Olavo mora nos EUA, em Richmond, perto de Washington. Nesta entrevista, feita por e-mail, ele dispara contra intelectuais da USP, considera que os tucanos são responsáveis pela ascensão do petismo e diz que também existe um imbecil coletivo direitista.

FOLHA – Como o sr. avalia o discurso de alguns intelectuais históricos do PT, como a filósofa Marilena Chaui, que procura relativizar a questão ética na política? O mesmo tema, de certa forma, havia sido proposto pelo filósofo tucano José Arthur Giannotti.
OLAVO DE CARVALHO –
 Quando essa gangue uspiana começou a “campanha pela ética na política”, uma década e meia atrás, já anunciei que era tudo uma empulhação destinada a entregar o poder total à esquerda, usando e prostituindo a indignação moral do povo com os miúdos corruptos da época para encobrir a montagem da maior máquina de corrupção de todos os tempos.
Os tucanos estão hoje com choradeira, mas eles são amplamente culpados pela ascensão do petismo, do qual foram cúmplices na “estratégia das tesouras” calculada para suprimir da política todas as demais correntes e dividir o bolo entre os dois partidos nascidos da USP. O que quer que venha da boca de Chauis e Giannottis é sempre camuflagem, pose, hipocrisia. Essa gente já deveria estar embalsamada faz muito tempo em alguma espécie de IML intelectual. Cansei de ouvir besteira. “Intelectual de esquerda”, seja tucano, petista ou qualquer outra porcaria, tem para mim a confiabilidade de uma nota de R$ 32.
A USP sempre foi o templo da vigarice intelectual, e o sujeito que começa com safadeza no campo das idéias acaba sempre inventando algum mensalão para se remunerar do esforço de embrulhar a platéia. Os tucanos ainda podem se redimir do mal que fizeram. A carta de 7 de setembro do ex-presidente Fernando Henrique é um bom começo, mas é preciso um arrependimento mais fundo e uma tomada de posição mais clara.
Não adianta querer um “choque de capitalismo” quando ao mesmo tempo se cortejam “movimentos sociais” cujos programas “politicamente corretos” exigem sempre maior controle estatal da sociedade. Um capitalismo assim acaba virando capitalismo chinês.

FOLHA – O governo Lula é de direita ou de esquerda? Quais são no seu entender os traços que distinguem, hoje, esquerda e direita?
CARVALHO –
 Esquerda é toda corrente que legitima suas pretensões ambiciosas em nome de um futuro hipotético. Direita é quem legitima promessas modestas com base na experiência passada. No Brasil, só quem tem alguma experiência bem-sucedida para ensinar são os remanescentes do governo Médici que fizeram o país crescer 15% ao ano. Estão todos nonagenários ou irrevogavelmente falecidos. Como ninguém absorveu sua lição, não há mais direita no Brasil. Há apenas diferentes graus de esquerdismo, desde o histerismo fanfarrão do PSOL até as afetações oportunistas de políticos ideologicamente inócuos que acham bonito posar de politicamente corretos, como esse ridículo governador de São Paulo. Direita, conservadorismo genuíno, é a síntese inseparável dos seguintes elementos: liberdade de mercado, valores judaico-cristãos, cultura clássica, democracia parlamentar e império das leis. O resto é comunismo, fascismo, nazismo, anarquismo, tecnocracia, “socialismo light”, o museu inteiro do besteirol político.
No Brasil, quem ainda tem fibra para ser conservador está fora da política, seja por falta de vocação, seja por uma questão de higiene. O Brasil ainda tem alguns bons líderes empresariais e estudiosos de campos diversos, e acho um sacrifício admirável, mas inútil, que homens bons larguem suas ocupações produtivas para arriscar a sorte numa política eleitoral que virou uma disputa interna no galinheiro esquerdista -cada galinha, é claro, chamando as outras daquilo que no seu entender é a pior das ofensas: “Direitistas!”

