Leituras

A Constituição do Crime

Juntamente com a Constituição de 88, o fatídico Estatuto da Criança e do Adolescente ajuda a fazer do Brasil um país em que o crime nunca é punido — é apenas regulamentado por lei.

por José Maria e Silva

Opção (Goiânia), 17 de julho de 2000

I

Confira o que de fato aconteceu na noite de 18 de junho, em Anicuns, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que completa dez anos

Esquecidos do mundo e absortos um no outro, Luiz Fernando e Erlane Mayara, ele com 17, ela com 15 anos, namoravam dentro de um carro, no campo de aviação do município de Anicuns, quando foram abordados por quatro jovens: Kléber, Jamil, Claudiomiro e A.R.S. Dois deles, Jamil e A.R.S., nem podiam ser chamados de jovens — eram apenas crianças. Claudiomiro resolveu ir embora. Kléber, o líder dos quatro, ficou só com os dois meninos, cercando o casal. Ao ver que Luiz Fernando o reconhecera, Kléber deixou as duas crianças vigiando Erlane e empurrou o rapaz para fora do carro, no meio de um canavial. Jamil, uma das crianças, resolveu brincar com a moça. Ela não queria, podia-se ler o terror nos seus olhos, mas, ainda que fosse dia claro, o sol batendo em seu rosto acuado, como é que Jamil, apenas um menino, seria capaz de compreender suas súplicas? Jamil não parou de brincar com ela nem mesmo quando viu sangue em seu corpo. Até consentiu em partilhar com o coleguinha, A.R.S., aquele brinquedo tão diferente. Como podiam saber que faziam mal à menina se não tinham completado 18 anos e, além disso, eram pobres?

Jamil e A.R.S. continuaram brincando com Erlane até que Kléber voltou ao carro. Era de se esperar que Kléber ralhasse com as crianças e explicasse a elas que não podiam penetrar a moça com o órgão de fazer pipi, a não ser que ela consentisse. Mas Kléber tinha as mãos sujas de carvão e sangue — acabara de atear fogo no corpo de Luiz Fernando, depois de triturá-lo a pauladas. Houve um tiro também, porque Luiz Fernando teimava em não morrer e sua respiração moribunda, concorrendo com os ruídos da noite, deve ter tocado o coração de Kléber. E não foi por falta de piedade que ele também currou Erlane. Maior de 18 anos, a Idade da Razão segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, ele até sabia — ao contrário das crianças — que estava estuprando a menina e que isso era maldade, mas como conter a revolta de ter nascido pobre, não possuir um tênis de marca, não andar num carro do ano e ainda por cima ter que aturar os políticos roubando sem punição alguma?

Um pouco mais tarde, quando Jamil deu um tiro em Erlane e também pôs fogo em seu corpo, não lhe ocorreu perguntar a Kléber, seu líder, o que a menina tinha a ver com isso: a pobreza deles e a impunidade dos ricos. Jamil, como qualquer outra criança de sua idade (17 anos e 362 dias), limitou-se a jogar fora o brinquedo gasto.

II

É um consenso achar que a vida se banalizou no país. A morte semeia chacinas, tocaia as esquinas e cavalga balas perdidas. Ninguém parece a salvo, daí a sensação de que a vida não é mais uma graça de Deus e, sim, uma concessão do crime. Entretanto, quem banaliza a vida não é a morte em seu ofício nem o criminoso em sua sanha — são os sobreviventes. Só eles podem compreender que a morte é o metro da vida e que reafirmar uma significa respeitar a outra. É o que não tem acontecido agora, quando a nação, ante a violência crescente, promove passeatas e clama por paz, como se a morte tivesse ouvidos e o criminoso, coração. Por que essa gente não se recolhe às igrejas e vai pedir aos céus a paz que grita nas ruas? Seria menos insensato e mais condizente com a seriedade que se exige dos vivos em face da vida. Entretanto, a violência foi politizada e tornou-se bandeira de luta. A afirmação da vida que se vê nas campanhas contra a violência é apenas um panfleto que se esfrega na cara das autoridades. Por isso é fácil esquecer o crime bárbaro de Anicuns — ele não se presta a passeatas, mas à perplexidade. E caso se busque, além dos próprios criminosos, um culpado pelas mortes do casal Luiz Fernando e Erlane Mayara, não se vai achá-lo na desigualdade social nem no descaso do governo, mas na lei — o Estatuto da Criança e do Adolescente é o principal cúmplice desse crime.

