Leituras

O preço que paguei por acreditar em Cuba foi alto demais

DEPOIMENTO DE UMA BRASILEIRA

30 de janeiro de 2001

Giselle Gil

Prezado Olavo de Carvalho,

Acabei de ler o seu artigo publicado pela revista Época desta semana. Não pude deixar de viajar no tempo e reviver todo o sofrimento que passei naquela ilha.

Não fui fazer turismo, vivi na ilha durante alguns meses, pude conhecer pessoas e convivendo com elas no dia a dia perceber a dureza de sua realidade.

Embora o aspecto seja paradisíaco, há muita miséria neste país. A pior de todas é a miséria moral, a cultura da mentira, mas isso o turista não percebe…

Meu marido era diplomata e foi servir em Cuba. Eu incentivei a escolha, principalmente em razão do nosso filho que estava para nascer, pensando que nada lhe faltaria: teria os alimentos básicos, vacina, um bom pediatra… era isso que importava, não estava preocupada com pequenos confortos supérfluos e acreditava piamente que não passaria nenhum tipo de necessidade.

Doce ilusão…

Não consegui as vacinas para o bebê, tive de pedir a amigos que as trouxessem do Brasil, embora Cuba exporte vacina. Como entender, se lá estão sempre em falta?

Descobri que em Cuba você não tem empregados, todos os trabalhadores são funcionários públicos. Você contrata uma empresa (Cubalse), paga dez vezes o valor que é repassado ao trabalhador (explorado). Logicamente contratei uma babá no mercado negro. Pagava a ela US$ 100,00, o que era uma verdadeira fortuna em termos cubanos, uma vez que esta senhora era enfermeira formada e recebia US$ 10,00 de aposentadoria e o marido, médico, outros US$ 15,00.

A família estava numa tal situação de penúria que um dia vi que ela recolheu do lixo umas peles de frango que eu havia jogado fora, com aquilo ela pretendia fazer uma canja e estava satisfeitíssima.

Além dessa senhora eu tinha também uma empregada que fazia o serviço de casa, a situação desta outra era bem melhor que a da babá, pois o marido trabalhava num bar e ganhava gorjetas em dólares. Esse é outro problema de Cuba, os jovens estão desistindo de estudar, pois vale mais a pena trabalhar com turistas, onde podem receber um pouco mais.

Tratar a todos de forma igual nem sempre é justo, muitas vezes beneficia o preguiçoso. Assim eu me sentia quando ia a uma das feiras. Havia muito pouco que comprar, e em moeda cubana nada era barato. Oras, se o agricultor colher vinte cebolas, receberá por elas US$ 5,00; se colher duzentas receberá US$ 5,00, se colher duas mil, seu prêmio será o mesmo. Solução: comida de potinho comprada no Diplomercado.

Não me pergunte o que as crianças cubanas comem, não consegui descobrir.

O que me deixava louca era a forma com eles mentiam. No prédio onde eu morava, quando aluguei o apartamento me garantiram que não havia nenhum problema com o abastecimento de água. Ocorreu que, pelo menos três vezes por semana, não havia água nas torneiras.

Fui pedir a um administrador do prédio que me avisasse um pouco antes para que pudesse armazenar um pouco de água ou me programar de forma que não me pegasse desprevenida. Ele me olhou, sorriu e disse: “Neste prédio nunca falta água”. Tentei argumentar, ele respondeu categoricamente a mesma coisa. Entendi o recado… e era o mesmo que a tv noticiava todos os dias: Cuba era a ilha da fantasia, nada de ruim acontecia lá… Fidel distribuía diplominhas de alfabetização e na reportagem seguinte, de forma muito didática, apareciam crianças brasileiras com os dedos decepados pelo trabalho…

Toda a miséria de Cuba é culpa do Embargo. É ele quem mantém Fidel no poder, porque os cubanos acreditam nisso e não vêem que nada produzem, além de cana-de-açúcar (rum), em uma quantidade que para nós é insignificante, e charutos. O resto chega por navios ou não chega.