FOLHA – O pensamento de direita ganha fôlego no mundo contemporâneo. Nesse contexto, podemos falar na emergência de um imbecil coletivo de direita?
CARVALHO –
 Sem a menor sombra de dúvida. O triunfalismo capitalista subseqüente à queda da URSS produziu bibliotecas inteiras de utopismo tecnocrático-financeiro globalista que o 11 de Setembro reduziu a pó, mas do qual muitos cérebros de fantasmas ainda se alimentam nos EUA. A marca inconfundível do imbecil coletivo direitista é a negação de que existam direita e esquerda. O típico doutrinário dessa corrente se coloca numa torre de marfim supra-ideológica, de onde acredita que pode resolver tudo na base da grana. A impotência sempre gera o delírio de onipotência. Praticamente toda a política externa americana da última década e meia se baseou nessa estupidez, e o resultado dela é a proliferação de tipinhos como Lula, Chávez, Morales e “tutti quanti”.

FOLHA – Como o sr. avalia a declaração do papa sobre o Islã e as reações contrárias? O sr. crê em algo como “choque de civilizações?”
CARVALHO –
 Dizem que há um conflito entre o Islã e o Ocidente. Mas qual Ocidente? O Ocidente religioso, judaico-cristão, ou o Ocidente revolucionário, ateu, materialista? Este último está obviamente do lado dos terroristas, e é ele mesmo quem alardeia o slogan do “conflito de civilizações” para camuflar a guerra de vida e morte que, por meios diversos e aparentemente inconexos, se move contra os judeus e os cristãos no Islã, nos países comunistas e no próprio Ocidente capitalista.
O número de cristãos inocentes e desarmados que vêm sendo assassinados no Sudão, no Vietnã, na Coréia do Norte e na China é cem vezes maior do que a quantidade de vítimas civis da Guerra do Iraque, e a mídia chique inteira, incluindo este jornal, não diz uma palavra contra isso. Nem noticia. Ao mesmo tempo, leis draconianas para suprimir a liberdade de expressão religiosa são adotadas na Europa e nos EUA, mas jamais aplicadas aos muçulmanos locais. É esse o “Ocidente” que se pretende defender contra o Islã? Tudo isso é de uma falsidade monstruosa. Não há uma guerra de civilizações, mas duas guerras superpostas, uma do Islã contra o globalismo ocidental, outra de ambos (e da esquerda internacional) contra a civilização judaico-cristã.

FOLHA – E quanto ao papa?
CARVALHO –
 O discurso em Regensburg não foi sobre o Islã. Este foi mencionado como gancho para a questão central, que era a necessidade de uma teologia racional, já mil vezes reiterada pela Igreja. As afirmações do imperador Manuel 2º, o Paleólogo, citadas no discurso foram três: 1) O Islã adotou a violência como método legítimo de conversão. 2) Essa foi a única novidade religiosa trazida pelo Islã. 3) Converter por meio da violência é errado: a conversão deve-se alcançar por meio da persuasão racional.
A terceira afirmativa é analisada extensamente no restante do discurso. As duas primeiras foram citadas de passagem só para mostrar o contexto histórico da discussão e em seguida deixadas de lado. Ao concentrar seus ataques numa delas, os críticos muçulmanos e os não-muçulmanos anticristãos mostraram incapacidade ou falta de disposição de distinguir entre a menção casual à fala de um terceiro e a opinião formalmente expressa do orador. São burros, desonestos ou ambas as coisas.
Mas o papa também não foi muito hábil nas explicações que deu para acalmar os nervosinhos. Ao dizer que a citação de Manuel 2º não expressa sua opinião pessoal, ele deixou uma perigosa ambigüidade no ar, pois as três asserções formais contidas nessa citação são totalmente independentes entre si, e não é possível que Bento 16 concorde ou discorde das três uniformemente.
A primeira é simples expressão de um fato universalmente reconhecido, e o papa, mesmo que não estivesse interessado em tomá-la como tema do seu discurso, como de fato não tomou, não poderia discordar dela de maneira alguma.
A segunda, na mesma medida, é totalmente falsa. O Islã trouxe uma infinidade de inovações, entre as quais a mais espetacular de todas é ser o primeiro e único direito penal religioso destinado a aplicar-se à humanidade inteira e não só a uma nação em particular. Isso constitui a diferença específica do Islã, e sem isso a sua pretensão de ser uma revelação nova e autônoma perderia o seu argumento mais forte.
A terceira é o simples resumo de uma doutrina tradicional da Igreja, e o papa não poderia discordar dela. Em suma, Bento 16 só pode e aliás deve estar em discordância com Manuel 2º quanto à segunda afirmação, um erro histórico perdoável na Idade Média, mas que hoje em dia seria intolerável mesmo num estudante. O único ponto do discurso papal que poderia ferir a honra dos muçulmanos é um erro que o orador não endossou nem poderia ter endossado, sendo o erudito que é.