Em breve, no decorrer do inquérito policial, os monstros de Anicuns que barbarizaram Luiz Fernando e Erlane Mayara terão de reconstituir o crime. Entretanto, quem precisa reconstituí-lo — não em cena, mas na consciência — é a elite pensante do país, notadamente os intelectuais universitários. Ao contrário do que disse a imprensa goiana, o facínora Kléber Batista da Silva não foi o –autor intelectual– da barbárie de Anicuns. Se à sanha dos instintos mais abjetos pode-se atribuir alguma ordem intelectual, ela deve ser buscada nos cineastas, escritores, juristas, professores universitários, ideólogos de esquerda e outros intelectuais que, nas últimas décadas, à força de demonizar o capitalismo, empenharam-se em santificar o crime, começando pelo assalto, relevado como desapropriação justa, até chegar ao aceite do estupro, do seqüestro e do homicídio, cinicamente explicados como patologias sociais derivadas da desigualdade econômica. Hoje, por mais desumano que seja um criminoso e por mais bárbaro que seja o seu crime, não faltam sociólogos, psicólogos e até juristas para explicá-los como efeito da miséria material da sociedade. É o materialismo histórico em sua versão moral. É o homem reduzido às relações econômicas. É a verdadeira morte de Deus, profetizada por Nietzsche. Em tese, é como se a miséria sedenta de Justiça não pudesse gerar um Jesus Cristo e a riqueza premida pelo remorso não nos pudesse dar um Francisco de Assis.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), que completou 10 anos na quinta-feira, 13, o crime de Anicuns foi um misto de fatalidade histórica e determinismo social. Dois jovens, embebidos um no outro dentro de um carro, não perceberam quatro vultos que se acercaram deles. E se não fosse a arma apontada para a janela do carro, o casal de namorados não teria motivos para sustos. Nenhum dos rostos a emergir da noite tinha a face hedionda do criminoso de folhetim, aquele que, um dia, o médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909) imaginou descrever cientificamente. Os vultos — Kléber Batista da Silva (22 anos), Jamil Bernardes Garcia Júnior (18 anos), A.R.S (17 anos) e Claudiomiro Humberto dos Santos (22 anos), que se recusou a participar do crime — poderiam confundir-se, facilmente, com quaisquer estudantes comuns. Dois deles, Jamil e Claudiomiro, até mesmo se enquadram no odiado perfil caucasiano dos colonizadores, tão estigmatizado durante as comemorações dos 500 Anos. Ambos são jovens muito bem torneados pela vida, indicando uma origem social razoável, expressa no porte altivo de quem nunca padeceu humilhações cruéis.

A Reeducação de Hitler

Mas é contra a lei pensar assim e se pode até ser processado por isso. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os atos que aqueles jovens praticaram — assalto, seqüestro, tortura, curra, assassinatos e queima de cadáveres — só podem ser explicados por sua origem social — quatro sinas de miséria ante o privilégio dos ricos. Cristalizou-se entre os intelectuais brasileiros a idéia de que todo crime tem causas sociais e que basta equacionar a distribuição de riqueza para voltarmos ao Jardim do Éden. Esse pensamento, oriundo da esquerda universitária, é tão forte que impregna até a elite empresarial e, por medo da pecha de nazi-fascistas, são raros os que ousam desafiá-lo. A Constituição de 1988 já reflete esse espírito ao prescrever uma pena máxima de 30 anos para qualquer criminoso, por mais cruéis e renitentes que sejam os seus crimes. E o que é mais grave: se fossem brasileiros, Calígula e Hitler seriam considerados recuperáveis e, com apenas cinco anos de cadeia, estariam soltos, por bom comportamento. É o que vai acontecer com Kléber Batista da Silva, que antes de barbarizar o casal de Anicuns já tinha assassinado Pedro Lourenço Correia, em Sanclerlândia, para roubar-lhe uma bicicleta e dois reais.

