Textos

Entrevista de Olavo de Carvalho à Revista do Clube Militar

Revista do Clube Militar (Rio de Janeiro), Ano LXXIV, No. 386, agosto-setembro de 2001

Qual a causa do desmoronamento da União Soviética?

— A inviabilidade da economia socialista já estava demonstrada, em teoria, desde a década de 20. A prova, feita pelo maior dos economistas do século XX, Ludwig von Mises, era bem simples: socialismo é economia planejada; planejamento supõe cálculo de preços; não havendo mercado, não há com base em quê fazer o cálculo de preços; logo, não á possível planejar uma economia sem mercado; portanto, o socialismo é impossível. A história da URSS é a longa e difícil demonstração da veracidade desse silogismo contra a teimosia demente da elite comunista. A economia socialista sobreviveu artificialmente graças aos seguintes expedientes. Primeiro, a abertura do mercado, empreendida por Lênin, que atraiu investimentos estrangeiros em quantidade; depois, a guerra; terceiro, a ocupação e exploração descarada dos chamados países satélites; quarto, a exploração da rede de milionários comunistas do Ocidente, formada por Stálin desde a década de 30 (para fazer uma idéia de quanto isso representa em dinheiro, basta ver que na Guerra Civil Espanhola a URSS não teve de gastar um tostão: toda a pretensa ajuda soviética às forças republicanas veio de milionários de Nova York e da indústria do cinema norte-americano). Com tudo isso, o cidadão soviético médio da década de 80 ainda consumia menos proteínas do que um súdito do Tzar em 1913 e tinha um padrão de vida que, sob muitos aspectos, era inferior ao dos negros da África do Sul sob o apartheid. Isso não podia, é claro, durar para sempre. Para derrubar o castelo de cartas, bastava forçar a URSS à concorrência econômica direta. Foi o que fez Ronald Reagan com o seu programa de defesa atômica: um investimento monstruoso, que forçou a URSS a jogar a toalha. A lição que temos a tirar disso é que um regime tirânico e economicamente inviável pode ter uma longa sobrevida por meios artificiais se não é forçado a um confronto com a realidade. Uma ditadura economicamente inviável pode até durar mais do que um regime democrático próspero, se este for ameaçado desde dentro por forças revolucionárias. A economia não determina o rumo da história: o que pode determiná-lo, sim, é o uso político inteligente da economia como arma. Foi Ronald Reagan – que tantos diziam ser um burrão – quem nos ensinou isso e liquidou o “Império do Mal”. Mas não podemos esquecer que a KGB, a estrutura policial do império, continua intacta e hoje infiltrada no mercado de capitais em todo o mundo. A URSS caiu, mas o movimento comunista continua ativo.

O que mantém Fidel Castro no poder?

— Não posso dizer isso com certeza, mas dois fatores não devem ser esquecidos. Primeiro, na avaliação da KGB, Cuba é o mais perfeito Estado policial do mundo, com um polícia secreta para cada 28 habitantes. Derrubar isso não é fácil. Em segundo lugar, um amigo meu, importante dignitário da Maçonaria européia, me contou que Fidel Castro teve a prudência de não perseguir os maçons, ao contrário do que o regime comunista fez no Leste europeu. Tendo em vista a força que a Maçonaria tem nos EUA, é normal que isso tenha desestimulado consideravelmente qualquer iniciativa anticastrista das elites norte-americanas.

O que acha da indicação do irmão do Fidel, como seu sucessor ?

— Fidel Castro criou um Estado policial capaz de sobreviver à morte de seu criador. É evidente que a figura carismática deixará um vazio, mas quem disse que Fidel, morto, não será mais poderoso do que vivo? Afinal, Che Guevara vivo foi um fracasso como líder guerrilheiro, tornando-se um sucesso como símbolo após a morte. Nenhum regime comunista jamais dependeu de um líder em particular para sobreviver. Pode ser que os exilados aproveitem a morte de Fidel para lançar campanhas democratizantes, mas a possibilidade de sucesso é remota. A política norte-americana de “amaciar” o comunismo cubano também não me parece promissora. O governo de Cuba tem um plano de revolução continental, está comprometido com Chavez, com as FARC e com a esquerda brasileira — não poderá romper com todos esses compromissos só porque Fidel morreu. Fidel não é mais indispensável ao comunismo do que foi Stálin. Raul Castro foi uma peça essencial do mecanismo do Estado policial. Não creio que tenha a mínima intenção de liberalizar o regime.

Por que o regime comunista é perigoso para as nações?

— O comunismo, como o nazismo, é um movimento de massas investido de espírito messiânico. Ele aposta na ruptura do ordem real das causas históricas e na instauração de uma sociedade inventada. Basta isso para torná-lo perigoso. Mais perigoso ainda ele se torna porque, alegando realizar uma mudança historicamente “inevitável”, portanto natural, ele se propõe chegar a ela pelo mais artificial dos meios, que é a revolução. Uma revolução é sempre a precipitação doentia de mudanças que, em circunstâncias normais, tomariam um rumo totalmente diverso. Revolução não quer dizer necessariamente violência física: pode ser a simples imposição, por meios “legais”, de mudanças estruturais cujo alcance o povo não compreende nem pode acompanhar. Foi assim que Hitler fez uma revolução na Alemanha. Hannah Arendt acertou na mosca quando disse que os movimentos totalitários visavam menos a criar uma ordem social determinada do que a mudar a natureza humana. O totalitarismo é uma revolta contra a natureza humana, portanto contra a ordem cósmica e divina.