O controle da população é incrivelmente eficaz. Fidel institucionalizou a fofoca. Em cada quadra existe um CDR (Dentro de Defesa da Revolução) onde vizinhos se reúnem para proteger o regime. Lembro-me que certa vez meu esposo emprestou um livro de poesias a um garagista do prédio… o rapaz foi visto lendo o livro e foi inquirido se as poesias eram marxistas ou anti-marxistas. Os bons comunistas têm algumas regalias, os melhores empregos, os melhores colégios para os filhos e outras vantagens. Os que não concordam acabam por ser punidos, de uma forma ou de outra, além disso muita gente continua morrendo “comida por tubarões”.

Apesar de todas as dificuldades, eu não pensava em voltar ao Brasil, mas tive de retornar muito precocemente e sem o meu esposo, que faleceu vítima de um erro de diagnóstico, aos trinta anos. Ele sofreu um típico infarto em casa (não sou médica, mas todos os sintomas eram de infarto) e eu corri ao Hospital Cardiovascular de Havana, onde me disseram que meu marido estava bem (fui tratada como louca) e, depois de deixá-lo esperando sentando num banco por pelo menos duas horas sem socorro, ignorado pelos médicos, pedi que lhe dessem alta, pois via que a situação estava se agravando. Ao chegar ao carro ele começou a ter convulsões, e eu fui correndo chamar o médico, que, com muita má vontade, chegou na janela do carro e disse a ele que respirasse devagar. Inconformada e desesperada, levei-o imediatamente para a Clínica Cira Garcia, onde o primeiro diagnóstico foi hipoglicemia, depois me disseram que na verdade ele estava tendo uma embolia pulmonar, mas que o caso era simples, embora necessitasse de uma UTI. Transferiram meu marido para o terceiro hospital, Hermanos Almejeras, lá o médico veio conversar comigo, confirmou o diagnóstico de embolia pulmonar e me disse que ficasse calma, pois ele estaria bem e em poucos minutos eu poderia vê-lo… Não houve tempo: ele faleceu antes disso. Uma semana depois recebo o atestado de óbito com o laudo do exame necrológico: Infarto agudo do miocardio. Não creio que seja necessário descrever toda a minha dor, mas a minha revolta, esta sim, sempre fiz questão de revelar, pois após todo esse episódio escrevi uma carta ao Ministério da Saúde de Cuba, denunciando principalmente a maneira desumana como meu marido foi tratado no Hospital Cardiovascular. Fiz isso não por mim, nem por meu marido, mas por todos os cubanos, que não podem nem reclamar. Obtive uma resposta cínica onde simplesmente me disseram que a demora no atendimento não tinha nexo com o falecimento do Marcus.

Não houve realmente demora, o que faltou foi diagnóstico e dignidade. O preço que paguei por acreditar em Cuba foi alto demais. Por isso, mais que testemunha, sou vítima e infelizmente não sou a única. Não sei qual o futuro de Cuba, nada tenho contra Fidel, amo esse povo oprimido, que soube ser solidário comigo na minha dor, mas não creio que a situação possa se manter por muito tempo. quarenta anos é demais e se o povo estivesse satisfeito não haveria necessidade de censura. Estou certa de que as coisas vão mudar, apenas não sei se vão melhorar ou piorar.

Parabéns pela coragem de publicar esse artigo, estou certa que vai desagradar a muita gente que usa essa imagem mentirosa que Cuba procura vender (e investe muito em propaganda) de país modelo de educação (sem ter lápis, livros ou papel) e saúde pública.

Giselle Gil
agathatriste@uol.com.br

Censura e desinformação

Olavo de Carvalho

Especial para Ternuma

Publicado no site Ternuma em 26 de novembro de 2000

Quantas reportagens o prezado leitor leu na imprensa ou viu na TV, ao longo dos últimos vinte anos, sobre esquerdistas mortos pelos governos militares? Quantas sobre os homicídios cometidos pelas organizações de esquerda? Quantas sobre a revolução comunista já em plena realização em março de 1964, que uma reação oportuna fez abortar?