Mas não pára aí a criminalidade institucional brasileira. Jamil Bernardes Garcia Júnior, o primeiro a estuprar Erlane Mayara e o que a matou, pondo fogo no cadáver, cometeu o crime quando tinha 17 anos, 11 meses e 27 dias, ou seja, apenas 72 horas antes de completar 18 anos. Portanto, era mentalmente uma criança, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, e não pode ser punido — apenas reeducado. Sequer vai preso, é apenas –apreendido– e recolhido a um batalhão de polícia, que se encarrega de sua guarda. Entretanto, Jamil é conhecido pelas instituições que lidam com menores infratores desde os 14 anos, apesar de pertencer a uma família de classe média baixa de Anicuns e nunca ter-lhe faltado casa, escola, roupa e comida. Por volta dos 15 anos, além dos pequenos furtos que vinha praticar em Goiânia, Jamil tinha uma estratégia para ludibriar a polícia sempre que ia usar droga. Com seu grupo de comparsas mirins, subia um morro em Anicuns, levando um gravador e fitas cassetes. Do alto, tinha uma visão estratégica dos arredores. Quando percebia a aproximação da polícia, escondia a droga e ligava o gravador — cânticos falando de Jesus ecoavam no morro e a polícia pensava tratar-se de um grupo de jovens evangélicos em retiro espiritual.

Um promotor que o conhece desde essa época aposta que Jamil será solto antes de um ano. O conceito de progressão de pena, que beneficia o preso segundo seu comportamento, vale até mesmo para a irrisória medida sócio-educativa de três anos que é aplicada a um assaltante, estuprador, assassino e torturador como Jamil. Astucioso, ele já alegou que foi coagido por Kléber a praticar o crime, o que, no seu caso, por ser menor, constitui-se num forte atenuante aos olhos do da lei. Alia-se a isso o bom comportamento que todo preso brasileiro ostenta como sinônimo de arrependimento. (Que pai de família não seria bem comportado, abandonando o álcool e a irritação diária, se tivesse casa, comida, roupa lavada, lazer e até motel, sem ter que se preocupar com o desemprego, a saúde da família e as contas no final do mês?) E será num ambiente muito mais confortável do que o Cepaigo que Jamil e A.R.S. vão cumprir as –medidas sócio-educativas– da lei. Para Jamil, será muito fácil fingir-se arrependido, fazendo limpeza no quartel, servindo cafezinho às visitas e até adotando uma compungida religião de conveniência.

Os Mártires Sociais — Todo criminoso é um mestre no exercício da astúcia. O sujeito que age como as feras, sem mover-se pela fome que as impele, é alguém que perdeu todos os princípios. Por isso, acreditar que alguém assim possa ser recuperado com trabalho, esporte, lazer e conselho é ter fé na conversão do Diabo. Entretanto, os grupos de direitos humanos e os agentes da Pastoral Carcerária parecem acreditar que, um dia, o Inferno vai virar Paraíso. Muito mais marxistas do que cristãos e sempre dispostos a ver mártires sociais onde só existem anomalias humanas, os agentes pastorais deixaram de oferecer aos criminosos, mesmo aos bárbaros, a possibilidade do arrependimento ou a eternidade do inferno. Em lugar de prescrever penitências segundo a gravidade do crime, como se fazia antigamente, preferem oferecer a terapia de uma religião sociológica, que parece ter como hino os versos de Chico Buarque e Rui Guerra — –não existe pecado do lado de baixo do Equador–.

Essa fé esquizofrênica em Cristo e em Marx, ao mesmo tempo, reflete-se em toda a vida brasileira, do menino de escola ao líder político, induzindo a sociedade a inverter o ônus da culpa em desfavor da vítima. No caso da barbárie de Anicuns, por exemplo, não faltaram autoridades repetindo na imprensa que os três anos de medidas sócio-educativas para os dois menores constituem uma punição muito dura, apesar das declarações indignadas do próprio secretário de Segurança Pública, Demóstenes Torres, lembrando que mesmo Kléber, o facínora adulto, não ficará mais do que cinco anos preso. Isso significa que, enquanto os pais das vítimas estão enfrentando sozinhas uma dor que pode levar ao desespero e à loucura, sem nenhum tipo de ajuda das instituições, dois dos algozes de seus filhos, Jamil e A.R.S., terão direito à assistência médica, psicológica, social e jurídica durante os três anos em que ficarão recolhidos em prisão especial. Até mesmo Kléber, quando for para a penitenciária, volta e meia terá psicólogos e psiquiatras a seu dispor, muitos deles ávidos por dar-lhe um atestado a de recuperação. Afinal, são os pobres que vão servir de cobaias para a reinserção social desses monstros.