O regime democrático é uma espécie de panacéia, que serve para todos os povos, ou cada povo tem de ser prerarado para adotá-la, por meio da educação?

— A democracia em sentido estrito só deu certo na Inglaterra e nos EUA, porque os povos anglo-saxônicos foram preparados para ela, primeiro, pelo cristianismo (os ingleses cristianizaram-se bem antes do resto da Europa); segundo, pela economia de mercado, que na Inglaterra já era muito ativa desde a Idade Média; terceiro, por uma longa tradição de respeito aos direitos e privilégios formados pelo tempo e pelo hábito – uma condição que, na Inglaterra, faz a ponte entre a sociedade feudal e o mundo moderno por meio da continuidade da monarquia. A democracia é inconcebível sem a noção da inviolabilidade sagrada da consciência individual, portanto sem a herança grega, romana e judaico-cristã, e sem a tradição de iniciativa pessoal. Essas condições existem em poucos lugares do mundo, portanto a idéia democrática, quando transplantada para fora do mundo anglo-saxônico e enxertada em condições locais diferentes, resulta em formações sociais bem diferentes do modelo original. No Brasil, por exemplo, ela encontra três condições adversas: a tradição de governo central forte, a cristianização insuficiente das massas, a desorientação e fragilidade dos indivíduos num território enorme e numa sociedade complexa onde vieram parar (muitos à força, como os escravos) sem ter um projeto de vida claro. Ademais, o Brasil é essencialmente uma criação do Exército, e por isto volta e meia as Forças Armadas, que são o único elemento de continuidade e coerência no meio do caos, voltam a exercer o papel de “poder moderador”, que no Império transferiram ao Imperador. O regime militar de 1964 foi uma grande oportunidade perdida. Os militares poderiam ter educado a nação, mas ocuparam-se somente da economia e do combate às guerrilhas, deixando a educação nas mãos de intelectuais esquerdistas insanos.

O ex-metalúrgico Lula, apontado nas últimas pesquisas com 35 por cento de preferência entre os sleitores, tem condições para ser presidente da República?

— Certamente não, mas isto não se deve à sua origem operária, nem mesmo à sua falta de cultura, mas sim ao fato de que, no seu partido, ele não é um verdadeiro líder e sim apenas um símbolo, um emblema publicitário populista. Eleger Lula não é eleger um candidato, mas um partido. Com Lula na presidência, o Brasil terá alguns milhares de presidentes da República, agindo nos bastidores, totalmente desconhecidos da população. Alguns deles são funcionários ou ex-funcionários do Serviço Secreto cubano e trabalham para finalidades que a população nem imagina. O PT é um partido de duas camadas: há o programa ostensivo, para fins publicitários, e há a estratégia de longo prazo, só discutida nos congressos internos e nas reuniões da elite. Essa estratégia é documentada nas atas de congressos, mas quem lê isso fora do partido? O velho Partido Comunista usava sempre outros partidos como fachada, continuando sua ação revolucionária no fundo. O PT é um tipo novo de organização dupla – ao mesmo tempo fachada e força revolucionária ativa, mudando de aparência e de orientação quando bem lhe convenha.

Qual a melhor maneira de esclarecer o povo contra os demagogos?

— Desde logo, é preciso quebrar a hegemonia esquerdista na mídia, na educação e no mercado editorial. Tudo o que o povo brasileiro precisaria saber para se orientar na situação atual lhe é sonegado. O discurso esquerdista ocupa o espaço todo e, nas escolas, já é imposto de maneira ostensiva e ditatorial, reprimindo severamente os discordes e recalcitrantes. Recebo semanalmente dezenas de e-mails de estudantes que sofrem constrangimento e ameaças pelo simples fato de emitirem idéias contrárias ao consenso esquerdista dominante. Para quebrar essa hegemonia, é preciso começar pelo mais fácil: o mercado editorial. É preciso inundar as livrarias com as obras publicadas na última década que desmascaram o comunismo e sua atual estratégia, obras que estão totalmente fora do alcance do leitor brasileiro. Em seguida é preciso dissolver o monopólio esquerdista da mídia, denunciando as manipulações e falsificações e levando as denúncias ao conhecimento não só do povo, mas dos donos de jornais e revistas, para que percebam o quanto já estão próximos do dia em que as “comissões de redação” comunistas assumirão ostensivamente a direção das publicações, repetindo aqui o que fizeram no Chile e em Portugal. Aberta a brecha no mercado editorial e na mídia, pode-se pensar numa ação de maior envergadura na esfera da educação. As condições para isso são três: coragem, tenacidade e dinheiro.

O que determinou o seu afastamento do Partido Comunista?