 

Um filósofo na mídia é um jesuíta entre antropófagos

Entrevista de Olavo de Carvalho ao site Anedota Búlgara

3 de janeiro de 2002

1)    Qual deve ser o papel de um filósofo na mídia? E, neste sentido, o que representa a sua atuação na imprensa escrita?

Um filósofo na mídia é um pregador “in partibus infidelium” — um jesuíta entre antropófagos. Não entendem uma palavra do que ele diz e ele ainda se arrisca a ser comido vivo. Em outras épocas, filósofos-jornalistas como Ortega y Gasset, Gabriel Marcel e Raymond Aron podiam contar com um público habilitado, que compreendia seus argumentos. Hoje é preciso, ao mesmo tempo, argumentar e ensinar ao público o que é um argumento. Pior ainda: quanto mais despreparado, mais o público de hoje é arrogante e palpiteiro. O que recebo de cartas pretensiosas, sem pé nem cabeça, é uma grandeza.

2)    A revista Época transformou recentemente a sua coluna semanal em mensal, sem maiores explicações aos seus leitores. O que de fato aconteceu, e a que o senhor atribui essa atitude da revista?

O que aconteceu foi que o Augusto Nunes, fundador da revista, foi para o Jornal do Brasil, e o novo diretor, Paulo Moreira, por algum motivo que nem ele sabe, não gosta de mim. Ele prefere um tal de “pluralismo”, que consiste, segundo parece, na pessoa da sra. Maria Aparecida de Aquino. Esta senhora, que pensa igual a todo mundo, passou a escrever três vezes por mês, e eu uma. Não me pergunte que pluralismo é esse que diminui o espaço da opinião minoritária para aumentar o da majoritária. Há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia.

Para fazer a mudança, o sr. Moreira mentiu três vezes, como S. Pedro, habilitando-se portanto ao Papado. Primeiro, disse que a mudança de semanal para mensal seria feita em todas as colunas. Foi feita só na minha. Segundo, escondeu dos leitores as 180 cartas de protesto contra o corte do meu espaço. Terceiro, escondeu-as de mim, deixando de me enviar suas cópias, como era de hábito na revista. Eu só soube delas porque os próprios remetentes as repassaram ao meu e-mail. As cartas enviadas só à revista, sem cópia para mim, permanecem ignoradas. O total das cartas, assim, provavelmente vai muito além de 180.

Como se isso não bastasse, o sr. Moreira investiu-se ainda das funções de censor, inconfundivelmente pontifícias, e cortou do meu primeiro artigo mensal uma frase que ele, por motivos que só a ele dizem respeito, julgou aplicar-se à sua pessoa: “O público não é idiota. Idiotas são certos diretores de redação que imaginam que, controlando uma revista, controlam a consciência do público.” Depois disso, apelidei-o definitivamente de Paulo Moleira.

Felizmente, a atitude do sr. Moleira não expressa o pensamento geral das Organizações Globo, que têm me tratado com a maior dignidade e cortesia. Minha coluna semanal em O Globo, aos sábados, continua saindo normalmente.

3)    Nas acaloradas controvérsias que seus artigos provocam, o senhor freqüentemente é acusado de pedante ou arrogante. O que o senhor diria aos que acham o seu estilo excessivamente agressivo?

Diria que são analfabetos funcionais. Não sabem distinguir entre a força de uma prova e a violência de uma agressão. Acuados pela prova, que tapa suas boquinhas, dizem-se agredidos, saem choramingando e batendo pezinho. É normal a esse tipo de mentalidade sentir todo apelo aos fatos como uma inaceitável imposição autoritária.

4)    Autores como Gore Vidal e Harold Bloom têm afirmado que vivemos em uma era pós-literária, e, mais ainda, que muito em breve os verdadeiros leitores irão compor uma irmandade marginal. Qual a sua percepção sobre o desaparecimento dos verdadeiros leitores?