Ancorados no permissivo Estatuto da Criança e do Adolescente, muitos promotores, juízes de infância e militantes de movimentos sociais não percebem a esquizofrênica contradição em que chafurdam ao depositarem tanta fé na recuperação de bárbaros. Ao mesmo tempo em que justificam o criminoso com a infinita compreensão de um materialismo cínico, exigem da vítima o infinito perdão de uma bondade divina. Porque não é outra coisa a irredutível negativa dessa gente em discutir prisão perpétua e pena de morte, contrariando um desejo autêntico da maioria da população. Estupro, roubo e seqüestro seguidos de morte há muito se constituem crimes sem perdão no imaginário brasileiro. Negar-se a discutir a prisão perpétua ou a pena capital nesses casos é exercer sobre a população já oprimida pelo crime a tortura psicológica da impunidade. Para a mãe de uma estudante pobre do Jardim Novo Mundo, ver que o estuprador de sua filha está novamente solto causa muito mais indignação e terror do que a impunidade de qualquer figurão da República. Só na cabeça de uma esquerda cega pelo cinismo e de uma direita corroída pelo remorso é possível imaginar que o pobre vê mais perigo no Luiz Estevão de Brasília do que no Luz Vermelha da esquina.

A Pior Impunidade

O resultado prático do Estatuto da Criança e do Adolescente — expressão máxima da nossa inversão de valores — é um sensível aumento da criminalidade entre os menores de 18 anos. Em reportagem publicada no jornal O Globo, na sexta-feira, 14, o promotor Márcio Mothé, da 2ª Vara de Infância e Juventude do Rio de Janeiro, reconheceu esse aumento. Segundo ele, cerca de 250 menores eram detidos mensalmente, em 1990, por envolvimento com crimes. Hoje, a média é 450 por mês, quase o dobro. Mas o promotor não culpa o Estatuto, culpa a sociedade, que, segundo ele, não o tirou do papel. Ora, o Estatuto da Criança e do Adolescente não apenas saiu do papel como materializou-se em salvo-conduto do crime. Graças a ele, líderes de gangues, batedores de carteira, usuários de drogas e outros criminosos mirins, certos da impunidade, exibem nas escolas públicas de todo o país o currículo dos crimes que praticam nas ruas, vangloriando-se até mesmo das efêmeras passagens pela polícia. Sequer dos professores esses bandidos em botão escondem o orgulho por suas façanhas criminosas.

Essa é a pior impunidade, a que de fato compromete o futuro do país. A impunidade do político corrupto é virtual, limitada à televisão e só percebida pelos adultos. Já a impunidade do menor criminoso é concreta — são exatamente as crianças e os adolescentes em idade escolar, ávidos por descobrir o mundo e facilmente influenciáveis, que vão compartilhar do convívio desses facínoras, na porta da escola, na quadra de esportes, nas festinhas de final de semana. E até dentro da sala de aula, onde muitos continuam estudando sob a crença generalizada dos educadores de que um lobo entre ovelhas torna-se cordeiro. Muitos pais, quando mandam seus filhos para a escola pública, não imaginam que, na carteira ao lado, senta-se um Jamil, bonito, articulado, talvez sedutor, insinuando-se no coração de inocentes meninas e provocando uma secreta inveja entre os meninos. Aliás, foi na escola que Jamil tomou lanche com os cinco reais que lhe coube no assalto, seqüestro, curra, assassinato e queima de cadáver em Anicuns. Pareceria filme de terror, ao concluir este artigo, imaginar que ele ofereceu lanche para a coleguinha ao lado, possível Erlane de um amanhã muito breve?