— Eu tinha vinte e dois ou vinte e três anos. De início, percebi que os comunistas tinham uma mentalidade muito mais ditatorial do que aquela que denunciavam no governo militar. Eles explicavam isso como uma necessidade imposta pela dureza da situação exterior, mas, quando descobri que nos países onde eles estavam no poder eles não agiam de maneira diferente, foi o fim. Não rompi ostensivamente com o Partido, primeiro porque isso me pareceria favorecer o regime militar, do qual eu não gostava nem um pouco; segundo, porque, abandonando o marxismo, mergulhei num mar de dúvidas e me parecia desonesto fingir certezas e dar opiniões quando, na verdade, eu não tinha mais nenhuma. Assim, fugi de meus companheiros de Partido e me isolei para estudar e tentar me reorientar no mundo. Hoje vejo que era mesmo a única coisa decente a fazer.

Entrevista de Olavo de Carvalho a Régis Gonçalves

Publicada em O Tempo, Belo Horizonte, 15 de agosto de 2001

Estive esta semana em Belo Horizonte, onde, a convite do Grupo Inconfidência, fiz uma conferência para uma platéia de 400 pessoas no Círculo Militar. Na véspera, o diário O Tempo publicou esta minha entrevista. – O. de C.

O sr. é um filósofo “outsider”, fora da academia. Isso foi uma opção pessoal ou se deveu a alguma circunstância alheia à sua vontade?

Não foi nem uma coisa nem a outra. Foi pura coincidência. Sempre estudei só para minha orientação pessoal, sem nenhuma ambição — ou rejeição — de carreira acadêmica. Só comecei a dar conferências porque fui convidado. Gostei e continuei. Mas aí já não tinha mais sentido pensar em profissão acadêmica, porque eu já tinha meu campo de estudos definido, e ele era muito alheio aos interesses acadêmicos do dia.

Considerando que o diálogo intelectual é uma condição essencial para o exercício filosófico, qual é a sua relação com seus colegas, os demais filósofos brasileiros, acadêmicos ou não?

O diálogo é certamente importante, mas, numa situação anormal como a brasileira, a área de diálogo é muito restrita. Se quero falar sobre a filosofia de Eric Voegelin, de Xavier Zubiri, sobre as últimas pesquisas em torno de Aristóteles ou sobre religiões comparadas, quase não há com quem conversar no ambiente acadêmico paulista e carioca. Não posso ter diálogo com uns coitados que só leram Marx, Nietzsche e Derrida, e que acreditam, para valer, que Florestan Fernandes é um grande pensador. O ambiente acadêmico é provinciano, limitado, inculto, fanatizado, padronizado e, por autodefesa de fracote, arrogante. Não há conversa inteligente que possa subsistir aí.

O sr. tem assumido publicamente posições que o vinculam à vertente ideológica conservadora. Esse fato pode ser deduzido de sua perspectiva filosófica, ou se trata exatamente do contrário?

Você deveria perguntar isso àqueles que “me vinculam” a essa corrente. Da minha parte, asseguro que não sou um ideólogo de maneira alguma. A crítica radical que faço à ideologia dominante nos nossos meios intelectuais não implica a filiação a qualquer outra ideologia. Aliás, a crença mesma de que uma ideologia só possa ser criticada desde outra ideologia é um dogma comunista perfeitamente inaceitável. Para além das ideologias há a ciência e a filosofia, e elas dão base suficiente para uma crítica supra-ideológica de qualquer ideologia. Pessoas que dizem o contrário não têm experiência pessoal suficiente da ciência ou da filosofia, já entraram na vida adulta intoxicadas de ideologia e imaginam que, fora do poço que habitam, não existe nada.

A propósito, existe um pensamento de direita no Brasil (cuja origem passaria por nomes como Francisco Campos, os militantes do Centro Dom Vital e, contemporaneamente, Roberto Campos e José Guilherme Merquior)? O sr. se filia a essa corrente?

“Essa corrente”? Qual? Não há aí corrente nenhuma. Somente na imaginação comunista poderia haver algo de comum entre um fascista como Campos, os conservadores católicos do Centro Dom Vital e os liberais voltaireanos Campos e Merquior. Aí há três correntes inconciliáveis: uma diz que o poder deve ficar com o Estado, outra com a Igreja, outra com o livre mercado. As três coincidem apenas no anticomunismo, mas há milhões de razões para ser anticomunista, e elas não formam entre si a unidade de uma ideologia. A fantasia comunista é que, ignorando essa pluralidade de pontos de vista possíveis, constrói um espantalho de “unidade direitista” e depois se esconde embaixo da cama, com medo. Ser comunista é ser idiota, e usar as categorias comunistas de pensamento sem ser comunista é ser ainda mais idiota.

Sobre Merquior, atribuem-se aos seus livros e ensaios os fundamentos de uma retomada do pensamento convervador brasileiro. Teria ele desempenhado um papel assim tão capital?

Outra confusão. Merquior nunca foi conservador. Foi um liberal-progressista, como Campos. Conservador foi João Camilo de Oliveira Torres, foi Gilberto Freyre.

O economista Roberto Campos é outro intelectual “orgânico” (no sentido gramsciano) do conservadorismo, que tem oferecido algumas contribuições originais à reflexão sobre a sociedade e o homem brasileiros. Em que medida ele lhe serve de modelo?