Basta o leitor responder a essas perguntas com dados exatos, e terá uma idéia do que é bloqueio de informações. Sim, o controle que a esquerda exerce sobre os meios de comunicação no Brasil já não pode ser chamado de “patrulhamento”, porque patrulhar é vigiar homens livres. Os poucos liberais e conservadores que ainda restam na nossa imprensa são prisioneiros. Não estão sob a vigilância de “patrulhas”. Estão sob a guarda de carcereiros. Ainda podem se mover, mas seu espaço é controlado para não ultrapassar uma área mínima, calculada na medida justa para dar uma impressão de democracia. E devem se restringir a áreas seletas, especialmente à seção editorial e aos comentários econômicos, só lidos por uma elite. O noticiário, que atinge a massa dos leitores, é zona proibida. A seleção é extremamente inteligente: os direitistas podem ter “opiniões”; a seleção dos “fatos” fica com a esquerda.

Tão completo e inquestionado é o domínio que ela aí exerce, que, com a maior desenvoltura, pode passar da seleção à invenção sem sentir o menor escrúpulo de consciência ou o menor temor de ser desmascarada.

Outro dia, ouvi, num programa de TV que se dava ares de reconstituição histórica, a informação de que no governo militar a censura mudou para mais tarde o horário da novela “Sangue do meu Sangue” porque ela tratava da luta abolicionista.

Isso dito assim, na lata, com uma prodigiosa cara de pau.

Mas a sucessão de lendas macabras que faz as vezes de “História” daquele período é tão caudalosa, a expressão de seriedade com que renomados professores repetem essas fábulas é tão convincente, e sobretudo o silêncio daqueles que conhecem os fatos é tão geral e profundo, que é bem possível que a população, reduzida à mais inerme sonsice por esse massacre midiático, chegue mesmo a acreditar que os militares de 1964, além de assassinos, sádicos, torturadores, ladrões e vendidos ao imperialismo, eram também escravagistas.

Diariamente, dez ou vinte mensagens desse tipo são enxertadas na programação de vários canais. “Enxertadas” é a palavra. São sempre frases breves, com aparência de casuais, inseridas no curso de alguma fala sobre assunto diverso, de modo a captar não a atenção do espectador, mas, precisamente, a sua desatenção. Não visam a produzir a aquisição consciente de uma informação, mas a absorção inconsciente de um hábito. Não se incorporam ao acervo de conhecimentos do espectador, mas à programação de suas reações impensadas, que, por isto mesmo, ele acaba sentindo como as mais livres e espontâneas.

Não menos perversa do que a ocultação completa ou do que a insinuação velada é a pseudo-divulgação, que noticia um fato de modo a propositadamente evitar que chame a atenção. Esta notícia, por exemplo, que normalmente deveria suscitar debates e novas investigações, saiu num canto de página, como que para encerrar o assunto:

Cuba treinou 202 brasileiros, diz Exército

Mário Magalhães
Folha de S. Paulo, domingo, 11 de junho de 2000

O governo de Cuba promoveu, de 1965 a 1971, treinamento de guerrilha para no mínimo 202 militantes de esquerda brasileiros.

Eles fizeram cursos — de três meses a um ano de duração — de guerrilha rural e urbana, fotografia, imprensa, enfermagem, inteligência, instruções revolucionárias e explosivos.

Num programa padrão de seis meses, eram dadas aulas de fabricação de bombas caseiras, uso de armas, sabotagem, camuflagem e outras técnicas de ações clandestinas na cidade e no campo.

Ao voltar, os brasileiros recebiam um kit dos cubanos com US$ 1.000, roupas e orientações para contatar companheiros no Brasil. Havia dez instrutores militares principais.

As informações constam do álbum “Cursos realizados em Cuba”, documento confidencial distribuído para órgãos de repressão política em 21 de novembro de 1972 pelo Comando do 1º Exército. O álbum, com 107 páginas, foi encontrado pela Folha no Arquivo Público do Estado do Rio.

As fontes aparentes são depoimentos de guerrilheiros depois presos no Brasil — não é citada a tortura, então disseminada — e agentes infiltrados que cursaram a “escola” cubana.

De acordo com o Exército, outros 43 brasileiros podem ter recebido, no período 1965-71, formação militar do governo comunista de Fidel Castro.

O objetivo era prepará-los para a luta armada contra o regime militar brasileiro (1964-85). Não deu certo.

