Leituras

Comunismo versus nazismo: O charlatanismo de esquerda

José Maria e Silva


Opção, Goiânia, 2 dez. 2001

Ao traduzir e apresentar a obra do anticomunista francês Alain Besançon, o sociólogo Emir Sader, um dos mais destacados intelectuais da esquerda brasileira, prova que Olavo de Carvalho tem razão: o pensamento único brasileiro não é neoliberal é marxista.

José Maria e Silva

Muito utilizada nos círculos intelectuais de esquerda, a expressão pensamento único é, ao mesmo tempo, uma meia-verdade e uma mentira e meia. Existe, de fato, um pensamento único no Brasil, mas não se trata do neoliberalismo como afirma a esquerda e, sim, do próprio discurso marxista que há muito substituiu as religiões e tornou-se, ele próprio, a principal ideologia do capitalismo. Portanto, quando a esquerda diz que há um pensamento único e que esse pensamento único não é outro senão o neoliberalismo, ela não se contenta em dizer uma meia-verdade conta uma mentira e meia. A meia-verdade ainda é uma fraqueza e limita-se a negar a realidade que se esfrega em seu nariz. Já a mentira e meia distorce a realidade de um modo tão completo que já não precisa esconder-se da verdade pode mesmo empinar o nariz ante os fatos que gritam. É, aí, que a mentira deixa de ser fraqueza para ser perversidade.

O materialismo científico de Karl Marx esse, sim, o verdadeiro pensamento único a imperar no Brasil foi edificado, em grande parte, sobre uma falsificação mesquinha do mundo. Todo o marxismo verdadeira profecia capitalista da era moderna funda-se numa distorção da realidade; bem-intencionada por parte de muitos, mas profundamente maléfica para todos. É o que vem mostrando muitas vezes, irrefutavelmente o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, uma das raras dissonâncias no desconserto desse pensamento único, que não só desconcerta desmantela o mundo. Em troca desse serviço que presta ao país, Olavo de Carvalho tem sido tratado pela esquerda como um cão hidrófobo da direita, que não pensa, baba, e, quando escreve, morde. Obnubilados pela fé inquebrantável no Capital, os marxistas se recusam até mesmo a ler Olavo de Carvalho, apesar de se arvorarem a criticá-lo. Com isso, privam-se de uma das penas mais elegantes do país, que, mesmo se não fosse o filósofo que é, já seria um grande escritor o que, em qualquer país, mesmo na França visceralmente marxista, já seria motivo de apreço.

Todavia, como a mentira não é eterna (mesmo quando tem as pernas longas do marxismo), coube a um empedernido marxista provar que Olavo de Carvalho tem razão. O sociólogo Emir Sader, doutor em ciência política pela USP e professor de sociologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, acaba de demonstrar em teoria e prática que o comunismo é mesmo uma chaga moral. A prova está na orelha do livro A Infelicidade do Século, do francês Alain Besançon, que trata do comunismo e do nazismo. Publicada no ano passado pela Editora Bertrand Brasil, a obra foi traduzida por Emir Sader, que também é o autor da apresentação publicada na orelha do livro. Esse fato, por si, gera um primeiro espanto Alain Besançon, antigo discípulo de Raymond Aron, é, hoje, um dos principais críticos do comunismo na Europa, enquanto Emir Sader é talvez o mais eminente gramsciano do cenário intelectual brasileiro. Mas, quando se lê atentamente a orelha, esse espanto inicial se desfaz. Fica evidente que o comunista brasileiro só se interessou pelo livro do anticomunista francês chegando a traduzi-lo e apresentá-lo porque o livro é quase um mea culpa de Besançon em relação ao comunismo.