Gosto muito do dr. Roberto, tenho o maior carinho e admiração por ele, mas seu pensamento não me influenciou em absolutamente nada. Dos economistas liberais, só devo algumas idéias a Ludwig von Mises e Eugen von Böhm-Bawerk. Também não recebi influência alguma do Merquior. Os únicos brasileiros que influenciaram de algum modo o meu pensamento foram Gilberto Freyre, Mário Ferreira dos Santos e Miguel Reale, o primeiro um conservador, o segundo um anarquista, o terceiro um social-liberal (se fosse possível defini-los politicamente e se suas obras não fossem muito mais ricas do que suas respectivas identidades políticas). Mas não sou, sob qualquer aspecto pensável, um seguidor de nenhum deles.

O sr. atribuiu tinturas comunizantes ao ex-candidato á presidência dos EUA, Al Gore. O sr. não estaria exagerando ao ceder, assim, a um raciocínio típico da “teoria conspirativa da história”?

Apelar à expressão “teoria conspirativa da história”, no caso, é um autêntico “argumentum ad ignorantiam”. “Argumentum ad ignorantiam” é você deduzir, do seu próprio desconhecimento de uma coisa, a inexistência da coisa. Baseado nesse raciocínio, as ligações comunistas de Al Gore só podem mesmo parecer uma hipótese esquisita, e até conspirativa. Mas relatar um fato não é fazer uma teoria, muito menos uma teoria conspirativa. E o fato é que a carreira política dos Gore, pai e filho, foi sempre sustentada pelo dinheiro de Armand Hammer, que era um dos coordenadores financeiros do Comintern e o maior lavador de dinheiro soviético de todos os tempos. Dizer isso náo é “atribuir tinturas comunizantes” a Albert Gore: é afirmar um simples fato.

Seu nome costuma aparecer na mídia associado ao do ex-delegado e ex-deputado Erasmo Dias. O sr. coincide com os pontos de vista dele a respeito da eliminação sumária de criminosos recalcitrantes e outras proposições igualmente polêmicas daquele militar que vão de encontro a uma visão, digamos, humanística da sociedade?

Nunca vi meu nome associado ao desse senhor, do qual a única coisa que sei é que ele prendeu minha esposa, Roxane, quando ela era militante estudantil. De onde você tirou essa idéia? Aliás, colocar a discussão da criminalidade entre a “eliminação sumária” e uma “visão humanística” é estereotipar demais, você não acha? Sabemos perfeitamente bem que os pretensos defensores de “direitos humanos” são, ao mesmo tempo, adeptos do regime cubano, que, este sim, pratica a eliminação sumária não só de bandidos, mas de dissidentes políticos. Evidentemente o que está em jogo aí não é uma “visão humanística”, mas um simples pretexto retórico para paralisar a ação policial e facilitar o advento de uma revolução comunista que implantará um regime totalitário e mandará fuzilar imediatamente aqueles mesmos marginais que usou como instrumento tático, exatamente como fez Lenin. Quem quer que se oponha a esse jogo é rotulado de adepto de execuções sumárias, mas isso é um truque verbal muito canalha, não lhe parece? Hoje em dia, quem quer que defenda o simples direito de um policial à defesa própria já é chamado de “adepto de execuções sumárias”. Graças a essa propaganda, o Rio de Janeiro é hoje recordista mundial de mortes de policiais. A linguagem de todo esse debate está viciada.

O que acha do sucesso de Paulo Coelho? O sr. concorda com a análise que se faz na França, atribuindo seu êxito ao fato de ser ele o único escritor que traz hoje uma mensagem positiva para os que naufragaram com o ideário de 68 e perderam o leme com a derrocada do “socialismo real”?

Só li os dois primeiros livros do Paulo Coelho, “O Alquimista” e “Diário de um Mago”. Eram histórias muito interessantes, mas, se bem me lembro, achei que ele confundia esoterismo com mera psicoterapia. Não sei a que se deve o sucesso dele, mas certamente ele não é o único escritor otimista do mundo.

Alguns críticos atribuem ao sr. uma posição simetricamente equivalente, do lado ocidental, à dos fundamentalistas muçulmanos e de outros ideólogos totalitários, ou seja, contrários à visão pluralista da cultura e da sociedade? Como o sr. responderia a essa crítica?

Que ela é uma estupidez, enunciada por semi-analfabetos que nem leram as minhas obras nem sabem o que quer que seja dos fundamentalistas islâmicos. Aliás, você acredita mesmo que os comunistas, adeptos do mais sangrento dos totalitarismos, defendam “uma visão pluralista da cultura e da sociedade”? Você já viu o controle férreo que essa gente exerce sobre as opiniões no meio acadêmico e jornalístico? Qualificar a mim como totalitário e a eles como pluralistas é uma completa inversão da situação real. É impressionante como essas mentirinhas pueris circulam e acabam sendo aceitas como verdades.

Um de seus temas mais caros é a crítica ao ensino acadêmico no Brasil. Qual seria a origem dos males apontados e como combater o estado de coisas atual?

A origem remota é a fragilidade geral das elites intelectuais brasileiras, a cuja formação ninguém deu a mínima atenção, desde o século passado. A origem próxima é a apropriação da universidade pela propaganda totalitária rasteira. Hoje o brasileiro só entra numa universidade para aprender a recitar slogans maoístas e fidelistas dignos de inteligências de galinha. Os partidos de esquerda são diretamente responsáveis pela redução da universidade brasileira à barbárie.