Da lista elaborada pelo Exército, há pelo menos três militantes que hoje são parlamentares: os deputados federais José Dirceu (PT-SP) e Fernando Gabeira (PV-RJ) e o deputado estadual do Rio Carlos Minc (PT).

Dirceu integrou o Molipo (Movimento de Libertação Popular). Gabeira, o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Minc, a Var-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária — Palmares) e a VPR.

Atualmente, os três são tidos como “moderados” pela esquerda mais radical.

Assim um jornal resguarda sua imagem de imparcialidade, ao mesmo tempo que contribui decisivamente para que só a voz de um dos lados seja ouvida. Por que a “Operação Condor”, tão logo desentranhada dos arquivos, desperta um escândalo nacional, e logo depois a notícia da interferência cubana que a provocou é publicada discretamente, sem comentários e sem o menor eco nos programas de TV, nos meios intelectuais, no próprio governo? A resposta é simples: após quarenta anos seguidos de “trabalho de base” nas redações, sem encontrar a menor resistência, os comunistas conseguiram impor seus critérios ideológicos como se fossem a única norma existente, a única norma possível do bom jornalismo. Hoje em dia, milhares de jornalistas que de comunistas não têm nada subscreveriam a seguinte declaração: “A missão da imprensa é minar, pela crítica, as instituições vigentes” – sem saber que a frase é de Karl Marx e que ela não é uma receita para fazer jornalismo e sim para fazer uma revolução comunista.

A característica mais notável do atual jornalismo brasileiro é a troca progressiva da informação pela desinformação sistemática.

O termo desinformação surgiu pela primeira vez em língua russa: desinformátsia. É termo técnico concebido pelo Comintern — o comando do movimento comunista internacional — para designar o uso sistemático de informações falsas como instrumento de desestabilização de regimes políticos.

O objetivo central da desinformação é produzir o completo descrédito das instituições, induzindo a opinião pública a transferir aos agentes da desinformação a confiança que normalmente depositaria no Estado, nas leis e nos costumes tradicionais. O processo é bem conhecido e já foi descrito em muitos livros, por exemplo o clássico de Roger Mucchielli, La Subversion (Paris, Bordas, 1971) e o Tratado de Desinformação de Vladimir Volkoff (publicado originalmente em francês pelas Éditions du Rocher, mas do qual só tenho em mãos a tradução romena, Tratat de Dezinformare. De la Calul Troian la Internet, tr. Mihnea Columbeanu, Bucuresti, Antet, s/d).

Petit Robert define desinformação como “o uso de técnicas de informação, notadamente de informação de massa, para induzir em erro, ocultar ou travestir os fatos”. Desinformar, segundo o mesmo dicionário, é “informar de maneira a ocultar determinados fatos ou a falsificá-los”. Mas a palavra não apareceu em línguas ocidentais antes de 1972, quando o Chambers Twentieth Century Dictionary, publicado em Londres, traduziu desinformátsia como “deliberate leakage of misleading information”.

desinformátsia não apareceu de repente, mas teve antecedentes milenares — Sun-Tsu já dizia: “Todo esforço de guerra baseia-se no engodo”. As diferenças específicas que a tornam um fenômeno peculiar do século XX são as seguintes:

1. Ela é usada não somente como instrumento de guerra entre Estados, mas sobretudo por forças revolucionárias que agem dentro de seus próprios países, seja por iniciativa própria, seja a serviço de outros Estados.

2. Para muitos Estados modernos — bem como para os poderes internacionais que hoje nos impõem uma “Nova Ordem Mundial” — fomentar revoluções nos outros países tornou-se um modus operandi normal e predominante, mesmo em tempo de paz. A moda começa com a casa real francesa, que ajuda a Revolução Americana para prejudicar a Inglaterra, sem imaginar que com isto atraía a maldição sobre si mesma. A Inglaterra aprende a lição e ao longo do século XIX fomenta revoluções nas colônias americanas para destruir seus concorrentes ibéricos. Os EUA atiçam revoluções no México para se apropriar do Texas e da Califórnia. Até aí, porém, o uso desse instrumento era esporádico. A Revolução Russa assinala o surgimento do primeiro Estado voltado essencialmente a fomentar revoluções no resto do mundo: cada “guerra de libertação” resulta na expansão colonial da URSS. A Alemanha nazista copia esse procedimento durante algum tempo, sem muito sucesso. Com a queda da URSS, a China e Cuba tornam-se os derradeiros fomentadores de revoluções comunistas, ao mesmo tempo que a disseminação de revoluções — com o nome atenuado para “movimentos sociais” — é adotada pelos grandes organismos internacionais como um dos procedimentos básicos para expandir e consolidar seu poder sobre as nações do Terceiro Mundo.