José Maria e Silva
Goiânia (Goiás) Brasil

silvajm@uol.com.br

Prêmio Casa Grande & Senzala 2000: Declaração de Voto

Olavo de Carvalho

14 de julho de 2000

Membro do júri do Prêmio Casa Grande & Senzala 2000, para livros de interpretação da cultura brasileira publicados no ano passado, enviei este relatório à Comissão Organizadora em 14 de julho. Agora tive a satisfação de saber, da Fundação Joaquim Nabuco, promotora do concurso, que o Primeiro Prêmio foi atribuído, por maioria de votos, ao livro que escolhi, a História das Crianças no Brasil, obra coletiva organizada pela Profa. Mary del Priore, do Departamento de História da USP. A Comissão concedeu também Menção Honrosa a Errantes do Fim do Século, da Profa. Maria Aparecida de Moraes Silva, que, como outros membros do júri, recomendei especialmente para isso. Ao divulgar aqui o texto desta Declaração de Voto, expresso a grande alegria que me infunde a vitória das minhas candidatas, às quais auguro uma longa vida de sucessos na profissão científica que tão honrosamente representam. — O. de C.

Dos seis livros que me foram apresentados, dois merecem destaque: a História das Crianças no Brasil de Mary del Priore (org.) (1) e Errantes do Fim do Século, de Maria Aparecida de Moraes Silva (2). Pela profusão dos dados, pela minúcia das análises, pelo rigor da documentação e, last not least, pela limpidez da linguagem, eu votaria neste último, se o quadro teórico que o fundamenta não fosse tão estreito, bem na tradição dogmática de certa ciência social paulista para a qual o esquema marxista do conflito de classes continua a ser o nec plus ultra da explicação sociológica, com todo o cortejo de conotações denuncistas e pejorativas que o acompanha de praxe, pronto a fazer de cada tese universitária uma arma mortífera nos combates políticos e jornalísticos. Que esse esquema venha agora enriquecido pelas conotações da moda acadêmica norte-americana que dão teor de luta de classes às disputas de raças e às discórdias entre sexos, não o torna menos rígido e repetitivo, apenas revela sua ambição imperialista de tudo engolir, mesmo à custa das combinações mais forçadas, e de tudo transfigurar em combustível para sua máquina de guerra ideológica. Esse fundo polêmico nada teria de mais – de vez que ciência e paixão não se excluem –, se não fosse hábito e norma da referida tradição excluir, a priori, toda e qualquer outra hipótese ou explicação possível, não se dando nem o trabalho de mencioná-las, quanto mais o de discuti-las, e formando com a única que sobra, pelo acúmulo das descrições convergentes que a legitimam, uma poderosa impressão de verossimilhança que até o seu meio acadêmico de origem, otário de seu próprio engodo, acaba por tomar como base científica de uma crença racional. O que há de errado aí não é a paixão: é que essa paixão estreite, em vez de ampliar, o horizonte de concepção do pesquisador. É que seja paixão regressiva e não aventureira. É que seja obstinação atávica em vez de arrebatamento criativo.

Errantes do Novo Século é a aplicação, correta e elegante, de um esquema explicativo aprendido, fixo e infindavelmente repetível. Mas é aplicação correta, limpa, digna, com vários momentos notáveis. É produto bom de uma escola ruim.

Se existe menção honrosa neste concurso, peço pois concedê-la à Profa. Maria Aparecida de Moraes Silva.

Mas o Prêmio propriamente dito não posso deixar de atribuir, com alegria, a Mary del Priore e à equipe com que realizou esta magnífica História das Crianças no Brasil. Desde logo, pela originalidade e importância do tema, tão essencial para a compreensão dos mecanismos íntimos da História, e tão abandonado num país onde a atenção obsessiva aos problemas da educação escolar faz esquecer o estrato mais básico e decisivo da formação das mentalidades, que é a educação doméstica, a vida de família, onde se constela, às vezes em formas definitivas, a visão de mundo que vai orientar a existência adulta.

Se é verdade que “the Child is the Father of Man”, uma história que omita as crianças ou que só enfoque nelas a identidade pública e administrativa de futuros cidadãos, sem ir até às raízes emocionais e íntimas da sua mentalidade, é, se me permitem o paradoxo, uma História sem passado, uma História onde as vidas começam no meio, como estátuas que boiassem no ar sem pedestal.