A imprensa brasileira luta para alcançar mais leitores, mas prende-se aos limites estruturais de um país semi-alfabetizado e a estratégias de marketing que pregam a popularização. Parece-lhe que essa imprensa vem cumprindo adequadamente seu papel?

A imprensa é hoje o produto de um conluio entre os interesses comerciais das empresas e os interesses políticos dos grupos esquerdistas que dominam as redações. As empresas, em troca de dinheiro, deixam os jornalistas-militantes fazer propaganda ideológica, e estes, em troca de espaço para enganar o leitor com propaganda ideológica, lutam pelo crescimento econômico das empresas. Isso é tudo. Graças a esse estado de coisas, notícias fundamentais, como por exemplo o julgamento do clã Pol-Pot no Camboja (certamente o fato judicial mais importante desde o tribunal de Nuremberg), são cinicamente sonegadas ao povo. Simplesmente não há mais jornalismo no Brasil, com exceções que se contam nos dedos de uma só mão. O que há, em geral, é manipulação e desinformação.

Como o sr. vê a questão do racismo no país e as relações sociais que camuflam os conflitos e traumas históricos, negando-os ou relativizando-os positivamente diante de realidades, como a norte-americana, onde as reivindições dos afro-descendentes são postas de maneira muito mais afirmativa?

O racismo brasileiro, se existe nas proporções com que intelectuais a soldo de fundações americanas querem nos fazer crer que existe, deve ser mágico, pois se dissemina sem propaganda, sem livros, sem cartazes, sem sites na internet, sem partidos racistas, e, enfim, por meios puramente telepáticos. A diferença de padrão econômico entre a população branca e a negra e mestiça resultou de um fato muito simples: entre a abolição da escravatura e o primeiro surto de industrialização, passaram-se quarenta anos. Durante esse tempo a população negra e mestiça cresceu sem que crescessem as vagas no mercado de trabalho. Quando abriram as vagas, veio a guerra e elas foram ocupadas pelos imigrantes, que vinham com melhor formação profissional. Então, fatalmente, “negro” virou sinônimo de pobre, de brega, de desempregado. Isso é menos um preconceito do que a expressão de uma situação social de efetiva desvantagem. Temos de tirar essa gente dessa situação deprimente, mas não será com injustas acusações de racismo ao restante do povo brasileiro que vamos conseguir isso, sobretudo quando essas acusações são pagas com dinheiro americano. Esse debate está viciado por uma conjunção acidental de interesses entre entidades norte-americanas que querem debilitar nossa identidade nacional e forças esquerdistas locais que querem aproveitar a onda antibrasileira para fazer demagogia revolucionária.

O Brasil tem filósofo

Entrevista de Olavo de Carvalho a Gramática On-line

1 de maio de 2001

Um dos mais conhecidos (e polêmicos) pensadores da atualidade, Olavo de Carvalho conversa com o Gramática On-line a respeito de filosofia, cultura e, é claro, língua portuguesa

Por Júlio Tanga

“Olá, amigo. O Olavo de Carvalho está respondendo aos sucessivos ataques por parte de alguns órgãos de imprensa, fato que o impossibilita de responder-lhe agora. Você receberá resposta o mais rápido possível.” É certo que esse e-mail, enviado atenciosamente ao Gramática On-line como justificativa da eventual demora com que se daria a entrevista, atesta a vida nada consensual do filósofo e jornalista tido por muitos como dos maiores pensadores da atualidade. O nome Olavo de Carvalho é, para alguns, sinônimo de polêmica, talvez porque, diferentemente dos que se sentem apontados em seu livro O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras, ele se destaque por defender a liberdade da consciência individual contra a tirania da autoridade coletiva. Diferenças ideológicas deixadas de lado, é indiscutível (e interessa-nos mais nesta entrevista) a qualidade da expressão e do conteúdo das idéias desse pensador que mais brasileiros deveriam conhecer.

Olavo Luiz Pimentel de Carvalho, 54, nasceu em Campinas, interior de São Paulo. Estudou Filosofia no Conjunto de Pesquisa Filosófica da PUC do Rio de Janeiro por três anos, sob a direção do Padre Stanislavs Ladusãns. Apesar de não ter podido terminar o curso – fechado após a morte de Ladusãns -, Olavo de Carvalho não quis dar prosseguimento aos seus estudos em outra instituição de ensino superior. “Os outros cursos de Filosofia que eu conhecia neste país não me interessavam, pois eram demasiado ruins”, diz o estudioso, que não se considera um autodidata, por ter desfrutado a orientação de muitos mestres, principalmente no campo das religiões comparadas.

Pai de oito filhos e já por quatro vezes avô, o filósofo dedica-se, entre outras atividades, aos seus livros (está sendo publicado o décimo quinto de sua autoria) e artigos veiculados em grandes periódicos brasileiros. Merecem atenção especial do pensador os Seminários de Filosofia que conduz em São Paulo. O curso, que atrai estudantes e profissionais de diversas áreas, é reconhecido como um dos mais sérios e consistentes dos que se conhecem. Encontram-se excertos das apostilas do curso – além de inúmeros textos publicados por e sobre Olavo de Carvalho em vários jornais e revistas – no site www.olavodecarvalho.org, mantido e atualizado desde maio de 98 pelo próprio professor. A página, visitada por cerca de 600 internautas diariamente, já recebeu o título de Site do Mês (OpenLink / abril de 99) e mostra, por si só, por que seu criador gera tanta polêmica no meio intelectualóide e por que a qualidade de seu texto chama tanto à atenção. Sem dúvida alguma, é um dos poucos sites da rede mundial de computadores que induzem a uma reflexão realmente crítica. Uma infinidade de temas é abordada com linguagem simples, bem-humorada, apimentada e abrasileirada, encarrapitada em uma qualidade gramatical de causar inveja a muitos jornalistas e profissionais das letras. A maioria dos textos está disposta integralmente no site, que é gratuito.