3. De elemento auxiliar dos meios de ataque físicos, a informação tornou-se o campo e instrumento predominante da atividade guerreira.

Tudo isso veio a tornar a desinformátsia uma arma de uso generalizado e permanente, principalmente depois que, pela primeira vez na história dos imperialismos, a expansão da URSS se fez muito mais pelo artifício de fomentar revoluções do que pelo envio de tropas, de modo que praticamente cada “guerra de libertação” ocorrida no século XX terminou com a instauração de mais um satélite soviético.

Não obstante, a liberdade de imprensa assegurou que, nas democracias ocidentais, uma grande parte dos meios de comunicação conservasse sua independência, seja dos governos de seus próprios países, seja de forças internacionais interessadas em utilizá-los para seus objetivos. Assim, uma diferença radical entre o jornalismo profissional de informação e o jornalismo de desinformátsia e combate permanece ainda bem visível, em linhas gerais, na maioria dos grandes jornais dos EUA e da Europa.

O que singulariza o caso brasileiro é a total supressão dessa diferença e a adoção maciça da desinformátsia em lugar dos procedimentos válidos do jornalismo. Tão geral e avassaladora foi essa transformação, que hoje a maior parte dos jornalistas já não tem mais a menor idéia do que seja o jornalismo normal e, ao praticar descaradamente a desinformátsia, acredita estar fazendo o único e melhor jornalismo possível. Apenas uma elite dirigente tem plena consciência de que não está informando o público, mas manipulando-o para utilizá-lo numa operação de guerra. Nas redações, a maioria dos profissionais não tem sequer uma consciência teórica dessa distinção.

Por isso, mais do que nunca, só logram acesso à informação correta os cidadãos que tenham a iniciativa de buscá-la pessoalmente nas fontes, hoje tornadas mais acessíveis pela internet. Existirá censura mais pérfida do que aquela que consegue vetar a divulgação da sua própria existência? Existe. É aquela que continua a fazê-lo quando as notícias vetadas já passaram à História. É aquela que bloqueia não apenas o acesso ao presente, mas ao passado. Mas a proibição do passado é, por seu lado, a mais importante notícia – ela também vetada – sobre a vida presente. Por isso o site de Ternuma, ao revelar o passado proibido, ilumina mais ainda o presente.

René Girard e a coletividade homicida

Olavo de Carvalho

17 de novembro de 2000

Transcrição de intervenção na mesa-redonda em torno do pensamento de René Girard, realizada no anfiteatro da UniverCidade (Rio de Janeiro), 17 de novembro de 2000.

          Depois do que o Prof. Girard nos ensinou, não temos mais o direito de ser ingênuos sobre nossas crenças, sobre a ética, o bem e o mal etc. O Brasil há mais de dez anos está envolvido numa espécie de discurso ético purgativo, segundo o qual acredita-se que com a punição dos corruptos tudo ficará bem. E isso está tão evidentemente relacionado com o rito sacrificial do bode expiatório que eu gostaria de sugerir que aproveitássemos a presença do Prof. Girard entre nós como uma oportunidade para meditarmos a onda moralizante brasileira à luz dos seus ensinamentos: não estaríamos procurando apenas mais um pretexto edificante para a violência e a perseguição?