Segundo Emir Sader afirma na orelha do livro, A Infelicidade do Século nasceu da preocupação de Besançon com uma grave injustiça que a história perpetra contra o comunismo enquanto surgiram muitas obras imputando [ao comunismo] uma série de crimes , afirma Sader, os crimes do nazismo, de alguma forma, foram exorcizados ou ficaram relativamente neutralizados na memória histórica . Pelo que se vê da leitura do texto de Sader, foi essa nefasta distorção da história a minimizar a crueldade comprovada do nazismo contra a suposta crueldade do comunismo que fez Alain Besançon esquecer suas divergências com a esquerda e escrever A Infelicidade do Século. Até porque, continua interpretando Sader, Besançon se viu diante de uma diferença crucial entre o comunismo e o nazismo, que os torna incomparáveis contra o comunismo, há livros de seus adversários; contra o nazismo, há os cadáveres de suas vítimas. Emir Sader reforça essa diferença moral que Besançon vê entre ambos lembrando que o comunismo foi protagonista dos enfrentamentos centrais da segunda metade do século e que o nazismo teve seus efeitos reduzidos pelo sofrimento do povo palestino .

Todavia, qualquer estudante secundarista que ler A Infelicidade do Século vai-se sentir tentado a rasgar as orelhas do livro perpetradas pelo sociólogo Emir Sader a apresentação que o comunista brasileiro faz da obra é uma deslavada mentira. E quem o desmente já na primeira página da obra é o próprio autor dela. Depois de afirmar que a consciência histórica parece, hoje, sofrer gravemente de falta de unidade e que o comunismo e o nazismo são gêmeos heterozigotos (expressão que busca em Pierre Chaunu), Alain Besançon resolve voltar a esse tema que ele confessa doloroso a capacidade de matar, com frieza e razão, entre o método e o sadismo, ainda por cima em nome de um ideal, que o comunismo e o nazismo inauguram na história humana. Besançon enfatiza que o comunismo e nazismo se dão o direito e mesmo o dever de matar, e o fazem com métodos que se assemelham, numa escala desconhecida na história .

E foi sobretudo por sabê-los iguais na crueldade praticada mas diferentes na memória estabelecida que Alain Besançon escreveu A Infelicidade do Século. É o que ele próprio afirma, também no início da obra, desmentindo cabalmente Emir Sader: A memória histórica, no entanto, nos os trata [ao comunismo e ao nazismo] de forma igual. O nazismo, apesar de completamente desaparecido há mais de meio século, é, com razão, objeto de uma execração que não diminui com o tempo. A reflexão horrorizada sobre ele parece até aumentar a cada ano em profundidade e extensão. O comunismo, em compensação, apesar de mais recente, e apesar, inclusive de sua queda, se beneficia de uma amnésia e de uma anistia que colhem o consentimento quase unânime, não apenas de seus partidários, pois eles ainda existem, como também de seus inimigos mais determinados e até mesmo de suas vítimas. Nem uns nem outros se acham com direito de tirá-lo do esquecimento . Besançon lembra, inclusive, que, às vezes, o caixão de Drácula se abre , mas o escândalo dura pouco e o caixão se fecha novamente. Foi o que ocorreu, segundo ele, quando da publicação do Livro Negro do Comunismo o escândalo dos 85 milhões de vítimas do comunismo durou pouco, mesmo a cifra permanecendo sem ser seriamente contestada.

Com a orelha que escreveu para A Infelicidade do Século, o sociólogo Emir Sader o Emir dos Crentes , na expressão do ensaísta Meira Penna passa a constituir-se na prova irrefutável de que Olavo de Carvalho está coberto de razão existe mesmo o império absolutista de esquerda no cenário intelectual brasileiro. Em que outro lugar do universo, um intelectual respeitado teria a coragem de mentir deslavadamente sobre um determinado livro na orelha deste mesmo livro? Só se fosse um completo alienado, disposto a não se importar com o juízo que o leitor faria dele ao cabo da leitura da obra. Mas como o sociólogo Emir Sader deve estar em seu juízo perfeito (já que se trata de um dos mais respeitados intelectuais da esquerda brasileira, com artigos publicados no exterior), a distorção que ele faz da obra só pode ser consciente. E, sendo consciente, revela uma inacreditável autoconfiança ele estava certo de que não seria pego em flagrante delito intelectual. Como membro da cúria intelectual de esquerda, Emir Sader confia na credulidade dos sacristãos de Marx pelo país afora e sabe que, mesmo se for denunciado por um Olavo de Carvalho ou por um Meira Penna, não lhe será difícil exorcizá-los como serpentes capitalistas a imiscuírem-se na fé do comunismo edênico. Só isso pode explicar tamanho desrespeito à inteligência alheia.