Entrevistado pelo Gramática On-line, Olavo de Carvalho falou sobre suas preferências de leitura, sobre filosofia e, principalmente, sobre a Língua Portuguesa e seu estudo.

 Gramática On-line – Comecemos falando um pouco sobre a sua área. Na sua opinião, que é a Filosofia? Há diferenças entre concepções antigas e modernas de Filosofia?

  — A Filosofia, segundo a entendo, é a unidade do saber realizada na unidade da consciência e vice-versa. Creio que essa definição absorve e domina praticamente todas as definições antigas e modernas. Aliás, foi obtida da comparação delas.

  Gramática On-line – Muitas pessoas têm dúvida quanto à atuação profissional do filósofo. Além de lecionar, que atividades pode exercer o formado em Filosofia?

  — A Filosofia, em si, não é uma atividade profissional (e espero que não se torne isso nunca), mas um tipo de know-howque está subentendido, ou deveria estar, em inumeráveis profissões, especialmente o ensino, a pesquisa científica em todas as áreas, as artes, a política, a medicina.

  Gramática On-line – Atualmente, as faculdades em geral formam realmente filósofos? Ou são só professores de Filosofia?

  — Ninguém pode dar o que não tem nem ensinar o que não sabe. Não há um só filósofo no nosso meio acadêmico, e a prova é que esse meio rejeita, por medo e preconceito, todo filósofo autêntico que apareça dentro ou fora dele. Dizer que uma Marilena Chauí, um Leandro Konder sejam filósofos é um ultraje à filosofia. A primeira é uma professora de ginásio, o segundo é um propagandista barato. Mas é só esse tipo de gente que a universidade aceita. Já o Villém Flusser, um gênio espantoso, acabou desistindo do Brasil e foi publicar seus livros na Alemanha, onde imediatamente foi reconhecido como um dos pensadores mais originais das últimas décadas. No Brasil aqueles entojadinhos da USP faziam pouco dele, empinavam o nariz diante dos seus escritos porque eram publicados em jornal – como se Gabriel Marcel ou Ortega y Gasset também não tivessem sido eminentemente jornalistas. Mário Ferreira dos Santos e Vicente Ferreira da Silva também foram postos para escanteio, e até Miguel Reale, reitor da USP, era discriminado dentro da sua própria universidade. Agora, com quarenta anos de atraso, a USP decidiu absorver o prof. Reale, concedendo ao mestre um lugarzinho modesto ao lado de quinze micos na coletânea Conversas com Filósofos Brasileiros, na qual ele é obviamente o único filósofo presente. Ora, esses quatro nomes – Flusser, Reale e os dois Ferreiras – perfazem o essencial da filosofia brasileira deste século – o que vale dizer que a filosofia esteve rigorosamente fora da universidade, por obra de medíocres e invejosos que se empoleiraram como urubus nas chefias de departamentos. O que a universidade brasileira tem feito contra a filosofia é simplesmente criminoso.

  Gramática On-line – Nota- se que há muitas faculdades de Filosofia (e Letras) espalhadas pelo país. Essa proliferação de faculdades é boa ou ruim para o ensino qualitativo da Filosofia?

  — É péssima. Quanto mais gente falando do que não entende, mais confusão, mais empulhação, mais verbalismo oco vai circular pelo país. A filosofia universitária no Brasil só vai começar quando o MEC ou instituição similar fizer uma edição padrão dos escritos daqueles quatro grandes pensadores e a distribuir como leitura obrigatória em todas as faculdades. Não pode haver ensino da filosofia senão com base numa filosofia vivente.

  Gramática On-line – Pode- se dizer que hoje em dia há grandes pensadores, como Sócrates, Platão, Santo Agostinho, etc.?

  — Eric Voegelin e Xavier Zubiri superam todos os demais pensadores da segunda metade do século XX.

  Gramática On-line – Quais são seus autores favoritos (da filosofia e de outras áreas)?