Vidal e Bloom são dois pentelhos, mas, no caso, têm razão. O desaparecimento dos leitores segue-se ao dos escritores. Se vocês me permitem citar um artigo meu recentemente publicado, “O público ‘letrado’ já perdeu até mesmo a distinção entre um escritor e um sujeito qualquer que escreve qualquer coisa. Um escritor é membro de uma confraria artesanal milenar. Ele conhece os instrumentos expressivos criados por uma tradição que vem de Homero a Naipaul, e no que ele escreve se percebe, nas entrelinhas, o diálogo com seus parceiros de ofício, por cima das fronteiras de épocas. Um sujeito qualquer que escreve, mesmo que o faça direitinho, não dispõe senão dos instrumentos usuais da mídia — ele não dialoga senão com os tagarelas do momento: quando morrerem, sua escrita morrerá com eles. Essa distinção, que deveria ser a base da educação literária nas escolas, já se tornou imperceptível à média dos leitores ‘cultos’. Daí o fenômeno espantoso dos nomes mais cogitados para a última vaga aberta na Academia Brasileira. Não havia entre eles um único escritor: apenas sujeitos que escreviam direitinho. E ninguém notava a diferença.”

Mutatis mutandis, um leitor autêntico é, precisamente, o sujeito capaz de perceber essa diferença. E cadê esse leitor?

Uma das muitas causas do seu desaparecimento, no nosso país, é que a formação dos jovens leitores — e falo dos melhores — se faz sob uma influência predominantemente anglófona. Ninguém lê mais em francês, espanhol, italiano ou latim. Muito menos lê os clássicos portugueses. Como os princípios da estilística inglesa são intransponíveis para o português, esses leitores acabam perdendo o ouvido para o próprio idioma. Quando lêem, não captam as nuances de sentido nem a ordem musical. Quando escrevem, imitam trejeitos ingleses que não dão certo em português e terminam em pura macaquice. E não falo só de trejeitos lingüísticos, mas psicológicos — de certos cacoetes de percepção que são típicos da intelectualidade norte-americana.

5)    Por que o senhor interrompeu seus estudos sobre astrologia? E como desfazer o preconceito que há em torno dela?

Nos meus estudos de astrologia, cheguei a um impasse. Criei uma vasta estratégia metodológica para transformar o assunto em matéria de estudo científico, mas, uma vez erguido o arcabouço teórico, era impossível passar à fase da pesquisa empírica, que requeria muita gente, muito tempo e muito dinheiro. Então decidi abandonar o assunto até segunda ordem.

Não me preocupo com o preconceito contra a astrologia, porque a astrologia que se pratica hoje, inspirada pela ideologia da New Age, é ela própria um conjunto de preconceitos.

Não há debate sério entre os que dizem ser a astrologia uma ciência e os que respondem que é uma pseudociência. Ela não é nem uma coisa nem outra: é um problema científico, que aguarda um tratamento à altura. Não será com proclamações de fidelidade ou com anátemas acadêmicos que vamos resolver esse caso.

6)    Como conciliar individualismo e tradições religiosas?

O individualismo, em si, não tem sentido, porque a individualidade humana não é causa sui: ela depende de um quadro cultural e político que, justamente, só as tradições podem criar. Vocês podem averiguar, historicamente, que a consciência de individualidade humana, como a conhecemos hoje, esteve ausente em toda a humanidade anterior ao cristianismo. Um primeiro vislumbre surge na Grécia, mas só entre intelectuais (é o assunto do livro maravilhoso de Bruno Snell: A Descoberta do Espírito). Solta a si mesma, a individualidade se decompõe em fragmentos cada vez menores e se dissolve atomisticamente nas forças ambientes. O máximo de liberdade aparente conduz aí à total escravização. A reivindicação de total liberdade é uma reivindicação de poder total, é um paroxismo de auto-exaltação narcisista que termina em impotência, loucura e crime. Estudem a vida de William Burroughs, o ídolo da Beat Generation dos anos 50, que começou reivindicando a total liberdade, passou à prática contumaz da pedofilia e terminou estourando o cérebro da própria esposa numa brincadeira de Guilherme Tell com um revólver calibre 38.