É impossível que a interpretação feita por Emir Sader na orelha do livro seja um equivoco ela só pode ser um embuste. Ao contrário do pensamento de esquerda que se esconde num estilo abstruso para melhor embair o leitor o pensamento de Alain Besançon é límpido. Ele sustenta que o comunismo e o nazismo buscavam mudar, agindo sobre os costumes, a regra moral, a consciência do bem e do mal . Mesmo se recusando a comparar, sob uma perspectiva quantitativa, o grau de desumanidade do nazismo e do comunismo, Alain Besançon, num dado momento de sua argumentação, chega a afirmar sem rebuços: Apesar de a intensidade no crime ser levada pelo nazismo a um grau que o comunismo jamais se igualou, deve-se, no entanto, afirmar que este último a levou a uma destruição mais extensa e mais profunda . E mostra que essa destruição moral não se limitou aos campos de concentração de Stalin, persistindo ainda hoje, mesmo depois da queda do Muro de Berlim. Besançon oferece como exemplo a declaração de um editorialista do L Humanité, que, diante das dezenas de milhões de vitimas do comunismo, sustentou, na televisão, que, depois de Auschwitz, não se pode ser mais nazista, mas se pode continuar sendo comunista mesmo depois dos campos soviéticos.

Esse homem que falava com consciência não se dava conta de forma alguma de que ele acabava de formular sua fatal condenação , indigna-se Alain Besançon, acentuando que a idéia comunista perverteu o o princípio de realidade e o princípio moral , ao se julgar capaz de sobreviver a 80 milhões de cadáveres. Daí a permanência do Mal comunista, que, ao se disfarçar de Bem, consegue ser mais duradouro do que o nazismo, estendendo suas vítimas para além do extermínio físico perpetrado em seus tempos de poder máximo. É o que afirma Besançon: O comunismo é mais perverso que o nazismo porque ele não pede ao homem que atue conscientemente como um criminoso, mas, ao contrário, se serve do espírito de justiça e de bondade que se estendeu por toda a terra para difundir em toda a terra o mal. Cada experiência comunista é recomeçada na inocência . Por isso, Besançon se recusa a tratar apenas sociologicamente os fenômenos nazista e comunista. Ele considera que isso seria um desrespeito às vítimas de ambos, já que o Mal que tanto comunismo e nazismo representaram para elas é algo que escapa ao humano para instaurar-se no demoníaco. Alain Besançon, ao contrário de Marx, respeita os limites da vida humana que fatalmente esbarra no mistério.

É por não respeitar esse mistério e dessacralizar completamente o homem, procurando racionalizar o mundo numa espécie de reengenharia social, que o comunismo (até mais do que o nazismo) arvora-se a demiurgo de uma humanidade ideal ainda que ao preço de erradicar a que existe da face da terra. Para Besançon, portanto, o comunismo não é só a destruição física representada pelo nazismo, ele é também uma destruição moral. Por duas razões: primeiro, porque o comunismo se vale de uma pedagogia mutilante , que se estende à população inteira e se torna louca porque contradiz as evidências dos sentidos e do entendimento ; segundo porque a confusão permanece insuperável entre a moral comum e a moral comunista, uma vez que é falso dizer que a moral comunista baseia-se na natureza e na história ela baseia-se numa supernatureza que não existe e numa História sem verdade .