  — Em filosofia, Aristóteles, Leibniz, Sto. Tomás, Schelling, Husserl, Voegelin, Zubiri, Lonergan, Éric Weil, Louis Lavelle. Na literatura, Dante e Shakespeare, Dostoievski e Stendhal, Camões e Camilo, Manzoni e Scott, Pío Baroja, Thomas Mann e Jacob Wassermann, Antonio Machado, Apollinaire, T. S. Eliot e William Butler Yeats. Mas gosto também muito de ler historiadores – meus prediletos são Taine, Huizinga e Oliveira Martins – e obras de psicologia, principalmente as de Viktor Frankl, Lipot Szondi e Maurice Pradines. Nas ciências sociais, Weber e Ludwig von Mises. Em religião, além da Bíblia, do Corão e dos Upanishads, releio sempre a Legenda Dourada de Giacomo di Varezzo, um livro que me parece ter certos dons miraculosos. Sou aficionado de temas islâmicos e retorno sempre aos livros de Ibn Arabi, René Guénon, Henry Corbin, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr. Adoro as polêmicas de Chesterton, de Bernanos, de Nelson Rodrigues. Gosto também de livros de memórias e depoimentos, sobretudo de políticos, agentes secretos e criminosos que um dia envelhecem e perdem o medo de contar o que sabem; mas também relatos de vidas extraordinárias: meu preferido desde a infância, relido com encanto crescente de tempos em tempos, é Hunter, de John A. Hunter (uma coincidência de nome e profissão): memórias de um caçador de leões e elefantes, certamente o melhor livro de psicologia animal que alguém escreveu antes de Konrad Lorenz.

  Gramática On-line – Diante de tantos autores, de tanta leitura, que o senhor diz sobre o jovem? Com o desenvolvimento da Sociedade da Informação, o jovem tem pensado menos ou mais? Está mais fácil ou mais difícil pensar?

  — Os computadores e a internet, em si, são um imenso benefício para todas as atividades intelectuais. O problema é que pessoas incapazes de absorver mesmo doses moderadas de informação se vêem de repente submetidas a um bombardeio informático. No mínimo, isso infunde nelas a ilusão de que estão por dentro de todos os assuntos. Na verdade, para tirar proveito da internet o sujeito precisa ter as habilidades conjuntas de um pesquisador acadêmico, de um jornalista e de um oficial de informações. O número de pessoas que tira real proveito da internet é ínfimo. Que fazer pelas outras? Bem, da minha parte já faço o que está ao meu alcance: procuro desenvolver nos meus alunos aquelas habilidades conjuntas. Mas não creio que os demais educadores estejam conscientes dessa necessidade, porque eles próprios não têm em geral esse tipo de formação.

  Gramática On-line – Além de ler, qual é o seu hobby? Uma atividade que lhe proporcione prazer…

  Não tenho nenhum hobby em especial. Tudo o que faço me proporciona imenso prazer, sobretudo estudar, escrever, dar aulas, conviver com a minha família maravilhosa e com os meus amigos, comer, amar, rezar, dormir. Se tivesse tempo livre, iria caçar e andar a cavalo, coisas que fiz muito na infância. Música, ouço de vez em quando, mas sempre as mesmas, principalmente Mozart e Wagner. Filmes, já vi todos os que queria ver.

  Gramática On-line – Falemos um pouco sobre a Gramática. Quais são os primeiros registros dos estudos lógicos e gramaticais?

  — Os primeiros estudos gramaticais no Ocidente resultaram da tentativa de aplicar à linguagem, considerada materialmente, os conceitos da lógica de Aristóteles. Mas a aplicação foi muito rasa e um logicismo extemporâneo deixou cicatrizes em toda a gramática ocidental. Quem estudou isso a fundo e procurou corrigir essas distorções foi Eugen Rosenstock-Huessy, cujo livro A Origem da Linguagem deve sair em breve pela Biblioteca de Filosofia que dirijo na Editora Record.

  Gramática On-line – Ao seu ver, qual é a melhor maneira de desenvolver no cidadão a habilidade de escrita e leitura?

  — Expliquei algo disso no meu artigo “Aprendendo a escrever” (O Globo, 3 fev. 2001). Primeiro o sujeito tem de adquirir, pela leitura de obras de história, de cronologia e de bibliografia, um senso da unidade do campo das letras. Um bom começo é a História da Literatura Ocidental de Otto Maria Carpeaux, ou a série Great Books da Encyclopaedia Britannica. Mas em seguida, ou ao mesmo tempo, tem de ler os clássicos e tentar imitá- los, formando um repertório de meios de expressão. Terceiro, tem de manter esse repertório em contínuo acréscimo e desenvolvimento, pela prática da escrita.

  Gramática On-line – Entre as características de Olavo de Carvalho, uma que merece destaque é a habilidade lingüística. O seu texto mostra-se, ao mesmo tempo, fiel às normas do ensino prescritivo do idioma (a chamada norma culta da língua) e acessível a um grande número de leitores. Leitura qualitativa e quantitativa basta para que se alcance essa habilidade? O domínio das estruturas fonética, morfológica e sintática é realmente necessário?

  — Há dois tipos de pessoas: as que aprendem por indução e as que primeiro precisam conhecer a regra geral para depois reconhecê-la na prática. O aprendizado da gramática é necessário a ambas, mas em momentos diferentes. As do primeiro tipo (e eu mesmo estou entre elas) devem acumular uma grande experiência de leitura antes de ter a primeira lição de gramática, porque já terão aquela experiência que lhes permitirá reconhecer do que a gramática está falando. Mas há pessoas que precisam estudar gramática primeiro. O educador é que tem de ter o tirocínio para perceber o que é melhor para o seu aluno.

  Gramática On-line – Como o jornalista Olavo de Carvalho vê a situação dos textos impressos dos meios de comunicação. Os cursos de Jornalismo estão levando a sério a abordagem (ou estudo) da linguagem? Qual é a solução?