Esta obra merece o Prêmio, também, pela abrangência do tratamento. Abrangência, primeiro, no tempo, que inclui desde os heróicos horrores da vida das crianças nos primeiros navios que aqui aportaram trazendo os colonizadores, até a triste condição dos pequenos trabalhadores e das crianças que vagam pelas ruas no Brasil de hoje, passando pelo cotidiano doméstico de meninos e meninas no Brasil-Colônia e no Brasil Império e pelos reflexos, na vida infantil, das guerras e das grandes transformações econômicas. Abrangência, em seguida, vertical, compreendendo todos os principais grupos e classes sociais. Abrangência, por fim, no sentido da variedade dos pontos de vista, que, sem a pretensão de esgotar as possibilidades de um tema praticamente ilimitado, trata de cercá-lo por vários ângulos, formando, como diz a própria organizadora, “um cruzamento de olhares”.

Não havia mesmo outra forma de devassar um terreno ainda praticamente virgem, no qual a forma do conjunto ainda se escondia sob uma multidão de perguntas setoriais irrespondidas – agora já em parte respondidas.

Se este livro merece um Prêmio que leva o nome da obra capital de Gilberto Freyre, é ainda e sobretudo por ser o primeiro sério esforço coletivo de universitários brasileiros para atender a um apelo do próprio autor de Casa Grande & Senzala no sentido de que se escrevesse “uma história do menino brasileiro – da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios – desde os tempos coloniais até hoje” (3). A História das Crianças no Brasil é obra que se insere com posto de honra na tradição gilbertiana – a mais poderosa e vivente nas nossas ciências sociais –, não somente por trazer a resposta a esse desafio científico lançado já em 1921, mas porque, na sua própria tessitura interna, permanece fiel à lição essencial do mestre, que é a de jamais perder de vista, no estudo da sociedade e de suas transformações, o elo vital entre o público e o privado, o grande e o pequeno, as mutações estruturais de longo alcance e os episódios da vida dos personagens de carne e osso.

Destaca-se, na coletânea, o trabalho subscrito pela própria organizadora, onde a força arquitetônica do grande painel não exclui a observação de detalhes por vezes surpreendentes e inusitados, mais reveladores, às vezes, do que todas as estatísticas e todos os registros oficiais.

Não me espanta que tão belo trabalho nos venha de historiadora da USP. Já por várias vezes tenho assinalado na instituição paulista, ao lado da miséria pomposa de sua sociologia e de sua filosofia, a seriedade, a criatividade e a riqueza intelectual do seu Departamento de História. Confirmo-as novamente neste livro. Ele tem desde já seu lugar assegurado na coleção de obras sem as quais não é possível conhecer e compreender o Brasil. É realização tão importante para todos nós que, de certo modo, ter participado dela já constitui, para cada um de seus co-autores, um prêmio. É obra que já nasceu premiada.

Rendo-me, pois, ao fato consumado e, sem a mínima hesitação, voto na História das Crianças no Brasil, de Mary del Priore e sua equipe, para o Prêmio Casa Grande & Senzala deste ano.

Poá, SP, 14 de julho de 2000

Olavo de Carvalho

Notas

1. São Paulo, Editora Contexto, 1999.

2. São Paulo, Unesp, 1999.

3. Cit. em História das Crianças no Brasil, p. 11.

Sokal em Portugal

Mendo Castro Henriques

Euronotícias, 7 de julho de 2000

netmendo@mail.telepac.pt

O leitor desprevenido poderá achar que o título sabe a cerveja, ou algo insípido do género empresarial. Mas não é disso que se trata. O leitor bem informado saberá que Alan Sokal iniciou em 1996 uma polémica que tem vindo a crescer em tudo quanto é revistas, internet, colóquios, e suplementos culturais, porque toca a magna questão de saber onde está a verdade. Bem, o termo verdade é excessivo; é preferível falar de credibilidade intelectual.