O que diz Alain Besançon é praticamente a mesma coisa que diz Olavo de Carvalho. Por que, então, a esquerda brasileira, que exorciza Olavo de Carvalho como se ele fora um demônio, agora resolveu traduzir do francês aquilo que o filósofo brasileiro já lhe atira ao rosto em bom português? Confesso que custei a atinar com o motivo pelo qual o comunista Emir Sader se dispôs a traduzir a obra de um papa do anticomunismo (caso se entenda por anticomunismo toda defesa da moral comum, da humanidade inteira e da vida como ela é). Só depois é que me dei conta de que a tradução do livro A Infelicidade do Século bem pode ser mais uma estratégia gramsciana Alain Besançon, além de membro do Institut de France, é destacado professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales da Universidade de Paris. E seu prestígio pode ser medido pelo fato de ter-se tornado, atualmente, o diretor dessa escola, arrancando das mãos da esquerda o seu mais importante Komitern intelectual no mundo, que já foi dirigido até mesmo pelo sociólogo Pierre Bourdieu, um terrorista social de esquerda no dizer de Jeaninne Verdes-Leroux.

Logo, se a esquerda brasileira não pode ignorar Alain Besançon, como faz com Olavo de Carvalho, por que não se antecipar à direita brasileira antes que ela o descubra e faça dele um arauto de suas idéias, reforçando a voz quase isolada do filósofo do Imbecil Coletivo? Armando-se, então, de uma pedagogia mutilante , Emir Sader não se limitou a provar que Olavo de Carvalho tem razão: ao traduzir o livro de Alain Besançon e maquiá-lo numa apresentação espúria, ele se oferece como exemplo vivo do que Besançon mais condena a capacidade do comunismo de contradizer as evidências dos sentidos e do entendimento , escondendo-se por trás da moral comum, tornando-se parasita dela, gangrenando-a, fazendo dela o instrumento de seu contágio Não foi isto o que fez Emir Sader com o livro de Alain Besançon, escondendo-se por trás de sua moral comum, gangrenando-a, tornando-se parasita dela, para melhor instilar a sua moral comunista? A moral de Besançon iguala nazismo e comunismo para melhor exaltar o ser humano. Fingindo fazer-lhe eco, a moral de Sader quer apenas salvar o comunismo ainda que a custa de perder a humanidade.

Ao dizer que a humanidade nunca mais seria a mesma depois de Auschwitz, o filósofo alemão Theodor Adorno se referia a algo similar ao que afirma Alain Besançon neste livro a respeito da Shoah: um acontecimento único neste século e tem todos os tempos . Mesmo num século marcado por uma prolongada guerra de 1914 a 1945, dividida em dois tempos, no maior massacre localizado nos países que se consideravam o centro da civilização mundial , o projeto de extermínio cientificamente planejado de eliminação de um povo, com a montagem de campos de concentração que chegaram a ser autogeridos pelas próprias vítimas e aproveitamento industrial de todos os resíduos dos cadáveres de milhões de pessoas, tornou-se o símbolo mesmo do que a busca do poder imperial de mais poder pode fazer com os mais avançados progressos da humanidade.

Confira, na íntegra, o que diz o sociólogo de esquerda Emir Sader sobre o livro do anticomunista francês Alain Besancon

Assim, chegamos ao final do século XX com todos os balanços conservadores ou progressistas, capitalistas ou anticapitalistas , assumindo um ar melancólico. A Infelicidade do Século não é uma exceção. Sua preocupação original é a de que o comunismo, protagonizando os enfrentamentos centrais da segunda metade do século, teve muitas obras imputando-lhe uma série de crimes da mesma forma que o próprio capitalismo, poderíamos acrescentar , enquanto que os crimes do nazismo, de alguma forma, foram exorcizados ou ficaram relativamente neutralizados na memória histórica, até mesmo porque o sofrimento do povo palestino vítima de Israel diminui os seus efeitos.

O livro de Besançon representa um chamado de atenção sobre aquilo que a humanidade nunca mais deveria esquecer. Seu enfoque conservador não tira força de seu libelo, que cruza todas as ideologias, para se tornar um libelo da civilização contra a barbárie. (Emir Sader)

Convite à falsificação (III)

Gonçalo Armijos Palácios


Opção (Goiânia), 25 de novembro de 2001

Se Kant quis pôr o observador no centro e os objetos girando em torno dele, como em Ptolomeu, para que então propôs que se pense essa relação seguindo uma teoria, a de Copérnico, que faz exatamente o oposto? Cabe ao leitor responder.