          Mas eu desejaria também colocar um outro problema, de ordem teórica, que me atormenta desde que li alguns dos livros do Prof. Girard. É o seguinte: evidentemente, existe nas religiões essa constante que ele assinalou desde o início das suas investigações, que é o elemento sacrificial, porém há também outras constantes. Uma delas é a presença da linguagem simbólica. Não houve nenhuma religião que viesse ao mundo inicialmente sob a forma de uma doutrina logicamente exposta, de um sistema lógico-doutrinal. Ao contrário, pode-se desenvolver um sistema lógico-doutrinal ao longo do tempo, mas a forma inicial de representação da religião é sempre uma narrativa ou um poema simbólico, seja composto de elementos fictícios ou de acontecimentos reais — como a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo — fortemente carregados de simbolismo. O que caracteriza esse elemento simbólico é o fato de ele poder ser compreendido em diferentes níveis, que guardam entre si uma ligação analógica. Quando tomamos o conjunto das narrativas e símbolos de uma religião, podemos ver ali ou o esquema da ordem da sociedade ou o esquema da ordem da alma, do mundo interior do indivíduo humano. Nesta última hipótese, temos a perspectiva que se aproximaria mais da mística ou do “esoterismo”, e na primeira, temos uma perspectiva legalística, “exotérica”, da autoridade religiosa, das regras morais e da construção do Estado. Ora, conforme encaramos esse conjunto sob um aspecto ou sob o outro, obtemos, às vezes, sentidos inversos. Por exemplo, num aspecto místico, de busca de uma perfeição espiritual pelo indivíduo, aquilo que corresponde à ascese ou à alquimia interior, seria exatamente aquilo que no plano social, no plano coletivo, corresponderia justamente à matança, ao genocídio. Isto é muito nítido no Baghavad-Gitâ, ou na narrativa bíblica das guerras judaicas: o que, na ordem dos fatos exteriores, é violência e morticínio, na ordem interior é ascese, autodomínio espiritual, vitória sobre as paixões violentas. Na religião islâmica, há uma série de práticas interiores das ordens místicas, que têm pouco a ver com as obrigações legais e rituais da religião coletiva, mas se destinam a utilizar a substância das paixões mais inferiores, mais violentas, como matéria-prima que, queimada no forno, no altar da prática mística, se converterá em virtude, em conhecimento espiritual, naquele sentido em que é possível dizer, com Sto. Agostinho, que as virtudes são feitas da mesma matéria dos vícios: partindo dos vícios, tomando-os como matéria-prima e queimando-os no forno da meditação e da concentração, o pecado se substitui pela graça. Quando abandonamos esse nível interior e rebatemos isso para o plano da sociedade, aí entramos em plena matança dos inocentes, em plena perseguição do bode expiatório.

          Para colocar esse problema de maneira mais clara, eu vou sugerir a leitura comparativa de dois livros: um é do próprio Prof. Girard, que é O Teatro da Inveja, o qual interpreta toda a obra de Shakespeare à luz da teoria do desejo mimético, da inveja e do bode expiatório; o outro livro, que interpreta a obra de Shakespeare no sentido interior e místico, é o de Martins Lings, que se chama The Secret of Shakespeare. São as duas melhores obras que já se escreveram sobre Shakespeare. As interpretações que elas nos apresentam são radicalmente diferentes e se colocam em planos distintos, mas pessoalmente não vejo antagonismo entre elas. Vejo uma complementaridade justamente quando, passando do nível interior para o nível exterior, coletivo ou político, saímos do espírito que vivifica para a letra que mata, isto é, passamos da abordagem místico-ascética (Lings) para a abordagem ritualístico-sacrificial (Girard). É justamente o aspecto da letra exterior que corresponde ao território abrangido por este esplêndido estudo do Prof. Girard, A perseguição. O que eu gostaria de saber é como é que ele articula esses dois planos, se é que essa comparação já lhe ocorreu. O tema, em si, é de importância extraordinária e nos lança no núcleo mais vivo, mais explosivo do problema da interpretação das criações culturais: como é que aquilo que de um lado significa a matança dos inocentes pode, por outro lado, significar o sacrifício do eu, do egoísmo e das paixões violentas? O próprio Prof. Girard insinua uma solução ao dizer que o coletivo é assassino por natureza, afirmação que devemos articular com a lição de Sto. Agostinho, de que a verdade que salva habita no interior do homem. Essa articulação abre perspectivas para a compreensão do caráter intrinsecamente anti-espiritual e homicida de todo coletivismo, eternamente em guerra contra o reino interior, o reino de Cristo. Pois o reino de Cristo é, essencial e inseparavelmente, o resgate da vítima sacrificial e a afirmação do primado da interioridade.

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