A história é conhecida. Em Maio de 1996 Alan Sokal, professor de física na Universidade de New York, publica na ‘Social Text’, revista norte-americana de crítica cultural identificada com a ”esquerda pós-modernista”, um artigo cómico feito a sério no qual afirmava que a ”ciência pós-moderna” abole o “conceito de realidade objectiva” e, assim, sustenta intelectualmente o ”projecto político progressista”. O artigo era uma sanduíche de ciências exactas e sociais e vinha recheado de citações de pseudo-filósofos proeminentes, sobretudo franceses – Derrida, Lyotard, Lacan, Deleuze, e dúzias de outros, entre os quais os editores da revista.

Poucas semanas após a publicação do artigo na “Social Text”, a revista “Lingua Franca”, (edição de maio/junho de 1996) traz um escrito em que Sokal denuncia o seu próprio “texto” e explica os motivos intelectuais e políticos da paródia. O artigo alarmante “Uma Transgressão de Fronteiras: em Direcção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica” (Ufa !!!!!!) era uma experiência que visava “desmistificar a nebulosa pós-modernista” que impede a esquerda de ser verdadeiramente esquerda. Durante o governo sandinista, Sokal ensinou matemática na Universidade Nacional da Nicarágua.

As experiências culturais deste tipo são raras. E a de Sokal desencadeou uma compreensível catadupa de reacções em todo o mundo, por vezes absolutamente opostas. Nos Estados Unidos, os editores de Social Textjuntaram a estultícia ao rídículo ao tentarem justificar o injustificável, em nome do relativismo pós-modernista. Segundo Steven Weinberg, Prémio Nobel de Física, Sokal denunciou para sempre uma tendência fatal da ciência contemporânea (“New York Review of Books”, 8/8/96 e 3/10/96). O caso continua a crescer. No Brasil A Folha de S.Pauloacompanha a polémica fantástica com textos de Roberto Campos, Olavo de Carvalho, Bento Prado Jr. e do próprio Sokal, entre outros. Em França o Le Monde e o Libération não se calam. A internet está povoada de sites dedicados ao tema. E muito apropriadamente, na era da informação pela qual aspiram os nossos governantes, o leitor consulte, por todos, o site de Alan Sokal, em http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/index.html.

O crescendo de reacções e a permanência de materiais por utilizar levou o nosso físico a publicar o livro Les Impostures Scientifiques des Philosophes (Post-)Modernes, juntamente com Jean Bricmont, professor de física na Universidade Católica de Lovaina. Tratava-se uma vez mais de mostrar que intelectuais famosos de esquerda, como Lacan, Kristeva, Irigaray, Baudrillard e Deleuze, abusam da terminologia e de conceitos científicos, quer usando ideias científicas totalmente fora do seu contexto, quer lançando o jargão científico à cara dos leitores não cientistas, sem considerarem a relevância nem o sentido. Na sequência da edição deste livro em França, um observador muito arguto (Carlos Leone in Expresso, Cartaz, 8 de Dezembro, 1997) escreveu que, “para o que interessa aos Portugueses, o drama é que não se leia de todo: nem Sokal, nem os seus adversários, tão pouco os impostores e os seus seguidores“. Não concordo, e interessa ao bem comum dos portugueses explicar porquê.

Por exemplo, na Faculdade de Letras de Lisboa dos anos 70, Foucault, Baudrillard, Deleuze, Lyotard, Kristeva, Derrida, eram autores incontornáveis; revolucionários malditos antes do 25 de Abril, benditos absolvidores depois da revolução. (Fui ver o meu exemplar de Les Mots et les Choses: veio de Paris no Verão de 1973; a Logique du sens, de Deleuze, comprei-a em Lisboa, em Dezembro de 1976). Por outras palavras: Foucault, Baudrillard, Deleuze, Lyotard, Kristeva, Derrida são autores que estão nas mentes (ou nos bolsos tipo EPC) de inúmeros professores de todos os graus de ensino formados nas décadas de 70 e 80.

Quem não cresceu intelectualmente continuará, 20 ou 30 anos depois, a formatar com dejectos culturais as mentes e os corações dos jovens que povoam o sistema educativo. Os telhados de vidro do relativismo cultural. A carapaça de esquerda como desculpa para a indigência mental. (E já agora, a carapaça de direita, também). A arrogância de que tudo é uma questão de linguagem. A promiscuidade entre ex-marxismo e liberalismo actual. A falácia de que a exigência de disciplina impede o cultivo da liberdade… A lista de horrores culturais no sistema educativo poderia continuar. On aurait tout vu. Não há formação que resista. Os pais só pedem que os filhos transitem. Os professores esforçam-se por evitar a retenção. Os miúdos falam com os pés e 40% abandonam antes do 9º ano. Voilà.