  — A linguagem da mídia é um compactado de cacoetes funcionais. O sujeito que aprende a escrever com base nela vai tender inevitavelmente a compactá-la ainda mais. Só os grandes escritores têm o gênio, o espírito do idioma. É preciso aprender a escrever com Camilo e Machado, e só depois simplificar o idioma para adaptá-lo às necessidades da mídia. Para fazer comida desidratada é preciso partir da comida autêntica: se o sujeito desidrata o que já vem desidratado, acaba comendo areia.

 Gramática On-line – O senhor estudou profundamente a Gramática ou, como explicam alguns jornalistas, apela na maioria das vezes à intuição para escrever adequadamente?

  — Não sei quem foi que disse que cultura é aquilo que sobra quando a gente esquece o que aprendeu. Fiz muitos exercícios de gramática, seguindo especialmente a velha Gramática Metódica de Napoleão Mendes de Almeida, e procurei incorporar o aprendizado de tal modo que a regra aprendida funcionasse automaticamente. Hoje, que escrevo com correção, esqueci metade da nomenclatura gramatical e ela não me faz falta nenhuma. A gramática é um estudo reflexivo que pressupõe de certo modo o conhecimento prático do idioma e não pode substituí- lo. Mas, como eu já disse, as mentes muito dedutivas e analíticas precisam já de um pouco de gramática no começo do aprendizado.

  Gramática On-line – Tem-se falado muito sobre a influência da língua na sociedade e vice-versa. A difusão intolerante da Gramática tradicional dá origem, segundo alguns sociolingüistas, ao preconceito lingüístico, sentimento por meio do qual se mantém o desrespeito às variantes lingüísticas divergentes da norma culta, da variante de prestígio. O senhor acha que o ensino rigoroso da Gramática, como era antigamente, pode contribuir para a manutenção desse preconceito? A norma culta é, como dizem, mais uma das imposições de uma minoria que visa a manter as classes sociais distantes umas das outras?

  — Esses sociólogos são simplesmente charlatães que querem tirar proveito político de uma observação falseada da realidade. Não estamos na Inglaterra, onde o falar correto ou incorreto basta para identificar imediatamente a classe social a que o sujeito pertence. Aqui, as classes altas falam e escrevem tão errado quanto o povão, e só quem se interessa pela norma culta são escritores e gramáticos pobretões e marginalizados. Por outro lado, exigir que o aluno, em vez de aprender a norma culta geral, se apegue eternamente aos modos de falar do seu bairro ou da sua classe social, isto sim é discriminá-lo, barrando-lhe o acesso a uma norma que existe justamente para ser o terreno comum da comunicação democrática. Os inimigos da norma são obscurantistas que querem prender cada pessoa no gueto lingüístico e social da sua infância, bloquear a comunicação social e inviabilizar a democracia. Os que inventaram essa ideologia sabem perfeitamente que o propósito dela é criminoso. Os que a repetem como papagaios do alto de suas cátedras são apenas tolos desprezíveis.

  Gramática On-line – Na sua opinião, é mais eficaz combater o preconceito lingüístico ou difundir de maneira mais figurativa os conhecimentos do idioma?

  — O único preconceito lingüístico que existe no Brasil é contra a linguagem correta. Ninguém é criticado neste país porque fala errado, mas, se usa uma única palavra que a platéia desconheça, é rotulado imediatamente de pedante, e assim todos contribuem para o empobrecimento do idioma. Há na sociedade brasileira uma espécie de populismo atávico, regressivo, mórbido e masoquista. Temos de acabar com ele, e qualquer ensino da gramática é útil para esse fim.

  Gramática On-line – Certa vez, quando o Gramática On-linejulgou que houvesse uma falha de digitação no seu site (a palavra muçulmano foi escrita com dois ss), o senhor disse que escreveu intencionalmente a forma que transgride a registrada. Referiu-se, ainda, a um sistema fonético independente, de sua autoria. O senhor poderia explicar em que consistem essas ações dissidentes?

  — Foi apenas um truque que inventei para facilitar o aprendizado do árabe clássico. O sistema internacional de transliteração é complicado e incoerente. Em árabe a escrita pode ser abreviada mediante a omissão das vogais, como numa taquigrafia. Na transliteração internacional você nunca sabe se as letras são vogais ou consoantes. Inventei então uma transliteração na qual as consoantes eram grafadas em maiúsculas e as vogais em minúsculas. Só que para isso era preciso que cada letra árabe correspondesse a uma e uma só letra portuguesa. Naturalmente, isso acabava por afetar os próprios termos árabes aportuguesados, como por exemplo “mussulmano”, que é uma adaptação de musslim. Na minha transliteração, musslim se escreve MuSSLiM, indicando que, na escrita corrente – por exemplo, num jornal árabe -, se escreveria apenas MSSLM. A utilidade disso é extraordinária para o aluno estrangeiro, porque, para o árabe, a consoante, conforme o contexto, já sugere imediatamente a vogal que a acompanha, e para nós não, o que é um problema, já que as declinações (nominativo, genitivo e acusativo) são indicadas precisamente pelas vogais. Há um belo livro de introdução ao árabe, Arabic Made Easy, de Abdul Hashim, que estou adaptando para o português com a minha transliteração. Mas ainda vai demorar para ficar pronto, porque tenho pouco tempo para trabalhar nisso.

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