Hoje quero começar falando sobre como, os animais e nós, enxergamos o mundo. As aves, os peixes, os insetos e os seres humanos, todos sabemos, não miramos com os mesmos olhos e, claro, não obtemos as mesmas imagens das mesmas coisas. Quando um ser humano olha para uma flor toda amarela, é isso que enxerga, uma flor só amarela. Já um rouxinol ou uma borboleta que olhem para a mesma flor verão outras cores, as cores ultravioletas do néctar da flor e das pétalas, por exemplo, que nós, seres humanos, não podemos enxergar. Assim, três observadores diferentes olhando para o mesmo objeto — neste caso uma flor — terão dele três imagens diferentes — imagens que dependerão do tipo de aparelho perceptivo que possuem. Uma ave marinha que olha do alto para o mar consegue ver os peixes dentro da água, já uma pessoa que desde um alto rochedo olhe para o mar, não vai conseguir enxergar dentro da água pois, entre outras razões, é cegada pelo reflexo da luz solar nas ondas. As aves conseguem ver os peixes dentro da água porque seus olhos têm filtros que deixam passar certos comprimentos de onda e não outros. Dessa forma, elas conseguem enxergar o que nossos olhos não podem. Assim, uma gaivota, um rouxinol e um ser humano que dirijam seu olhar para o mesmo ponto no mar formarão nas suas mentes imagens diferentes. Em síntese, a maneira como o aparelho perceptivo está constituído determina como o inseto, a ave e o ser humano constroem sua imagem do mundo.

Esta propriedade de constituir uma certa imagem das coisas não se limita às cores. Gostaria que o leitor olhasse para a figura desenhada nesta página. O que enxerga? Dificilmente não enxergará um cubo. Posso, então, dizer sem mais que quem olhe para a figura enxergará um cubo? Certamente não pois, na verdade, não é um cubo que está frente ao leitor e sim doze linhas distribuídas de uma tal maneira que levam a pessoa a ver um cubo. Não há um cubo nesta página. Há um desenho numa superfície plana. Um cubo de verdade tem três, e não duas, dimensões. Onde está a terceira dimensão? De onde surge a impressão de profundidade? Bom, ela é posta, criada, construída, para dizê-lo assim, por nós. É a especial maneira em que nosso aparelho perceptivo está constituído que cria a imagem tridimensional de um cubo. Que mais vemos no cubo? Um plano anterior e um posterior. Além disso, alguns leitores verão um cubo orientado para baixo, outros o verão orientado para cima. E o mesmo leitor pode mudar sua perspectiva e olhar o mesmo cubo ora orientado para baixo ora para cima. Veja-se quanta atividade há no aparelho sensorial do sujeito que percebe, ao passo que o objeto, o desenho, continua na sua inerte bidimensionalidade alheio à nossa maneira de olhá-lo.

Note-se, por outro lado, que quando vemos a figura ocorre, além de uma visualização determinada, uma conceitualização específica. Pensamos: é um cubo — se nos perguntam o que estamos enxergando não respondemos “linhas”, respondemos “um cubo”. Quando olhamos para a figura, então, a identificamos como algo e, além disso, a quantificamos, a pensamos como uma e não como, digamos, doze linhas ou seis lados. Veja-se, em síntese, quanta atividade há no sujeito que percebe e pensa as coisas enquanto elas, ali onde estão, ficam alheias ao nosso olhar e pensar. É isso que Kant, o grande filósofo alemão, quis mostrar: que vemos e pensamos as coisas o que nós pomos nelas.