Por tudo isto, o caso Sokal é muito relevante para nós, como se apercebeu a editora Gradiva que lançou as Imposturas Intelectuais em 1999. O livro contém capítulos dedicados aos malditos autores pós-modernos – mas também contra Popper – e dois intermezzos, um sobre o «relativismo cognitivo na filosofia das ciências», o outro sobre «a teoria do caos e a ciência pós-moderna». Formalmente, é um pouco como Fukuyama: as teses reflectem uma verdade convencional aceitável dentro de certos limites; ficam cada vez mais inaceitáveis quando se lhes pretende dar um valor superior. Como bem escreveu Carlos Leone, (http://www.uc.pt/ciberkiosk/arquivo/ciberkiosk5/opiniao/sokal.htm) “a argumentação de Imposturas Intelectuais é correcta porque não se exime a uma avaliação das fraquezas próprias de cada participante na discussão“.

Cada um que extraia as suas conclusões. Uma conclusão sóbria e reconfortante para os espíritos mais timoratos é de que Sokal retoma o eterno conflito entre as “duas culturas”, descrito por Edgar Snow. Num país onde o Ministério da Cultura não trata da ciência e onde o Ministério da Ciência e Tecnologia se esforça por ter uma cultura, nunca é de mais lembrar ao cidadão que a literacia tanto consiste em saber ler o orçamento de Estado como um poema de Álvaro de Campos. Lá diz o poeta: “Há é pouca gente para dar por isso

Uma segunda conclusão, politicamente correcta, para o caldo cultural norte-americano, é a do próprio Sokal ( e que semi-seguidores nacionais como J.C. Espada gostariam de transliterar para português). Segundo ele, o escândalo parece ter efeito no mundo académico, nas humanidades e nas ciências sociais, afinal o alvo da experimentação. No debate voltam a ser escutados os velhos argumentos racionalistas contra o pós-modernismo. Neste sentido, Sokal, que se assume de esquerda, faz trabalho semelhante a Stanley Rosen e Allan Bloom, (o da Cultura Inculta) confessadamente discípulos do conservador Leo Strauss.

Outra conclusão de todo este ataque generalizado ao pós-modernismo é extraída pelos opinion-makers de serviço ao culturalmente correcto. Apresentadas as credenciais de esquerda num país cujo debate público intelectual está retardado, pode-se dar recados moralistas de direita, ou recados anti-globalistas, ou pró-federalistas, muitas vezes encomendados pelos ausentes-presentes da vida política, como demonstrou José Adelino Maltez no anterior artigo desta série.

Mas quem se esquece que Marx se ergueu sobre os escombros do socialismo utópico? Que Gramsci criticou Lenine? Que de uma santa capela para a outra, como lembrou Raymond Aron, cada nova geração do esquerdismo nasceu da proclamação do descrédito da anterior? Como escreveu Olavo de Carvalho, “de cada nova série de vexames, horrores e fracassos, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal“. Neste sentido Sokal executa de novo o velho ritual cíclico em que a esquerda se alimenta da sua própria negação. O seu tiro ao alvo acaba também por o atingir. E o que ressalta mais é a imagem de falsa respeitabilidade da esquerda intelectual como um todo. Contra hipócritas, só há uma arma: a busca da verdade.

O caso Sokal continuará a lançar luz sobre os costumes de uma casta de fazedores de opinião que usam o culturalmente correcto para substituir a busca da verdade. Ajuda a perceber que nem vale a pena criticar os produtos terminais da cultura – como sejam as séries, filmes e novelas de televisão – quando não se fez o trabalho de casa de criticar a indigesta mistura de epistemologia liberal com moralismo acaciano. A arrogância dos relativistas de rua tem contribuído fortemente para o estado de deliquescência em que se encontra a opinião pública. É do bem comum dos portugueses impedir que as milícias moralistas de salão os venham substituir.

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