Por outro lado, as tradições religiosas, na sua versão mais popular, às vezes procuram controlar pela imposição forçada de padrões de conduta certas situações complexas que as próprias autoridades religiosas não compreendem. Ora, o primeiro dever da autoridade religiosa é magisterial, é ensinar. Como obedecer a um guru que não compreende nossa situação nem a dele próprio?

A obrigação do indivíduo é reconhecer que sua individualidade não é um absoluto metafísico, mas um dom recebido das tradições. A obrigação dos representantes das tradições é aquela que Jesus assim formulou: “Não coloqueis sobre as costas dos outros um fardo que vós mesmos não podeis carregar.” Acho que entre as necessidades autênticas do indivíduo e a pureza das tradições há uma via média que deve ser reencontrada a cada passo, na prática da vida. Nada substitui a sabedoria.

7)    O senhor é católico e critica duramente a Teologia da Libertação. Qual a sua impressão sobre a ala mais conservadora da igreja, do movimento de Renovação Carismática e do Padre Marcelo Rossi?

Vocês estão enganados. Renovação Carismática e Deus É Dez não são nenhuma ala conservadora da Igreja, mas apenas os substitutivos ad hoc criados pela mídia com base na total ignorância do que se passa na Igreja. Não creio que haja um movimento conservador na Igreja além da “Comunhão e Libertação” de D. Luigi Giussani. Os outros movimentos são apenas espuma na superfície — uma imagem caricatural do conservadorismo, muito conveniente aos que o odeiam.

Quanto à Teologia da Libertação, não é católica nem cristã nem mesmo num sentido remoto da palavra. É uma farsa comunista, e nada mais. Leiam o livro de Ricardo de La Cierva, Las Puertas del Infierno. La Historia de la Iglesia Jamás Contada, e saberão do que estou falando.

8)    O senhor é um crítico implacável da formação universitária no Brasil atual. Considerando que a vida acadêmica esteja contaminada pela filosofia de resultados políticos, que conselhos o senhor daria para quem esteja ingressando numa universidade?

Sair dela o quanto antes ou comprar uma máscara contra gases. Há na minha homepage um texto (“Crise da universidade ou eclipse da consciência?”, http://www.olavodecarvalho.org/textos/dines2.htm) em que explico o que é, essencialmente, uma universidade. Nenhuma das instituições que atualmente ostentam esse nome atende a essa definição. Não vejo o que se possa fazer com elas. Se vocês precisam delas para obter a autorização para a prática de um ofício, então têm de agüentá-las, mais ou menos como se agüenta um parente chato que não se pode assassinar.

9)    Sobre as eleições do próximo ano, o senhor concorda com a análise de que Lula esteja mais próximo da vitória do que das vezes anteriores? O que há de mais favorável à esquerda desta vez?

As eleições não são importantes. Em primeiro lugar, o esquema esquerdista de tomada do poder aposta basicamente na “guerra de posições”, na “ocupação de espaços” que vai dominando a mídia, o ensino, a burocracia administrativa, judiciária e policial. A eleição de um presidente é apenas o salvo-conduto para a esquerda dominante tirar a máscara e assumir nominalmente um poder que, na prática, já possui.

Em segundo lugar, o discurso dos candidatos anti-Lula é substancialmente o mesmo discurso da esquerda. Deste modo, vença quem vencer, a ideologia esquerdista sairá fortalecida. Parasitar o discurso alheio é a mais tola das táticas eleitorais: se você se elege, é como médium que incorpora o espírito do adversário.

Em terceiro lugar, FHC, orientado por Alain Touraine para uma “virada à esquerda”, deixou pronto para o seu sucessor todo um aparato fiscal, judiciário e policial que lhe permitirá estrangular rapidamente a liberdade econômica e, junto com ela, as demais liberdades. Tudo está montado para que o Brasil, um belo dia, acorde socialista sem nem saber o que é isso. Então haverá choro e ranger de dentes — como na Venezuela de Chavez –, mas será tarde para reclamar.

O que importa não é ganhar eleições. É organizar a resistência ao estrangulamento das liberdades, que, embora o público mais vasto não perceba, já é uma realidade hoje em dia.

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