Kant entendeu que sua teoria de como conhecemos as coisas representava uma revolução análoga à que, na astronomia, tinha representado a revolução de Copérnico. Para Ptolomeu, as estrelas giravam em torno da Terra. Copérnico, ao contrário, parte da hipótese de que é o movimento do espectador na Terra que produz a aparência do movimento nas estrelas. Enquanto a atividade em Ptolomeu está nos astros, em Copérnico está no próprio espectador. Do mesmo modo, a maneira como devemos entender a relação cognitiva entre sujeito e objeto, diz Kant, deve ser invertida: não é o sujeito que, imóvel, no centro do universo, vê passivamente os movimentos das estrelas. Não; é a atividade perceptiva e conceitual no sujeito que determina como as coisas sejam vistas e pensadas. Sobre esta sua revolução copernicana na teoria do conhecimento Kant fala no Prefácio à Segunda Edição da Crítica da Razão Pura. Vejamos como o próprio Kant descreve a relação entre sua teoria do conhecimento e a teoria copernicana: “Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento deveria regular-se pelos objetos…” Ele propõe que se faça o contrário, que se admita “que os objetos devam regular-se pelo nosso conhecimento”. Assim, se nossa percepção se regulasse pelos objetos, não veríamos um cubo nesta página e sim um objeto bidimensional. Mas como são os objetos que se regulam pela nossa percepção, o desenho nesta página é transformado, pela nossa própria atividade sensorial, num cubo, isto é, num objeto tridimensional. Agora vejamos o que Kant diz sobre Copérnico imediatamente depois do trecho citado: “O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico, que, depois de não ter conseguido ir adiante com a explicação dos movimentos celestes ao admitir que todo corpo de astros girava em torno do espectador, tentou ver se não seria melhor deixar que o espectador se movesse em torno dos astros imóveis. Na Metafísica, pode-se, então tentar o mesmo no que diz respeito à intuição dos objetos” (Grifos meus) Então, não pode caber a menor dúvida: para Kant é o sujeito que conhece que devemos pôr a girar em torno dos objetos imóveis, assim como Copérnico pôs o espectador a girar em torno dos astros imóveis.

Agora vejamos o que os alunos que leiam Convite à Filosofia, da professora Marilena Chauí (São Paulo: Ática, 1995), são obrigados a aprender. Na página 77 encontramos: “Inatistas e empiristas, isto é, todos os filósofos, parecem ser como astrônomos geocêntricos, buscando um centro que não é verdadeiro.” A primeira coisa que chama a atenção no trecho é a divisão de todos os filósofos entre inatistas e empiristas. Se isso tivesse sido verdade até a época de Kant, onde deveríamos situar todos os filósofos que não eram nem uma coisa nem outra, como por exemplo os céticos – que existiram não só na época de Kant, mas antes de Kant, na época medieval e na antiga Grécia? A professora Chauí continua o trecho assim: “Parecem, diz Kant, como alguém que, querendo assar um frango, fizesse o forno girar em torno dele e não o frango em torno do fogo”!! Onde é que Kant afirma semelhante disparate? E que tem a ver assar um frango (por outro lado morto e sem cabeça) com um observador vivo girando em torno do objeto que, à diferença de um frango morto e sem cabeça, é por ele observado? Mais um mistério.

Vimos que Copérnico, em palavras de Kant, fez girar o espectador em torno dos astros imóveis e que isso devia ser feito em teoria do conhecimento: girar o sujeito que conhece em torno do objeto conhecido. Mas a Dra. Chauí apresenta uma revolução copernicana bem ptolemaica: “Façamos, pois, uma revolução copernicana em Filosofia: em vez de colocar no centro a realidade objetiva ou os objetos do conhecimento, dizendo que são racionais e que podem ser conhecidos tais como são em si mesmos, comecemos colocando no centro a própria razão”!! (Meus grifos) Mas não é exatamente o oposto que Kant quer e que, para tanto, apela à analogia com a revolução de Copérnico? Mas não, enquanto o sujeito de Copérnico e de Kant está girando, o da professora Chauí vê, como Ptolomeu, os objetos girando em torno de si!!

No último artigo vimos como os prisioneiros da caverna de Platão – segundo ele acorrentados e sem poder mexer nem sair do lugar – se reproduziam à beça. (De fato, segundo a professora Chauí, os prisioneiros estão nessa situação “geração após geração”!) Agora ficamos sabendo que a revolução copernicana de Kant não consiste em pôr, como em Copérnico, o observador movendo-se em torno dos objetos. Não; na versão da Dra. Chauí a razão, contra a o que o próprio Kant afirma, vira um Sol “em torno do qual”, como ela diz no período seguinte, “tudo gira”!

Está na moda falar de ‘leituras’ e dos direitos ilimitados do leitor de interpretar as coisas ao seu bel-prazer. Mas quem tiver dúvidas sobre aquele trecho de Kant pode fazer uma simples pergunta: se Kant quis pôr o observador no centro e os objetos girando em torno dele, como em Ptolomeu, para que então propôs que se pense essa relação seguindo uma teoria, a de Copérnico, que faz exatamente o oposto? Cabe ao leitor responder.

Gonçalo Armijos Palácios é Doutor em filosofia, autor do livro “De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego, Estar Morto ou Ser Gênio” (veja www.multimania.com/palavracesa/goncalo.htm) e professor da Universidade Federal de Goiás)

Fórum Social ou Socialista?

por Percival Puggina

Antes de mais nada, fica posto um desafio aos leitores que discordarem do conteúdo deste artigo: indiquem-me um país (qualquer um, e basta um) onde o socialismo e as idéias marxistas tenham produzido democracia e prosperidade. Note-se que ao longo de um século e meio esse sedutor modelo só não foi testado na Oceania e na Antártica. E eu não estou, nem mesmo, cobrando desempenho positivo em direitos humanos, equilíbrio ecológico e liberdades públicas; quero apenas um caso em que o socialismo real tenha gerado uma sociedade próspera e democrática.

Os organizadores do Fórum Social Mundial, no ano passado, buscaram pela mão grandes personalidades que compuseram a face externa do evento. Aqui estiveram, em meio a outros do mesmo gênero: o ditador argelino Ben Bella (“eu não sou um democrata, sou um revolucionário”); o senhor Ricardo Alarcón, marionete número um de Fidel Castro (que lhe concede a honra de presidir o único parlamento do mundo que em pleno século XXI ainda emite leis contra a liberdade do povo que diz representar); madame Danielle Mitterrand, para quem “Fidel Castro é um democrata convicto”; a dona Hebe Bonafini, que no diálogo patrocinado pela AFP com o fórum de Davos, proporcionou a mais constrangedora cena de desvario e ódio ideológico de todo o Fórum; o representante das FARC, agente do narcoterrorismo marxista colombiano que agasalhava nossos conterrâneos Fernandinho Beira-Mar e Pitoco. (Não incluo, na lista, o José Bové porque esse vivaldino é farinha de outro saco).

O mais distraído jornalista que tenha acompanhado o Fórum em 2001 sabe que esse grupo estava, para a volúpia socialista do evento, assim como o abre-alas de mulatas está para as escolas de samba organizadas por Joãozinho Trinta: levanta a arquibancada e põe todo mundo no enredo do samba.

Dentro de poucos dias, começa tudo outra vez. E agora querem falar de paz! Então, de duas uma: ou se repete o filme com os mesmos atores, ou se melhora o nível e se busca, pela mão, gente séria e desarmada. Neste último caso se estará reconhecendo que o evento de 2001 foi um lamentável engano, uma encenação mal feita, na mais rigorosa tradição da esquerda mundial: promete uma coisa e entrega outra. Ou, se o Fórum de 2001, com sua fauna guerrilheira, revolucionária e terrorista, for considerado válido, a afirmação se aplicará ao evento de 2002 e ao seu discurso em favor da paz.

Por outro lado, um Fórum Social Mundial, do tipo sério, não pode ser socialista, porque como se viu acima, os problemas sociais não são resolvidos com conversa fiada e o socialismo é um case sem versão bem sucedida. Some-se a esse constrangimento, por fim, a frustração do distinto público. Se o Fórum deixar de ser socialista e começar a tratar dos problemas sociais sem demagogia, com objetividade e eficiência, vai sobrar lugar.

Percival Puggina é arquiteto, político, escritor, presidente da Fundação Tarso Dutra de Estudos Políticos e de Administração Pública.

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